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Gustavo Marx

Marcelo Meyer, o executivo em sua vida de dono de casa em Nova York: em busca de uma causa para deixar algo de bom para o mundo

Marcelo Meyer, o executivo em sua vida de dono de casa em Nova York: em busca de uma causa para deixar algo de bom para o mundo

Profissionais das mais variadas áreas já perceberam que o trabalho só enobrece o homem se ele tiver sentido para quem trabalha e para o mundo à sua volta. Conheça o caso e os cases de gente que encarou o desafio de encontrar significado no trabalho para além dos bônus no fim do ano

Três homens assentavam tijolos quando alguém que passava na rua lhes perguntou: “O que vocês estão fazendo?”. O primeiro respondeu: “Assentando tijolos”; o segundo disse: “Estou trabalhando para sustentar minha família”; e o terceiro: “Estou construindo uma catedral”. A parábola é velha, tão velha quanto a distinção que fazemos entre os que trabalham sem sentido, os que trabalham apenas pelo dinheiro e os que entendem o significado mais profundo do que fazem durante seu horário produtivo. Portanto, não é exatamente uma novidade que seus colegas, ou talvez você mesmo, estejam questionando os modelos de exercício profissional e vida corporativa, os modelos de remuneração e os valores disseminados desde a Revolução Industrial, no século 19. Não se trata de saber por quanto você trabalha, mas, afinal, por que cargas-d’água você trabalha?

De forma nada delicada, o jornalista Alexandre Teixeira, autor do recém-lançado livro Felicidade S.A. – Por que a satisfação com o trabalho é a utopia possível para o século 21 (Arquipélago Editorial), define o modelo dominante como “engolir sapos em troca de um bom dinheiro”. Em outras palavras, vender sua alma. “Numa sociedade desenvolvida, o dinheiro é uma commodity e bons profissionais são raros e disputados”, diz. “Agora estes profissionais começam a se questionar sobre o que realmente gostam de fazer e os propósitos de seu trabalho, por exemplo.”

Não é mero acaso que essa discussão esteja batendo às portas do mercado de trabalho brasileiro justamente quando as universidades começam a despejar uma geração de profissionais para quem a hiperinflação é apenas um assunto dos livros de história e cujos pais foram traídos pelo sonho de “estabilidade” que a iniciativa privada vendia até os anos 1990. Agora, como diz a escritora Tammy Erickson, “meaning is the new money” (significado é o novo dinheiro).

A busca pelo significado mais profundo do trabalho tem diversas caras. Vai de retiros alternativos baseados no Qi Gong e na ayahuasca até terapias e pesquisas sobre felicidade e clima de trabalho. “Uma parte dessa busca tem a ver com inquietações próprias de quem é jovem, uma parte tem a ver com uma busca de sentido que é tão antiga quanto o homem”, acredita Marcelo Cardoso, VP de desenvolvimento organizacional e sustentabilidade da Natura. “Mas também tem a ver com as novas possibilidades de trabalho, que eram inimagináveis há 25 anos, como começar uma carreira em start-ups e ONGs. As grandes empresas precisam ser tão relevantes quanto esses modelos novos se quiserem atrair os novos talentos.” Por conta de sua política de práticas de gestão de pessoas, a Natura é frequentemente vista como uma das poucas empresas brasileiras preparadas para esse novo cenário, em que os talentos escolhem a organização na qual pretendem trabalhar. De fato, segundo pesquisa da Universum divulgada pelo Estadão, a Natura já é a empresa mais desejada entre profissionais com mais de 35 anos no Brasil.

Cardoso é conhecido no meio executivo como um caso de transformação pessoal: de workaholic típico tornou-se adepto de um modelo humano de comando e gestão. Dentre diversas correntes filosóficas e práticas espirituais que conheceu em seu período de reinvenção, Cardoso tornou-se entusiasta da filosofia integral do americano Ken Wilber. “A teoria integral nada mais é do que a capacidade de encaixar diferentes pecinhas e entender como as verdades parciais se inter-relacionam”, diz Ari Raynsford, doutor em engenharia nuclear e um dos maiores wilberistas do Brasil. “O integralismo propõe que o ser humano troque seu ‘processador’ mental. De um processador velho, em que modelos fragmentados se chocam, para um novo, integral, que permita que talentos sejam aplicados e cultivados de formas diferentes.” Como parte de uma série de eventos que o Instituto Integral do Brasil estava organizando no final de setembro, estavam previstos seminários sobre liderança integral, com Barrett Brown, e Jornada de Transformação, com a monja zen-budista Diane Hamilton. Os cursos são muito procurados por profissionais das áreas de psicologia, engenharia e administração (especialmente os de recursos humanos) segundo Raynsford.

O bispo anglicano Desmond Tutu tem uma definição famosa para o significado espiritual do trabalho. Segundo ele, Nobel da Paz em 1984, trabalho é “a maneira com que o homem coopera com o criador na manutenção do universo criado”. O pastor brasileiro Ed René Kivitz avançou a partir da definição de Tutu. “Trabalhar é transformar o caos em cosmo, a terra sem forma e vazia em jardins, como descrito no livro do Gênesis”, ele diz. Depois de palestrar sobre espiritualidade em empresas como Unimed, Mercedes-Benz e Tok&Stok, Kivitz criou o Fórum Cristão de Profissionais, em São Paulo, disposto a provar ser possível um novo modelo de “ser profissional, ser empresa e fazer negócio”. “Um modelo de economia que zele apenas pelo lucro do acionista na ponta do processo não é trabalho, espiritualmente falando, porque não está transformando o caos em cosmo, mas apenas empurrando o caos para longe de si”, explica Kivitz. “Um atacadista que lucra à custa de um caminhoneiro que destrói a estrada e se droga para cumprir horários, está prolongando o caos. Mas uma rede de supermercados como a Whole Foods, que respeita toda a cadeia de produção do que vende, é um sinal de uma nova consciência despertando.”

Funcionalismo público

Todos os pensadores e profissionais que investigam os novos paradigmas do mundo do trabalho, entretanto, são unânimes em admitir que a busca por significado ainda é incipiente, especialmente no Brasil. “Ainda está muito restrita a dilemas burgueses, daqueles que já passaram pelos dois famosos primeiros esses, sobrevivência e sucesso, e agora podem se dedicar ao terceiro, significado”, diz Kivitz. “O significado acaba sendo um novo separador de classes em uma sociedade em que mais gente tem dinheiro.”

De fato, uma pesquisa da consultoria Universum, divulgada pelo Estadão em agosto, mostrou que, entre 12 mil jovens universitários brasileiros, a empresa mais cobiçada continua sendo a Petrobras. Na verdade, apesar de o tamanho do funcionalismo público haver diminuído em dez anos (de 8,5 para 8,3 milhões de vagas), a procura por um emprego público cresceu: em 2012 são estimadas 12 milhões de inscrições em concursos públicos, 4 milhões a mais do que em todo ano passado. Ou seja: a estabilidade continua sendo um valor importantíssimo para o trabalhador médio brasileiro.

“Em minha opinião, a lógica não se alterou”, diz o escritor Max Gehringer. “As novas gerações nunca se submeteram ao mundo que lhes era impingido pelos adultos. Sempre foi assim, só que o ritmo agora é muito mais rápido. Num mundo sem internet, celular e tablet, sem Twitter e Facebook, os jovens lutavam contra a ditadura dos costumes e das regras empresariais exatamente como hoje.”

“Numa sociedade desenvolvida, dinheiro é commodity, e bons profissionais é que são raros e disputados. E eles estão se questionando sobre o que gostam de fazer e qual o propósito de seu trabalho”

Nem todos os que assistem a Gehringer falando sobre trabalho no Fantástico sabem que ele próprio reinventou sua carreira em busca de um sonho. Aos 47 anos, ele era presidente da Pullman e, segundo a Gazeta Mercantil, um dos 30 executivos mais cobiçados do Brasil. “Eu acalentava desde jovem o sonho de ser escritor, mas, como minha mãe dizia, eu precisava trabalhar para ajudar em casa”, lembra. “Não deixei a vida corporativa por dissabor ou tédio. Consegui até mais do que merecia e poderia ter ficado ainda muitos anos curtindo, mas comecei a pensar bem cedo em algo que pudesse fazer pelo resto da vida.” Gehringer publicou um livro, Relações desumanas no trabalho, com uma visão pra lá de crítica do meio. O livro vendeu pouco, mas rendeu o convite para que ocupasse a última página da revista Exame, na coluna “Comédia Corporativa”. Dali, avançou para o mundo das palestras e seminários, para a revista Época, para a CBN e, finalmente, para o Fantástico. Hoje, Max tem 15 livros lançados e sua participação no programa da TV Globo vai para cinco anos. “Se eu pudesse dar uma sugestão aos executivos, seria a de começar a planejar o fim da própria carreira cedo, bem antes que a empresa decida fazer isso por eles.” No fundo, o que move o lado bom do trabalho continua sendo o sonho: de zelar pela cadeia produtiva em um supermercado, ou de mudar de profissão radicalmente no Brasil.

Millenials

Estima-se que haja 2,3 bilhões de millenials (ou geração Y, a fornada que sucede os profissionais da geração X). Segundo o documentário All work and all play, são esses os profissionais que, “devido a sua mentalidade digital, líquida e coletiva, estão afetando o jeito que vamos trabalhar no futuro”. O filme em questão é um trabalho da Box 1824, empresa brasileira de pesquisa e inovação que, entre outras tendências, aponta para a necessidade de um ambiente de trabalho colaborativo, leve, divertido e estimulante. “Que é exatamente o oposto do modelo da Revolução Industrial”, diz Alexandre Teixeira, “que era baseado no comodismo: se você fosse leal à empresa, quem se comportasse, ficaria. Não seria demitido, ascenderia por tempo de casa, se aposentaria na mesma empresa, com sorte, seus filhos trabalhariam ali. Esse modelo foi destruído pela onda brutal de redução de níveis hierárquicos nos anos 1990, quando os gerentes foram esmagados, os organogramas se resumiram em bases com pouco poder de decisão e diretores com supersalários, bônus e metas inatingíveis fazendo o trabalho de uma dúzia de gerentes.”

Em seu clássico livro Liderança para tempos de incerteza – A descoberta de um novo caminho, a escritora Margaret J. Wheatley lembra que “nós, que fomos educados na cultura ocidental, aprendemos a pensar e a administrar um mundo que não é sistêmico nem interligado. É um mundo de separações e limites claros: tarefas compartimentadas, relações delineadas, funções e políticas que definem o que cada pessoa faz e o que esperamos que ela seja”. Em outras palavras, um sistema educacional preparado para um mundo em que a competitividade era medida pela padronização e rigidez, e não flexibilidade e coletividade. “As carteiras, organizadas em filas indianas, preparavam as crianças para a vida na linha de montagem”, diz Anderson Sant’Anna, professor da Fundação Dom Cabral. “O professor em cima de um tablado nos preparava para a autoridade do chefe na fábrica; os uniformes serviam para anular nossas individualidades.” Justamente por isso, o documentário All work and all play, embora não descarte a importância da educação formal, aposta que o modelo de formação dos millenials está muito mais ligado a cursos rápidos e informais (TED, Casa do Saber, Fronteiras do Pensamento... as opções se multiplicam). Realmente, pela lógica de quem vive a informação em tempo real, daqui a cinco anos os problemas serão bem diferentes dos de hoje.

“Trabalhar é transformar o caos em cosmo. Quem só zela pelo lucro do acionista só está fazendo empurrar o caos para longe de si. Mas há uma nova consciência surgindo em empresas como o supermercado Whole Foods”

No fundo, a ideia de que a vida é curta demais para ser desperdiçada em um trabalho com o qual você não se identifica, numa empresa cujos ideais você não compartilha, se conecta à discussão sobre felicidade. Que, Aristóteles à parte (“O prazer aperfeiçoa a obra”, já dizia o filósofo), é uma discussão bem recente. Basta lembrar que, no ocidente, foi apenas na década de 1990, com a criação do Índice de Desenvolvimento Humano, que o Produto Interno Bruto, a soma de riquezas produzidas, começou a ser questionado como a única forma de medir o sucesso de uma nação.

Mesmo nos meios acadêmicos a compreensão de felicidade sempre esteve próxima daquela proposta pela psicóloga Sonja Lyubomirsky, para quem “ser feliz é experimentar emoções positivas com frequência e sentir que a vida é boa” – uma definição confiscada pela publicidade, sempre disposta a nos oferecer uma nova possibilidade de emoção positiva todo dia. Foi apenas em 2009 que os professores Mathew P. White (da Universidade de Plymouth) e Paul Dolan (do Imperial College de Londres) propuseram um estudo dissociando prazer de satisfação. E descobriram que atividades não necessariamente agradáveis podem, sim, ser recompensadoras e nos trazer felicidade. Assistir à televisão nos dá prazer, mas não é gratificante. O trânsito não é nem prazeroso nem gratificante. O trabalho foi apontado como gratificante, mas não prazeroso.
E, finalmente, no quadrante compreendido como igualmente prazeroso e gratificante, aparecem o cuidado com crianças, a oração e, em primeiro lugar, o trabalho voluntário. O que nos leva à velha questão: o trabalho ideal é aquele que faríamos ainda que não fôssemos remunerados para fazê-lo. Faríamos voluntariamente.

Seja como for, todas as pesquisas os resultados apontavam para a mesma conclusão: o dinheiro só traz felicidade até o ponto em que ele supre as nossas necessidades básicas de moradia, alimentação, saúde e vestimenta. A partir daí, os dígitos somados no banco não guardam relação alguma com a taxa de felicidade medida – muito pelo contrário, a pressão pela conquista dos chamados “bens posicionais” tende a colocar o trabalhador numa roda-viva que costuma dragar sua saúde, sua família e sua própria capacidade de trabalho. Em outras palavras, passar a vida num trabalho penoso esperando a recompensa das férias e a aposentadoria não vai funcionar. E, ainda que funcionasse e fosse tão viável quanto na década de 1950, essa jornada iria te matar antes dos 50 anos.

Modo zumbi

Alexandre Teixeira chama de “modo zumbi” o modelo mental herdado da cultura industrial que, no fundo, alimenta apenas o consumismo: todos trabalham acima do razoável para ganhar bônus cada vez mais altos que são usados para alimentar um padrão de vida cada vez mais alto. Como efeito, as pesquisas já apontam que metade dos millenials estão empreendendo seus próprios negócios – ou, em vez de sonhar com uma estatal, sonham em trabalhar sem patrões.

Mais uma vez, os números colocam o Brasil como ponto fora da curva. Por aqui, o censo de 2010 mostrou que o número de empregos com carteira assinada cresceu: de 54,8% para 65,2%. O número de autônomos permanece estável: são 15,5 milhões de pessoas, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2009. Com tudo isso, vale notar dois dados interessantes: 23,1% dos trabalhadores empregados no Brasil dão expediente fora de escritórios; em segundo lugar, o Sebrae acredita que em dois anos o número de microempreendedores individuais (que hoje é de 2,5 milhões) deve ultrapassar o de micro e pequenas empresas.

As escolas ainda preparam alunos para um mercado de trabalho padronizado e rígido. Mas o novo padrão de competitividade exige flexibilidade e coletividade

“Somos um país emergente, decolando ainda, e quem está no mercado está sendo muito exigido”, diz Teixeira. “Praticamos jornadas e exigimos dedicação em níveis que não existem nos países desenvolvidos.” Mas o efeito esperado de tanto trabalho nos leva ao início deste texto: o tempo em que dinheiro torna-se uma commodity e o significado do trabalho passa a ser a nova moeda. “Hoje essa visão integral do trabalho ainda é vista com desconfiança”, admite Ari Raynsford. “Bem, para acionistas que esperam resultados a curto prazo e se orgulham de seu espírito predador, talvez não tenhamos a melhor receita.”

Seu colega de integralismo, Marcelo Cardoso, entretanto, acredita que o caminho é irreversível: “O tema ganha relevância nos departamentos de RH e vai ser indisfarçável quando as empresas simplesmente não conseguirem mais reter talentos, porque todas as mentes criativas estarão questionando os modelos vigentes e avaliando se, afinal, querem empregar sua criatividade e energia em uma marca com a qual não se identificam”. Caberá ao tempo, esse artigo tão raro e cada vez mais escasso, como sempre, colocar as coisas em seus lugares devidos.

Gustavo Marx

Marcelo Meyer, o executivo em sua vida de dono de casa em Nova York: em busca de uma causa para deixar algo de bom para o mundo

Marcelo Meyer

 

*Conheça alguns casos de sucesso real no trabalho


Gustavo Marx

Marcelo Meyer, o executivo em sua vida de dono de casa em Nova York: em busca de uma causa para deixar algo de bom para o mundo

Marcelo Meyer, o executivo em sua vida de dono de casa em Nova York: em busca de uma causa para deixar algo de bom para o mundo

Às favas
Ele deixou seu emprego num banco, mudou-se para os EUA, cursou administração, design e culinária e agora prepara seu retorno

Por: Eduardo Duarte Zanelato

Marcelo Meyer, 43 anos, passou os últimos 20 em diferentes cargos executivos em grandes corporações. Em 2011, decidiu se demitir sem nenhuma oportunidade em vista. Virou “dono de casa”, em Nova York. Muitos cursos depois, o executivo prepara-se para voltar a seu país como empreendedor.

Como você vivia essa vida de longas jornadas, metas e stress?
No início entendia como parte da minha formação, útil para ganhar experiência e criar parâmetros. Depois dá para entender melhor o quanto aquele pode ser seu modelo de vida profissional ou não. A partir de 2005 até 2011, quando me desliguei do banco onde trabalhava, comecei a ter uma visão mais crítica. Percebi que, para algumas dessas corporações, é mais importante seguir processos e manter o sistema do que ter um pensamento inovador. Isso começou a me frustrar. Eu sabia que tinha capacidade para questionar modelos, mas não encontrava um ambiente favorável.

O modelo de metas e bônus deixou de fazer sentido?
Foi o ambiente. Metas e prazos fazem parte, mas não acho correto inibir a criatividade. Empresas grandes obrigam seus profissionais a gastar metade do tempo cuidando da própria empresa, da burocracia e dos processos administrativos que as mantêm rodando. Esse tempo deveria ser gasto com o cliente ou em novos negócios.

E como decidiu mudar de país?
Minha esposa recebeu uma proposta para representar um escritório de advocacia em Nova York. E, como eu estava buscando viver coisas diferentes, aproveitei a oportunidade. Aqui, fiz um curso de culinária francesa de três meses. Também cursei design e administração. Isso serviu para olhar o mundo sob nova ótica, tentar entender que existem outros modelos e paradigmas.

Como essa experiência vai mudar a sua forma de trabalhar?
Tenho trabalhado para empreender um negócio próprio no Brasil. Procuro um ponto em comum entre o que temos como competência, paixão e oportunidade de mercado. Quero encontrar uma atuação que me dê tanto prazer no dia a dia que faça a relação entre vida pessoal e profissional ser uma coisa só. A motivação, hoje, está ligada a encontrar uma causa que faça sentido, para que eu possa dizer que deixei algo bom para alguém ou para o mundo.


Gustavo Marx

Bob Burnquist

Bob Burnquist

Salto sustentável
Bob Burnquist vai além do skate e avança sobre os alimentos orgânicos e a moda

Robert Dean Silva Burnquist é um dos mais importantes esportistas brasileiros de todos os tempos. O carioca começou a andar de skate aos 11 anos e hoje, aos 35, é uma lenda sobre rodas. Como se o skate não fosse desafio suficiente, Burnquist decidiu empreender. Lançou uma marca de alimentos orgânicos – a Burnquist Organics – e firmou parceria com a C&A para lançar uma linha de roupas. Confira abaixo os melhores momentos da entrevista de Bob Burnquist para o Trip FM gravado em 30 de agosto, em uma recente passagem pelo Brasil:

Como você, que mora nos Estados Unidos há quase 20 anos, acompanha o atual momento do Brasil? 
Eu tento acompanhar, até porque tenho uma empresa no Brasil, nós desenvolvemos negócios, parcerias. O que eu notava é que aqui rolava muito aquele “vamos deixar pra depois” etc. De uns tempos para cá, isso mudou, virou “vamos fazer acontecer”. Parece que as oportunidades estão se abrindo e tenho ouvido muito mais sim do que não.

Que espaço a Burnquist Organics ocupa em sua vida e em seus negócios? 
Essa semente cresceu em mim justamente pelo fato de eu ter nascido no Brasil. Aqui, sempre comi muito bem. Sentia muita falta disso quando me mudei para os Estados Unidos. Eu comia naquelas lojas de conveniência e, uma semana depois, meu corpo já estava todo mudado. E isso afetava meu desempenho no skate. Já havia lido Fast food nation, do jornalista Eric Schlooser, sobre comida processada, quando, enquanto dirigia entre San Francisco e Los Angeles, parei em uma loja para comer um sanduíche. De volta à estrada, passei em frente a uma fazenda que mais parecia um mar de vacas, apertadas, e naquele momento senti uma coisa muito estranha. “Cara, eu tô com uma delas aqui dentro de mim!” Aquilo mudou minha visão. Houve outro episódio, nos Estados Unidos, quando eu passei em frente àquelas casas, todas iguais, e notei que a construção era sempre de madeira. Eu estava acostumado com alvenaria, e pensei na Amazônia. Comecei a fazer minhas próprias escolhas para minha vida. No início eu pregava bastante, mas com o tempo vi que a melhor pregação é agir. Em 2001, abri meu restaurante [Melodia, em Leucadia, Califórnia] e minha família foi trabalhar com a gente. E foi uma época realmente mágica. Entregávamos comida brasileira, muito boa, frutos do mar, açaí. E fomos muito bem aceitos. E, enquanto o restaurante não me ocupava tanto o tempo, eu abri o Burnquist Organics, que supria o restaurante. Em certo ponto, 80% dos vegetais vinham do meu quintal, e era tudo orgânico. Mas aí veio o 11 de setembro, os ataques terroristas, e as pessoas pararam de sair para jantar. Justamente numa época que a gente precisava do retorno, por causa do investimento. Aquilo meio que quebrou o restaurante. Mas foi um aprendizado. Levei um tombaço, mas levantei com uma nova ideia: emprestar meu nome para alguma rede, começar um negócio de licensing. Ali mesmo, no restaurante, tivemos a primeira reunião, onde foi criada a ONG Asec (Action Sports and Environmental Coalition, “coalizão de esportes de ação sobre sustentabilidade”). Reunimos o mercado de skate para que a gente comprasse algodão orgânico juntos, mudasse a cultura dentro das empresas, adotasse práticas mais sustentáveis. Começamos como uma empresa com fins lucrativos e viramos uma ONG. Ao mesmo tempo, como eu falava muito sobre sustentabilidade, minhas parcerias começaram a encaixar produtos com essa característica. Há dois anos, a Oakley lançou seu primeiro produto sustentável, que foi meu óculos de assinatura, o Bob Burnquist Gas Can, feito com tudo o que sobrava da produção de outros óculos. E o que sobra dos meus óculos vai para a Black&Decker, uma empresa ali do lado, usar na produção de furadeiras.

E a sua linha de roupas com a C&A? Você virou estilista? 
Isso é muito louco, porque a minha parceira internacional de roupas é a Hurley. Fazemos muitas coisas legais, interagimos no mundo inteiro. Só que, vindo sempre ao Brasil, comecei a reparar que, muitas vezes, as pessoas queriam ter acesso às minhas roupas e não tinham, por causa da distribuição ou do preço. Daí rolou essa oportunidade de firmar parceria com a C&A e achei muito interessante. E veio essa ideia de fazer essa roupa para a molecada com uma identidade de skate e com um preço acessível. Superlegal. Recentemente, no evento da MegaRampa, vi muito moleque com meu boné, com as camisetas e tal. Então senti que eu consegui suprir uma necessidade, o que me deixou muito feliz.


Gustavo Marx

Paulo Thiago

Paulo Thiago

Jornada Dupla
Paulo Thiago equilibra a carreira no UFC com suas obrigações de soldado do BOPE em Brasília

Por: Eduardo Duarte Zanelato

A fala mansa e o espírito pacífico não combinam com a imagem do grandalhão que já derrubou alguns dos dez melhores lutadores do UFC. Baseado em Brasília e adepto das artes marciais desde os 5 anos, o soldado Paulo “Caveira” Thiago, 31 anos, do Batalhão de Operações Especiais de Brasília, está no plantel do UFC desde 2009. Estreou nocauteando um dos dez melhores do mundo à época, Josh Koscheck e promete interromper a má fase (três derrotas nas últimas quatro lutas) em novembro, quando enfrenta o coreano Dong Hyun Kim, no UFC China.

Como você equilibra as duas funções, lutador e soldado?
São duas situações que envolvem uma adrenalina muito grande. Só que nas artes marciais, é uma luta justa: um atleta contra o outro, os dois preparados, com um juiz no meio. Dá para saber mais ou menos o que vai acontecer. Na rua você não sabe o que vai ser, porque bandido não tem pena de polícia. A vida está em risco, então tem sempre uma tensão, não só para proteger a sua vida, mas a do cidadão e a do próprio bandido.

Como você acumulou os dois trabalhos?
As artes maciais estão na minha vida desde que eu me conheço por gente. Minha mãe me colocou para lutar judô desde os 5 anos de idade. Depois passei por tae kwon do, caratê, até que entrei no jiu-jítsu, de 14 para 15 anos. Dois anos depois comecei a lutar boxe e passei a competir nas duas modalidades. Em paralelo, entrei na polícia em 2003. Precisava de um emprego, de estabilidade financeira. Nem pensava no Bope, mas fiquei alguns meses no serviço de rua até que um dia vi um cartaz das inscrições do curso de operações especiais. Passei no curso, que era muito difícil, e estou lá até hoje. Comecei a trabalhar no batalhão em 2005. No mesmo ano, em julho, estreei no MMA.

Como você faz quando tem lutas como a de novembro, na China?
Geralmente tiro férias, abono ou mesmo uma licença. Vamos tentando encaixar com o tempo que tenho disponível.

Você pensa em parar com alguma das duas atividades?
Quero me aposentar na polícia. No MMA, vou até onde meu corpo aguentar


Gustavo Marx

Fábio Abreu

Fábio Abreu

O jegue estava certo
Como a visão de um jegue sincero numa praia da Bahia transformou um diretor de marketing em terapeuta espiritual

Por: Eduardo Duarte Zanelato

Até 2001, ele se apresentava como Fabio Abreu, diretor de marketing da MTV Brasil. Vivia num loft descolado na Vila Madalena, tinha um trabalho que o credenciava como um cara bacana e ia a festas com a nata hipster paulistana. Depois de um inusitadíssimo encontro transcendental com um “jegue de luz”, ele largou tudo e foi repensar a vida. Virou “Fabio Novo”, terapeuta e coach profissional. Hoje, aos 48 anos, defende a holossíntese, teoria pela qual devemos conectar nossos sonhos à nossa vida e fazer do trabalho uma forma de realizá-los.

O que motivou sua crise existencial? 
Primeiro, uma angústia pessoal de insatisfação. Era curioso. De um lado, eu olhava para aquilo e parecia perfeito: morava num loft na Vila Madalena, era diretor da MTV, tinha uma vida alegre e divertida, ganhava bem. Tinha tudo. Mas alguma coisa estava errada. Percebi que faltava um significado maior no trabalho. Ele estava desconectado de sentido – e essa falta de sentido era a origem da insatisfação que me levou a sair.

Teve algum episódio que fez você querer sair?
Olha... Teve um episódio... [risos] Não vou te contar, veja o vídeo da palestra que fiz no TEDx, ano passado [nota: no vídeo, ele afirma que, no meio de um dia quente em Caraíva, Bahia, deparou-se com um “ser de luz”, na verdade, um jegue, que o questionou: “Eu sou um jegue, mas estou sendo 100% jegue. E você, quem é? Está sendo o que você é?”, ao que Fabio diz: “Eu pensei: realmente, esse jegue está certo!”]. Tive um insight bem profundo e vi que faltavam algumas coisas muito importantes. E ali vi que tinha acabado minha carreira. Isso foi em janeiro de 2001 e, em março daquele ano, saí da TV. Mergulhei em mim mesmo e fui descobrir qual era a causa daquilo. Fiz tudo o que você pode imaginar de cursos, retiros, práticas de meditação, ioga. Viajei o mundo, fui para o Oriente... Fiquei três anos viajando e me conhecendo, experimentando. Ao longo desse processo, as coisas começaram a se organizar e vi que meu caminho era ser terapeuta.

Qual linha terapêutica você segue? 
Sou formado em psicossíntese, uma abordagem psicoespiritual de desenvolvimento humano. E estou desenvolvendo uma abordagem própria, a holossíntese.

Qual é a principal queixa dos seus clientes? 
O stress. Mesmo quem não está numa grande corporação vive uma vida urbana e estressante. As pessoas chegam ao ponto de ficar extenuadas, completamente desenergizadas. É um modelo de gestão que consome as pessoas. Será que tudo aquilo vale a pena?


Mr. Golden Little Hammer

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Foi-se o tempo em que a exportação de profissionais brasileiros era associada aos sofridos dekasseguis no Japão, dentistas maltratados em Portugal ou mineiros de Governador Valadares em sub-empregos nos EUA. Com as mudanças na geopolítica e na economia, enquanto milhares de europeus e trabalhadores de outros continentes vêm pra cá em busca de uma vida melhor, uma pequena confraria de artesãos brasileiros é disputada a peso de ouro em algumas das maiores cidades do mundo. Conheça a selecão brasileira dos martelinhos de ouro, os Pelés da lanternagem.

Murilo Mendes é um dependente de pedras. Precisa delas para sobreviver, e não esconde de ninguém. Quanto maiores elas são, mais satisfeito fica. Tanto que vai anualmente à Europa em busca das melhores. Já faz sete anos que ele entrou nessa vida e, desde então, não conseguiu mais sair. É por causa do estrago feito pelas pedras de granizo que Murilo pode exercer seu ofício. Ele trabalha como martelinho de ouro. Sempre que uma chuva com grandes bolas de gelo desaba em algum país pelo mundo ele é chamado às pressas, viaja para desamassar carros castigados pelas tempestades. Com marteladas sutis, ele reverte artesanalmente cada um dos amassadinhos na lataria. Ele e uma porção de outros brasileiros que têm abarrotado seus passaportes de vistos pulando de país em país para trabalhar como martelinho de ouro.

Nós, brasileiros, viramos especialistas na arte de recuperar carros levemente amassados sem precisar trocar a peça ou refazer a pintura. Algo que torna o serviço mais rápido e barato. Uma equação de resultados interessantes o suficiente para chamar a atenção dos europeus, que têm seus mimos de quatro rodas castigados anualmente com as chuvas de granizo do verão. É justamente nessa época, aliás, que os martelinhos de ouro daqui viajam para encher suas contas bancárias de euros. Passam toda a temporada de dilúvios de gelo por lá. “Já faz quatro meses que saí do Brasil”, contabiliza Murilo, falando de Berlim. “Saí pra fazer um serviço na Turquia, depois apareceu um na França, daí na Suíça... Lá trabalhei em uns 30 Porsches. Aí soube de uma chuva que tinha caído na Alemanha. Vim e faz uns 40 dias que estou trabalhando aqui. Vou sempre atrás do granizo.”

Todo mundo demitido

Nessa busca pelas tempestades de gelo, Murilo chegou a ficar três anos levando uma vida de nômade pela Europa. “Aproveitei pra fazer vários contatos. Nessa profissão é preciso conhecer as pessoas certas para ser chamado pros serviços. Um monte de gente queria estar aqui no meu lugar, mas não tem os contatos que eu tenho.” Murilo, claro, não revela quem são esses cafetões da martelagem. Não quer atrair concorrentes. Além disso, é obrigado a manter alguns sigilos. É que, eventualmente, esses funileiros artesanais são chamados para desamassar carros zero-quilômetro atingidos por chuvas de granizo ainda nos pátios das montadoras. E nenhuma marca quer divulgar ao público que vende veículos zero já sinistrados. “Já deu o maior problema isso”, conta. “Em 2007, vim fazer um serviço numa fábrica alemã que estava com 30 mil carros amassados. Sabe o que aconteceu? O fotógrafo de uma revista entrou lá escondido e tirou fotos dos carros, da gente trabalhando. Saiu na revista e no dia seguinte todo mundo foi demitido.”

Marca registrada

É incerta a história sobre o início dessa técnica de reparar amassados na base da martelada. Há quem diga ser uma invenção totalmente brasileira. Alguns discordam, dizem que nós apenas aperfeiçoamos a arte. O nome “martelinho de ouro”, contudo, tem dono. Pertence a Pedro Souza Santana, um senhor de 63 anos, e é uma marca oficialmente registrada

 

“Nessa profissão, é preciso conhecer as pessoas certas para ser chamado para os serviços (internacionais). E é preciso manter certos sigilos...”

 

“Demos entrada no pedido de registro em 1994, mas só saiu em 2005”, conta Edvaldo Santana, filho de Pedro. E ninguém tentou registrar antes disso? “Sim! Se você entrar no site do Instituto Nacional de Propriedade Industrial, que regula essa questão de marcas, você verá todos os pedidos de registro para esse nome.” Entramos no site. Uma rápida pesquisa no nome “martelinho de ouro” nos leva a uma lista de 16 pedidos de marca. O mais antigo é de 1983 – o processo já aparece como extinto. O único que teve o registro efetuado é a Reparadora de Autos Martelinho de Ouro. Justamente a empresa de Pedro e Edvaldo. E por que só eles conseguiram? Pedro gosta de dizer e ostenta no site da firma: foi o pioneiro.

“Eu não inventei o serviço, mas fui eu que lancei no mercado”, ele diz – e logo começa a contar sua história. Trabalhou como funileiro na fábrica da Volkswagen, no ABC paulista, entre 1969 e 1980. Nos últimos cinco anos de serviço fez a chamada funilaria artesanal. Isso nada mais era do que retirar pequenos amassados da lataria já no final da linha de montagem, valendo-se apenas de um martelo. Tudo de maneira cuidadosa, para evitar que o carro voltasse ao setor de pinturas. Quando deixou a montadora, Pedro resolveu lançar nas ruas o serviço que havia aprendido dentro da fábrica. Fez sucesso. “Tinha um revendedor que comprava carros amassados, mas sem danos na pintura, e levava pra eu puxar a lataria de volta. Ele me via dando marteladas e não acreditava. E começou a dizer que eu tinha um martelinho de ouro.” Daí o nome.

Além de Pedro, apenas mais um funileiro saído da Volks usava a técnica naquele início de anos 80. Era Onofre Veiga, que ganhou o propício apelido de Uri Geller, o paranormal israelense que entortava talheres com o poder da mente. Eles só não imaginavam que, décadas depois, incontáveis levas de brasileiros viajariam o mundo para executar o tal serviço.

Do próprio bolso

Um vídeo no YouTube de quase três minutos mostra alguns estilosos carros esportivos da BMW sendo recuperados. Em seguida, exibe as ruas de uma pequena cidade europeia. A legenda diz: “Talentoso martelinho restaurando amassados de granizo na França. Dois meses de trabalho”.

 

“Na França, eram 4 mil carros danificados. Entre 850 e 1.200 euros cada carro desamassado”

 

O responsável pela filmagem é Rogério Carmieto. Há 12 anos ele transita por países do exterior para oferecer seu trabalho. “Nessa viagem da França eram 4 mil carros danificados no pátio da montadora. Para cada carro desamassado pagavam entre 850 e 1.200 euros. São veículos zero-quilômetro, cara. Você não pode deixar um amassadinho.” Considerando que eles fazem até dois carros por dia, os valores soam atraentes. Mas Rogério logo joga o balde de água fria. “Quando viajamos pagamos tudo do próprio bolso. Eu compro a passagem, pago o hotel, se tiver que alugar carro eu alugo...”

É preciso contar com os imprevistos também. Certa vez, quando estava no Texas para arrumar algumas dezenas de carros castigados pelo granizo, Rogério foi surpreendido por uma nova chuva de gelo – e o veículo que ele havia alugado também acabou cravejado. Pergunto se ele mesmo desamassou o carro antes de devolver. A resposta vem direta. “O quê!? Devolvi como estava. Se pelo menos eles me pagassem pra arrumar...”

Sigam os bons

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Com a inédita sétima colocação nas Paraolimpíadas de Londres, os atletas brasileiros mostraram mais do que competitividade e superação: ficou clara sua profissionalização. Os medalhistas Odair Santos, Daniele Bernardes e Daniel Dias contam como é viver com 100% de dedicação ao esporte

O maior medalhista brasileiro na história dos Jogos Paraolímpicos já é conhecido geral. O assédio em torno dele cresceu proporcionalmente ao fenômeno que alcançou nas piscinas londrinas: em todas as provas individuais de que participou, chegou em primeiro lugar. Seis ouros em seis competições. Com apenas duas Paraolimpíadas no currículo, ele coleciona hoje 15 medalhas na natação, sem contar a grande leva de ouro e de prata acumulada anteriormente em disputas internacionais. E ainda acaba de estabelecer quatro novos recordes mundiais e um paraolímpico. “Daniel Dias não é apenas o maior atleta paraolímpico da história do esporte nacional, mas um dos maiores atletas brasileiros de todos os tempos”, afirma o medalhista olímpico Flávio Canto.

O que poucos conhecem é a saga a que o atleta de 24 anos foi submetido antes de embarcar para a Inglaterra, durante o intenso período de treinamento dos jogos oficiais. Em junho, enquanto se preparava para viajar rumo ao Centro de Alto Rendimento de Sierra Nevada, na Espanha, onde costuma treinar aclimatação a 2.320 metros de altitude, sua avó faleceu. No mesmo período, seu treinador, Marcos Rojo, o Marcão, 51, passou por uma cirurgia cardíaca que incluiu duas pontes de safena e uma mamária, além de um mês de repouso. Como se não bastasse, 15 dias antes de ir para Londres, a mãe de Daniel teve de fazer uma operação de hérnia umbilical.

Se treinar sozinho a três meses da maior competição paraolímpica do mundo já é suficientemente tenso, imagine com a família baqueada. No entanto, segundo os mais chegados, Daniel tem foco de sobra. E um pouco mais do que isso. “Ele tem uma força espiritual grande”, afirma Marcão. Enquanto o técnico se recuperava em casa, recebia visitas constantes de Daniel junto com outros atletas. “No fim, ele sempre puxava uma oração”, conta o treinador, praticante de mountain bike e ex-triatleta, ainda surpreendido com o fato. “Eles me passaram muita força e coloquei os pés no chão. Esse lado do Daniel me ajudou. Em menos de um mês, subi no avião para Sierra Nevada.” Pouco depois, Daniel se consagrava como o segundo maior campeão das Paraolimpíadas de Londres, atrás apenas da nadadora australiana Jacqueline Freney, com oito ouros.

“Tudo é consequência do treino antes da competição, se você gosta do que faz as coisas fluem; a natação é meu trabalho. Às vezes, pode parecer que não vai dar certo, mas se você persistir dá para virar um campeão”, avalia o atleta de Camanducaia MG, que nasceu com má-formação congênita nos dois membros superiores e na perna direita e, por isso, compete na classe S5, para nadadores com limitações físico-motoras. “A espiritualidade sempre fez parte da minha vida. Sou evangélico desde a infância e minha família foi fundamental para eu me aceitar como sou”, explica.

 

“O esporte paraolímpico saiu do subterrâneo do olímpico para um patamar de superação, admiração e respeito”, comenta o medalhista olímpico e velejador Lars Grael

 

Há quatro anos, desde a Paraolimpíada de Pequim, onde conquistou quatro medalhas de ouro, quatro de prata e uma de bronze, ele treina de seis a sete horas por dia, de segunda a sábado, intercalando natação, musculação e pilates. Sua equipe conta com nutricionista, fisioterapeuta, cardiologista e dois preparadores físicos, além do treinador. Recebe patrocínio da Embratel e do Mackenzie, além do Bolsa Atleta e do projeto Time São Paulo Paraolímpico, que fornece cerca de R$ 100 mil por ano para cada atleta selecionado, verba pública que pode ser gasta em intercâmbios e treinamento.

Assim como Daniel, diversos atletas paraolímpicos fazem parte de programas coordenados pelo Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) e conseguiram viver do esporte graças também aos patrocínios. “Depois de Pequim, avaliamos o cenário das modalidades e o percentual de crescimento de cada uma ao longo das últimas décadas. Com isso conseguimos liberação de investimento do governo federal”, explica Edilson Tubiba, diretor técnico do CPB. Além de ter alcançado seu melhor desempenho em Paraolimpíadas na edição de Londres, o Brasil atingiu a meta de ser o sétimo colocado no quadro geral. Com 21 medalhas de ouro, 14 de prata e oito de bronze (43 no total), ficou à frente de países como Alemanha, Holanda e Canadá. “O esporte paraolímpico saiu do subterrâneo do olímpico para um patamar de superação, admiração e respeito”, comenta o medalhista olímpico e velejador Lars Grael, que perdeu parte de uma das pernas num acidente em 1998 e chegou a ocupar o cargo de secretário nacional de Esportes na época. “A boa preparação do Comitê Paraolímpico Brasileiro é a principal razão desse avanço. O Brasil já chegou à liderança pan-americana e caminha para se colocar entre as cinco potências paraolímpicas no Rio em 2016.”

Corrida contra o tempo
Contudo, enquanto a injeção de recursos ainda não chega à formação de base, muitos contam com a família – e com a sorte – para conquistar mais do que troféus. O fundista Odair Santos, 31, prata nos Jogos Paraolímpicos de Londres, começou no atletismo ainda moleque, aos 10 anos, por influência de um tio que participava de corridas de rua. Nascido em Oswaldo Cruz, interior paulista, filho de uma doméstica e de um ajudante geral, foi só na terceira série que notou algo estranho em sua visão. “De repente, passei a levantar e ir até a lousa para entender o que estava escrito”, lembra. A professora chamou sua mãe: “Odair tá diferente, precisa de oculista”, disse ela. Mas foi o oftalmologista que cravou o diagnóstico: retinose pigmentar, doença genética que destrói as células da retina. Quando passou a usar cadernos especiais para letras grandes e precisou de reforço escolar, vieram os olés das meninas. Mesmo assim, correu dos 10 aos 17 anos e fez uma coleção de medalhas e troféus em campeonatos regionais. Só parou porque precisava de dinheiro para ajudar os pais e foi trabalhar numa fábrica de embalagens para pizza em Limeira, onde vive até hoje.

Dali, Odair passou a vender marmitas preparadas pela família. “Eu fazia as entregas de moto, olha que loucura”, relata, rindo. Com o tempo, passou a enxergar somente vultos. “Hoje defino uma pessoa pela voz dela”, diz.

Um dia, uma amiga deu a letra: “Odair, vá aprender braile”. Na instituição de ensino, ele conheceu o atual técnico, Fábio Breda, e voltou às pistas aos 22 anos, movido também pela antiga curiosidade de andar de avião. “Se você alcançar o índice a gente vai para os mundiais”, avisou Breda. Em 2003, nos Jogos Parapan-Americanos de Mar del Plata, ele ganhou três ouros. Com a colocação, passou a receber R$ 700 do Bolsa Atleta. No ano seguinte, em Atenas, foi prata nos 1.500 e 5 mil metros e bronze nos 800 metros, na classe T12, para atletas de baixa visão. Em 2005, veio o patrocínio da Caixa. Virou recordista mundial, ganhou três bronzes em Pequim, patrocínio da Nike e entrou para o Time São Paulo. Em 2010, Odair mudou de classe e passou a competir na T11 (perda total de visão). “Foi bem dolorido, encarar a reclassificação é difícil até hoje. Tenho um guia 24 horas.”

 

“Antigamente as pessoas viam o esporte paraolímpico como inclusão social. Não percebiam que a gente treinava todo dia para chegar lá”, afirma a judoca Daniele Bernardes

 

Em setembro do ano passado, Odair casou. Foi com a foto da filha, Julia, 4 meses, colada aos óculos que ele disputou a final nos 1.500 metros, em Londres, e trouxe a prata. Integrante também do Projeto Ouro, possui uma equipe formada por fisioterapeuta, psicóloga, fisiologista e dois atletas guias, além do treinador. Duas vezes por semana, pratica musculação. À noite, após o treino diário, estuda educação física em Limeira. “Gravo as aulas e depois transfiro o áudio para o computador.”

“Antigamente as pessoas viam o esporte paraolímpico como inclusão social. Não percebiam que a gente treinava todo dia para chegar lá”, afirma a judoca Daniele Bernardes, 28, que, como Odair, possui deficiência visual. Devido a um contragolpe perfeito, que circulou em todas as redes sociais, contra a rival venezuelana Naomi Soazo, a paulista de São Bernardo do Campo acaba de voltar de Londres com uma medalha de bronze, repetindo o feito de Atenas e Pequim. Competindo na categoria meio-médio (até 63 quilos), ela também ganhou prata nos Jogos Parapan-Americanos de Guadalajara e ouro no último Mundial da IBSA, na Turquia.

“A Daniele é uma das atletas mais experientes da equipe brasileira. Ganhou sua primeira medalha em Atenas, era evidente que ela era especial”, afirma o judoca Flávio Canto. “O movimento paraolímpico já passou há pelo menos duas décadas da fase de um evento de promoção de reintegração social dos participantes. Hoje é uma competição de altíssimo nível técnico”, garante.

Daniele possui visão monocular, enxerga apenas com um olho. Não se sabe se é de nascença, mas o problema foi descoberto quando tinha 2 anos. Aos 10, os médicos perceberam que seu nervo ótico havia atrofiado. Filha de um professor de judô, ela conta que aprendeu a lutar aos 3 anos. “Meu pai tinha uma academia na nossa garagem e um local de treino de judô no porão.” A academia mudou de endereço e, hoje, Daniele utiliza o espaço apenas como complemento aos treinos. Boa parte deles ocorre em São Paulo, junto a atletas convencionais. Ao todo, são quatro horas diárias de preparação, bancadas pelo Bolsa Atleta e pelo Time São Paulo. Formada em pedagogia, planeja montar um projeto ligado ao judô, futuramente. Com a repercussão da última Paraolimpíada, ainda estranha quando é reconhecida na rua. “Essa competição foi a de maior impacto na minha vida. Muita gente chega me parabenizando. Agora as pessoas estão nos tratando como atletas.”

Profissão: voltar vivo

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Lourival Sant’Anna*, correspondente de guerra do Grupo Estado, escreve sobre a estranha vocação que move fotógrafos a extrair arte e beleza de zonas de conflito. E mergulha na rotina de fotógrafos como André Liohn e Maurício Lima

Passava das dez da noite e eu estava cada vez mais inquieto, enquanto escrevia minha matéria no “centro de imprensa” improvisado num salão do hotel El-Fadeel, em Benghazi. Os fotógrafos Paulo Nunes dos Santos e David Sperry tinham ido naquela manhã para o front em Ajdabiya, 160 quilômetros a oeste, e já deveriam ter voltado. De repente, Paulo, um português de 34 anos radicado na Irlanda, surgiu na entrada do salão. Nossos olhares se cruzaram. Olhei para os lados e não vi David. Então entendi sua expressão de desespero. Levantei e fui correndo até ele.

“O David ficou nas dunas”, disse ele. “Na verdade, não sei o que aconteceu com ele. Quando escureceu, o motorista me chamou e disse que ia embora imediatamente. Eu disse que tinha de encontrar o David primeiro. Ele disse que se eu não viesse com ele já, ele voltaria sozinho. Eu não tinha outra saída a não ser voltar.”

Passaram-se duas longas horas. Até que David, um americano de origem coreana, 28 anos, apareceu na entrada do salão. “Voltei num ônibus para rebeldes que não têm carro para ir lutar”, contou ele sorrindo. Eu não sabia se ficava bravo ou feliz. Paulo e David já tinham nos passado um susto poucas noites antes, quando foram atacados por franco-atiradores à caça de jornalistas, ao cruzar do nosso hotel, o único com internet, para o hotel onde dormiam, a 500 metros dali. Os dois se jogaram no chão e viram uma granada cair na calçada perto deles, mas ela falhou.

David mostrou as fotos no monitor de uma das três câmeras cobertas de areia que ele trazia penduradas no pescoço. Os projéteis disparados pelos tanques das forças leais ao regime líbio enchiam todo o quadro de algumas das imagens, como bolas de fogo que brilhavam na escuridão. David usava lentes normais. Para fazer aquelas fotos, ele tinha estado absurdamente perto dos tanques. Lembrei da frase de Robert Capa, o húngaro que praticamente fundou a fotografia de guerra com sua cobertura da Guerra Civil Espanhola: “Se suas fotos não estão boas o suficiente, você não está perto o suficiente”.

Estive com Juca Varella no Iraque, Jonne Roriz no Haiti, Armando Favaro no Irã, Evelson de Freitas na África do Sul, Dida Sampaio na Rússia, Wilson Pedrosa em Honduras, porém costumo partir sozinho nas minhas andanças, e isso inclui as guerras. Mas convivo muito com fotógrafos, que muitas vezes também andam desacompanhados nessa experiência essencialmente solitária – o que pode ser mais solitário que o convívio com a morte? – que é a cobertura de guerra.

Fotografo e gravo tantos vídeos que, quando a revista Trip me ligou para falar desta matéria, já ia explicando que não sou fotógrafo de guerra, até entender que eu seria o autor, não um entrevistado. Estou tão absorto no ofício de contar histórias que não vivo mais as diferenças entre escrever, falar, fotografar e filmar. O fotógrafo brasileiro André Liohn, vencedor deste ano da Medalha de Ouro Robert Capa, o mais importante prêmio da fotografia de guerra, também se preocupa mais com a história que com sua identidade de fotógrafo: “Minha fotografia é só uma desculpa para eu estar ali, participando daquilo tudo e de alguma forma opinando sobre aquilo que está acontecendo”, disse André em abril ao programa Roda viva, da TV Cultura. “E, se posso participar de forma mais ampla fotografando e filmando ao mesmo tempo, melhor ainda. Gravo vídeos em situações que vejo que o filme conta melhor a história.”

André, 39 anos, vive com a mulher e dois filhos pequenos em Ariano Irpino, na Itália. Cruzei com ele uma vez no Haiti e duas na Líbia, e estivemos simultaneamente em vários outros países. No momento, está na Síria, para a revista alemã Der Spiegel.

Direto de Cabul
Não há um perfil uniforme dos fotógrafos de guerra. Maurício Lima, hoje o mais atuante fotógrafo de guerra brasileiro, ao lado de André, tem uma vivência diferente na questão multimídia: “Não consigo pensar em duas coisas ao mesmo tempo. Fotografar já é suficientemente difícil”, escreveu Maurício, que respondeu minhas perguntas por e-mail, de Cabul, onde está cobrindo o conflito do Afeganistão para o jornal The New York Times.

“Ninguém gosta de cobrir conflitos”, diz Maurício, 37 anos, solteiro, que teoricamente mora em São Paulo, mas passou oito dos 12 meses de 2011 viajando a trabalho. “É necessário e fundamental. É uma vertente na fotografia que, se bem executada, pode servir de agente transformador e de denúncia na vida das pessoas porque mexe com a emoção, o sentimento, a sensibilidade do fotografado e do fotógrafo.”

Maurício usa lentes 50 mm (normal) e principalmente 35 mm (grande-angular), que o obrigam a estar muito, mas muito próximo da cena. Ele vê a proximidade como necessária não só do ponto de vista técnico, descrito por Robert Capa, mas da compreensão e do sentimento do que se passa: “Para isso, você precisa estar perto, respirar aquele sentimento que não deixa dúvida sobre a que você veio. Mas isso depende essencialmente da dedicação e da perseverança do fotógrafo, daquilo em que ele acredita. Sou inquieto, curioso, de uma certa forma inconformado com muito do que já testemunhei até agora. As pessoas querem saber com mais profundidade se aquilo ainda existe, de que forma e por que nas suas nuances mais particulares. É uma fotografia ambígua que, ao mesmo tempo que diz que isso aconteceu ou acontece, quer dizer na verdade que isso não deveria acontecer novamente, ou que deveria parar de acontecer imediatamente”.

Sobre os conteúdos emocionais que se acumulam no peito do correspondente de guerra e o encorajam a encarar a morte, Maurício fala em inconformismo e André, em revolta: “A revolta me levou a cobrir guerra. Quero expressar na fotografia o momento de trauma. A vida da pessoa vai ter que mudar. A pessoa vai ter que tomar decisão sobre pra que lado ela vai. A vida como era até então não vai existir mais. A pessoa que vê essa foto, espero que também se relacione com esse momento de trauma e diga ‘não vi isso antes, não senti isso antes’. Não é chocar. É ter consciência de que a vida tem que tomar direção nova. Me identifico com toda pessoa que se insatisfaz com a realidade e quer mudar isso”.

À pergunta sobre se é “viciado em adrenalina”, André responde: “De jeito nenhum. Eu dirijo devagar”. Maurício: “Sou viciado em distintas culturas, etnias, credos, na paixão por contar histórias das vidas das pessoas afetadas direta e indiretamente por conflitos, em usar a fotografia como canal de voz para comunidades e grupos de pessoas esquecidas pelo noticiário nos lugares mais remotos do planeta, por documentar as transformações do mundo moderno com maior profundidade. Isso é o que me move como ser humano e como fotógrafo”.

Num simbolismo do quanto suas imagens são impulsionadas por sentimentos que vêm de dentro deles, ambos os fotógrafos têm problemas de visão.

Como todo correspondente de guerra, André e Maurício tiveram experiências que os marcarão para sempre. De todos os tipos. Durante a batalha de Misrata (Líbia), em abril do ano passado, um morteiro caiu no local onde André cobria o resgate de escudos humanos pouco tempo depois de ele sair de lá, matando os fotógrafos Tim Hetherington e Chris Hondros e ferindo Guy Martin e Michael Christopher Brown. Por falta de eletricidade para refrigeração, não havia meio de manter os corpos ali, e os médicos do hospital de Misrata perguntaram a André o que deviam fazer com eles. André não tinha contato com suas famílias nem empregadores. O jeito que encontrou foi anunciar a situação no seu Facebook, mesmo sabendo que as famílias se chocariam com a notícia. Rapidamente a Getty Images, para a qual ambos os mortos trabalhavam, entrou em contato, e André apagou o texto do Facebook.

Maurício fez um ensaio fotográfico com Ayad Ali Brissam Karim, um menino iraquiano que perdeu a visão do olho direito e ficou somente com 20% da do olho esquerdo. Ayad foi obrigado a deixar a escola porque sofria bullying devido aos ferimentos de queimadura no rosto. Maurício encontrou o menino e seu pai nas ruas de Bagdá, quando pediam ajuda com um prontuário médico em mãos. “Quase dois anos mais tarde, soube através de uma editora da revista Time que esse ensaio havia sido publicado à época no The Washington Post, e que uma família americana se sensibilizou, foi ao Iraque em busca de Ayad e o levou para tratamento de córnea nos EUA”, conta Maurício. “Essa história mexeu profundamente comigo antes mesmo de saber das consequências. Fez pensar que valeu a pena o comprometimento por documentar a guerra do Iraque, que foi a maior vergonha ocorrida nas últimas décadas.”

Ser fotógrafo de guerra é viver confrontado com a própria impotência diante da barbárie e da morte. Mas é também, em um dia de sorte, fazer a diferença em uma vida que seja.

*Lourival Sant'Anna é correspondente de guerra do Grupo Estado

Chegou a hora

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Nas vésperas da sexta edição, o prêmio Trip Transformadores tem motivos de sobra para celebrar. Dos 65 homenageados a sessões de cinema exclusivas em Nova York, a iniciativa extrapolou, com folga, as paredes do Auditório Ibirapuera

Já foram 65 homenageados de diferentes áreas. Raí, Ronaldo Fraga, Miguel Nicolelis e Hermano Vianna estão entre esses nomes. Mais de 5 mil pessoas já estiveram no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, para acompanhar o Prêmio Trip Transformadores e shows como os de Karina Burh, Luiz Melodia, Barbara Eugênia e Céu. O evento extrapolou o dia da premiação e ganhou site alimentado o ano todo, debates (como o de Criolo e Danilo Miranda, este ano) e chegou até Nova York, onde aconteceu uma exibição do filme Xingu, de Cao Hamburger, em junho passado.

O prêmio cresceu muito e foi além das fronteiras brasileiras, mas a ideia original continua a mesma desde o primeiro minuto: jogar luz sobre pessoas que conseguem, com suas ações, fazer um mundo melhor e transformar pessoas e lugares.

Neste mês de outubro chegamos à sexta edição do prêmio. Na noite do próximo dia 24, o Auditório Ibirapuera vai novamente ser o palco da homenagem às dez personalidades que, nesta edição de 2012, destacamos como transformadores. Mais do que uma celebração, será um momento único de conexão entre pessoas no palco e na plateia, que comungam com um mundo melhor. Como um ciclo que se renova e se refaz a toda hora, é o momento de nos encontrarmos para celebrar.

Você sabia?
Curiosidades sobre o Trip Transformadores 

2007 foi o primeiro ano do prêmio.

2009 foi o primeiro ano que o ator Lee Taylor apresentou o prêmio. Ele segue na função até hoje.

2012 foi o ano que chegamos a Nova York, em um evento especial com a exibição do filme Xingu, de Cao Hamburger

14 shows já embalaram as premiações, entre eles os de Luiz Melodia, Karina Buhr e Edgard Scandurra

5 mil pessoas já passaram pelo Auditório Ibirapuera para assisitr às premiações e 65 pessoas já foram homenageadas

36 candidatos a 12 categorias eram a base das duas primeiras edições do prêmio, em 2007 e 2008

2 foram os homenageados especiais ano passado: José Claudio e sua mulher, Maria, ativistas assassinados no Pará por defender a floresta

Dois homenageados faleceram: O pedagogo Antonio Carlos Gomes, premiado em 2008, morreu ano passado aos 61 anos. Vanete Almeida, coordenadora da Rede de Mulheres Rurais da América Latina e homenageada em 2009, faleceu em setembro passado, aos 69 anos.

Pedro “Sorongo” Santos

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Música na escalada da vida: a incrível história do disco que uniu a MPB à macrobiótica, filosofia indiana, climas selvagens e sons da natureza e, 42 anos depois de lançado, ressurge como cult entre músicos como Seu Jorge, Kassin e Mariana Aydar

De onde viemos e o que ainda somos na escala da vida? A capa do LP Krishnanda, lançado em 1968 pelo percussionista e compositor Pedro Santos, tenta escalonar. Em uma colagem circular, espécie de mapa evolutivo, aparecem minérios, amebas, flores aquáticas, moluscos, peixes, anfíbios, larvas, insetos, aves e feras ao redor de um grande gorila e um pequeno homo ancestral. Nas pontas, as mãos de Deus e do primeiro homem, detalhe recortado de A criação de Adão, de Michelangelo, talvez simbolizando toda a vida que surge entre aquele quase toque.

Não é uma capa comum, como nada no disco em si e em seu autor. Pedro Santos, também conhecido pelo nome do principal ritmo que inventou, Sorongo, era especial. Além de músico inventivo e grande ritmista que tocou com Orquestra Tabajara, Maria Bethânia, Baden Powell, Clara Nunes, Jards Macalé e tantos outros, Sorongo era altamente espiritualizado. Presente neste mundo entre 1919 e 1993, expressava grandes pensamentos através de músicas, letras, escritos, desenhos, conversas. Comumente lembrado como filósofo por muitos que com ele conviveram, Pedro Santos criou obras muito além de qualquer escala evolutiva da música brasileira.

"Surgir é surgir, multiplicar é florir"

Hoje, quase 20 anos depois de sua partida e mais de 40 da gravação de Krishnanda, seu pensamento musical e espiritual encontra ressonância renovada. O produtor Kassin, que lembra ter descoberto o disco em meados dos anos 1990, comenta: “Pedro é um símbolo do experimentalismo brasileiro, um revolucionário. Acho quase inacreditável que ele tenha conseguido realizar esse disco”. A cantora Mariana Aydar, que costumava abrir seus shows interpretando “Um só”, de Pedro Santos, conta que fica sempre emocionada com a música de Sorongo. “É de uma profundidade ímpar, me leva a lugares muito nobres, onde poucas músicas conseguem chegar”, explica. “Uma mistura de plenitude e medo.” Pupillo, baterista da Nação Zumbi e do grupo Almaz, recorda ter ouvido Krishnanda pela primeira vez em um ensaio. “Foi um divisor de águas pra mim, pois Pedro Santos mostra nesse disco que um grande ritmista, além de pesquisar novos timbres e texturas, pode criar melodias maravilhosas e mexer com palavras que complementam os temas com maestria.” Foi dele a ideia de incluir “Água viva” no repertório do show do projeto Seu Jorge & Almaz, com o qual fez duas turnês pelos Estados Unidos e pela Europa.

Em seu álbum de estreia, de 2011, a big band paulista Bixiga 70 regravou “Desengano da vista”, de Sorongo. “O Pedro Santos tinha a capacidade de compor um tipo de canção que tem a ver com a poesia oriental, ideograma”, diz Mauricio Fleury, pianista do conjunto. “As canções parecem mandalas, que, quando você olha de todos os lados, é como se estivessem pra cima. Como fractais ou aquela famosa representação do yin-yang, uma geometria perfeita.” Tamanho tem sido o séquito de fãs (que inclui outros garimpeiros musicais, como Ed Motta e DJ Nuts) que o selo Polysom está relançando o disco em vinil de 180 gramas com remasterização a partir das fitas originais. A gravadora Sony BMG também promete relançar o álbum em CD.

"Você é você pra onde for"

Talvez a história do Krishnanda remonte a 1945, quando Pedro Santos retornou da Segunda Guerra Mundial – pandeirista na adolescência, durante o serviço na Itália Pedro continuou ligado à música, integrando a banda dos pracinhas. “Ele voltou emocionalmente abalado”, contou sua viúva Sylvia. No Rio de Janeiro, entendeu que a música era definitivamente o seu caminho. Trabalhando como porteiro de rádio, passou a conhecer importantes figuras e a elas mostrar seu toque e suas composições. Pela década de 1950, viu suas primeiras canções gravadas por gente como Mário Mascarenhas, Orlando Silveira e Michel Daud. Em pouco tempo, já estava acompanhando ídolos como Jacob do Bandolim, Altamiro Carrilho e a principal formação instrumental de seu tempo, a Orquestra Tabajara.

No início dos anos 1960, Sorongo era não apenas um músico reconhecido por sua criatividade como emprestava seu nome para um novo ritmo, “uma variação do samba, que por sua vez é oriundo do batuque”, segundo o Dicionário do folclore brasileiro, de Câmara Cascudo. Elza Soares, Angela Maria e Baden Powell foram alguns intérpretes da nova levada. No disco Tanganyka, de Altamiro Carrilho, as invencionices de Pedro Santos foram tantas que o flautista requisitou um crédito à parte para o percussionista: efeitos especiais.

“Ele usava os instrumentos de um modo muito único”, recorda o violonista Sebastião Tapajós, que em 1972 gravou dois álbuns em dupla ao lado de Sorongo. “Ele era empírico, não tinha uma educação formal, mas sabia tudo de contar as entradas que tinha que fazer, os compassos etc. Botava o tamborim entre as pernas, pegava o reco-reco e botava no dedão, tirava sons que você não imagina. O pessoal ficava alucinado.” Além do domínio dos ritmos e da sonoplastia, Sorongo dedicava-se a criar seus próprios instrumentos, como o bambussom e o sorongaio – que juntava em uma estrutura tambores com diferentes timbres, ideal para a execução de seu ritmo inventado. Bambus, chocalhos de água, berimbaus de boca, colheres, tubos de desodorantes, cocos e apitos plásticos também faziam parte de seu set, assim como caixas de fósforo, ganzás, tamborins, cuícas, tumbadoras, tambores, agogôs, pandeiros, bongôs e maracas.

“Pedro Sorongo, que ser humano!”, lembra Bebeto Castilho, baixista e flautista do Tamba Trio. “Ele parecia que brilhava, com um jeito calmo de falar. Sempre chegava e apaziguava. Se tivesse alguém nervoso, esse alguém iria ficar calmo com suas frases curtas e sempre sábias.” Musicalidade sem limites, filosofias próprias, aura zen, homem de pensamento livre e qualidade únicas. “Diferente, sabe?”, diz Tapajós. “Diferente na música e na vida. Mas o lado espiritual sempre veio na frente.”

"Eu sou de uma porção que nem pó"

Em entrevista ao Correio da Manhã de 1968, Santos dizia: “O círculo da vida impõe ao homem renovação, começando sempre em cada geração que surge, para melhor ressurgir nas gerações que vêm, obrigando a humanidade a encetar o caminho que sempre foi, mostrando a todos que todos são apenas um”. Sua revolução pessoal foi movida pela descoberta da ioga, da macrobiótica, do aprofundamento da filosofia indiana. Largou o emprego de músico fixo na TV e passou a manufaturar baquetas e bolsas para instrumentos. A convite do produtor Hélcio Milito, ao longo de duas semanas em 1968, canalizou toda sua musicalidade e espiritualidade para, em duas semanas registrar, em três canais, sua obra-prima, Krishnanda.

Envolvendo as letras existencialistas, a paisagem é de climas amorosos e selvagens, sons misteriosos de um Brasil pré-sintetizadores, infinidade de brinquedos percussivos, marimbas, a voz rouca de Santos acompanhada de coros femininos e ocasionais cordas, pianos, violões, guitarras e arranjos de sopros. O tutor de Sorongo na ioga, professor Hermógenes, recentemente buscou explicar o título do álbum: “Etimologicamente parece que é ananda, felicidade suprema, gerada por Krishna, que é um avatar, a encarnação divina na Terra do mais puro amor”.

“É muito interessante como ele trabalha em colaboração, sempre somando”, observa Mauricio Fleury, do Bixiga 70. “É brilhante isso, um artista que, mesmo com tantas ideias, não estava fechado numa bolha. Sua obra vai vir mais e mais à tona conforme os anos forem passando. Vai sempre aparecer coisa que ele gravou, ideia que ele deu, instrumento que ele criou.”

A redescoberta de um grande artista carrega sempre a simbologia de novos caminhos que se abrem, novas possibilidades descongeladas do tempo e oferecidas aos novos contextos. No caso de Pedro Santos e seu Krishnanda, mais do que um novo status de cult, o que se oferece são suas ideias e seus sons únicos. Você vai ouvindo e ouvindo e, de repente, as ideias de Sorongo já estão dentro da gente. E nos transformando.

Ouça o disco completo aqui:

Vai lá: http://pedrosorongo.blogspot.com.br

Lemann bróders

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O Arpoador, canto de pedras com ondas perfeitas colocado estrategicamente entre Ipanema e Copacabana, foi o esplêndido berço da turma que procurava uma vida diferente da traçada para a juventude no final dos anos cinquenta. Desse “laboratório de lifestyle” saíram não apenas boa parte dos contornos da cultura de praia carioca (e brasileira), mas percepções e insights fundamentais para a formação de um dos mais notáveis empresários do país – e, entre outras coisas, o homem mais rico do Brasil

Foi há 60 anos, mas ele descreve como se tivesse acontecido na semana passada. Arduíno Colasanti chegou ao canto esquerdo de Ipanema e viu um broto espetacular na água. “Ela estava descendo umas marolas de peito. Só havia nós dois na praia, e eu lhe ofereci minha tabuinha de pegar jacaré”, conta. Ela tinha 15 anos; ele, 16 – apenas cinco de Brasil. “Eu era muito italianinho ainda. Minha prancha tinha pintada a loba de Roma.” Filha da primeira mulher a usar maiô de duas peças no Brasil (a bela alemã Miriam Etz), a moça tinha puxado à mãe também no comportamento avançado. Seu pai, Hans, era um artista plástico boêmio, amigo de Paul Klee e Alexander Calder. Não demorou muito até que Ira (batizada Iracema) e Arduíno dessem as mãos pela primeira vez, em uma sessão de Scaramouche no cinema Metro, trocassem referências literárias avançadas para suas idades e daí engrenassem um namoro.

Cultos e belos, louríssimos, por três anos os dois formariam o mais admirado casal do Arpoador, naquela época o point preferido dos gringos e dos adeptos da pesca submarina. Entre 1955 e 1963, a mistura de estrangeiros de modos liberais e jovens esportistas com sede de contato com a natureza gerou, segundo a definição de Ruy Castro, “o grande laboratório de costumes da cidade”. Em crônica, Drummond arriscou definir assim o pedaço de areia: “É aquele lugar dentro da Guanabara e fora do mundo aonde não vamos quase nunca e onde desejaríamos (obscuramente) viver”.

“Havia na praia os grupinhos: o dos alemães, o dos franceses... Os brasileiros que não praticavam atividades esportivas tinham preguiça de andar até o Arpoador”, lembra Arduíno. Além da beleza das pedras, cenário onde o cronista João do Rio jurou ter visto Isadora Duncan dançar nua, em 1917 (“uma daquelas paisagens de Shelley em que a natureza parece findar-se no inebriamento espiritual de sua própria luxúria”), havia as ondas, muito melhores que as da vizinhança para a prática do jacaré.

Arduíno Colasanti conta que o primeiro que viu em pé sobre uma prancha foi Paulinho Preguiça. “Antes, só em revista”

Arduíno pegava o bonde 11 do Jardim Botânico, onde morava, até o Bar 20, no lado oposto de Ipanema, e de lá tomava o Gal (tratamento popular dispensado ao general) Osório para saltar no ponto final, a cerca de um quilômetro da Pedra do Arpoador. O namoro com Ira lhe facilitou as atividades marítimas. “Ela morava ali perto, na rua Joaquim Nabuco, e eu guardava minhas tralhas de praia lá: a tábua de jacaré e o material de mergulho. Se tivesse onda, era jacaré. Se estivesse manso, mergulho e pesca.”

Preguiça e Bisão

A história do surf no Brasil registra que, em 1938, na praia do Gonzaga, em Santos, Osmar Gonçalves, Juá Haffers e Silvio Manzoni conseguiam ficar em pé numa prancha – que eles mesmos construíram. Thomas Rittscher, morto no ano passado, garantia ter feito isso antes, entre 1934 e 1936, lá mesmo, em Santos. Em 1947, na casa do mitológico Paulinho Preguiça (também falecido), pertinho do Arpoador, o engenheiro Luiz Carlos Vital – o Bisão – construiu, com ajuda de George Grande e outros amigos, uma prancha oca enorme, quatro metros, com tampa e tudo. As ondas eram pegas em dupla, com Bisão, mais pesado, sempre na popa. O apelido, DC-4, remetia ao modelo de avião que ajudou a popularizar os voos comerciais intercontinentais depois da Segunda Guerra. Mas estava longe de ser eficiente, como atesta o depoimento de Grande: “Tomamos tombos horríveis, até que um dia consegui ficar em pé. Foi um jacaré maravilhoso. Depois a onda estourou, nos embrulhamos e a DC-4 se espatifou”. Mais jovem que essa turma, Arduíno Colasanti conta que o primeiro que viu em pé sobre uma prancha foi Paulinho Preguiça. “Antes, só em revista.”

“Prancha” é uma licença poética: aquela tábua plana, sem quilha e quase quadrada era conhecida na praia como “porta de igreja”. “O Paulo descia do Pontão do Arpoador ajoelhado e, quando a onda dava aquela ‘meia enchida’, ele ficava em pé.” Os mais jovens ficaram impressionados e queriam fazer igual. Estava deflagrada uma corrida tecnológica por modelos que possibilitassem reproduzir a façanha daquele sujeito com profissão moderna: Paulo e ra operador de câmera de TV.

Arquivo Pessoal/ Irencyr Brandão

Arduíno Colasanti e sua lendária prancha “porta de igreja”

Arduíno Colasanti e sua lendária prancha “porta de igreja”

Arduíno, que anos depois faria carreira como ator, conseguiu ficar em pé antes dos outros. Mais uma para a conta do italiano, também pioneiro na caça submarina, acostumado a desbravar lajes e a pegar os maiores peixes. Mas Bisão aperfeiçoou a curvatura da proa das pranchas e agraciou os melhores “pegadores” de joelho da turma com seis modelos iguais. E uma nova geração chegou forte. “O Jorge era o mais habilidoso, o melhor de todos nós, disparado”, relata Arduíno.

O Jorge em questão é Jorge Paulo Lemann, um dos controladores da AB Inbev, o 36º homem mais rico do mundo, que no final de novembro ultrapassou Eike Batista no posto de mais rico do Brasil. Filho de suíços, Lemann morava no Leblon, em uma casa belíssima em frente ao canal da rua Visconde de Albuquerque. Segundo as memórias dos contemporâneos, era o único que tinha carro, um Ford cinza conversível. Aos 73 anos, o empresário gosta de recordar os tempos de praia, vividos entre 1959 e 1961, antes de trocar o Arpoador pela mais conceituada universidade americana.

Foi o que fez no ano passado, em São Paulo, na palestra “O que aprendi em Harvard”, ao citar que era “um dos melhores surfistas do Rio”. Lemann fez o elogio de assumir riscos de forma responsável, algo que a universidade raramente ensina. Confundindo as unidades de medida, contou sua experiência com ondas de “dez a 12 metros” (certamente dez a 12 pés, algo entre três metros e três metros e meio) numa ressaca em Copacabana. “Eram tão grandes que era impossível nadar por baixo delas. No final, encaixotavam. (...) Peguei a onda, senti o sangue todo correndo pros pés, a velocidade era muito maior do que a que estava acostumado. E consegui sair antes que encaixotasse. Meus colegas falaram: ‘Vamos voltar’. Eu disse: ‘Pra mim, chega’. Gostei de sentir aquele perigo mas não queria repetir. (...) Em vários momentos da carreira me lembrei daquela onda, me dava mais segurança do que tudo que aprendi na faculdade. Tomar riscos no esporte contribuiu muito para tudo que aconteceu na minha trajetória.”

(Nos anos 90, depois de muito tempo sem surfar, Lemann foi ao Havaí e não resistiu a alugar uma prancha. Foi castigado com uma queda que lhe fraturou a costela.)

“Só treinando, só praticando, só ousando você consegue as coisas”, disse Lemann. “Pegar as maiores ondas possíveis, fazer as coisas mais difíceis... Tudo isso me ajudou a me tornar o empresário que eu sou”

Lemann quase foi expulso de Harvard por comemorar o fim de seu primeiro ano letivo soltando cabeções de nego – de fabricação brasileira! No Rio, chegava a matar aulas em dias de mar excepcionalmente bom. Seu sonho de moleque era ser o maior tenista do mundo (foi pentacampeão brasileiro e jogou pela Suíça na Copa Davis de 1962), mas as ondas grandes o levavam para outra dimensão. “Era emocionante. Minha mãe às vezes tinha que me tirar do mar para me levar para um torneio de tênis”, revelou, em depoimento a um documentário (ainda inédito) sobre a história do surf no Brasil.

Com as pranchas inadequadas e pesadas da época, aconteciam acidentes: Lemann precisou costurar a testa e teve cortes nos dedos após algumas trombadas. Mas aprendeu no Arpoador lições que soube tornar valiosíssimas: “Só treinando, só praticando, só ousando você consegue as coisas. Pegar as maiores ondas possíveis, fazer as coisas mais difíceis... Tudo isso me ajudou a me tornar o empresário que eu sou”.

Outro surf

O talento de Lemann no mar foi testemunhado por poucos. Quando voltou ao Brasil, o surf já era outro. Irencyr Beltrão, o Barriguinha, descobriu na ilha do Governador um carpinteiro que fabricava lanchinhas voadeiras com um compensado naval resistente à água do mar. Com isso, veio a era da madeirite, com pranchas mais adequadas e novos surfistas. Jorge Bally, o Jorge Perseguição, ou simplesmente Persegue, foi o sucessor de Lemann entre os jovens talentos do Arpoador.

Ele conta que os mais velhos não diziam onde fabricavam seus cobiçados modelos. “Era tudo enrustido.” Mas Arduíno, que inicialmente trabalhava sozinho e não estava associado a Barriguinha nas invenções, acabou socializando o segredo. Em parceria com Persegue, aperfeiçoou as madeirites, graças aos ensinamentos de um velho exemplar da revista americana Popular Mechanics que o pai do jovem possuía.

Nesse tempo todo, a “paisagem lunar” descrita por João do Rio continuou culturalmente fervendo. Roberto Menescal, da turma da caça submarina, ajudava a colocar a bossa nova em alto-mar. Em 1959, quando a revista Manchete quis dar uma capa com João Gilberto, fotografado nas pedras do Arpoador, o editor Justino Martins achou por bem garantir as vendas colocando no quadro, muito maior, a musa do pedaço: Ira Etz, a essa altura, com 22 anos, tão emancipada e antenada (vivera em Nova York, no Greenwich Village dos beatniks, depois do fim do namoro com Arduíno) quanto linda.

Quando a revista “Manchete” quis dar uma capa com João Gilberto em 1959, achou por bem garantir as vendas colocando no quadro a musa do arpoador, Ira Etz, emancipada e antenada

Os pais de muitas moças eram estrangeiros e seus costumes, liberais. Elas podiam usar biquínis menores (avistados por ali desde 1951, antes do resto do país), viajar com namorado e até pegar onda. Como resume Arduíno: “As meninas começaram a dar. Acabou a coisa de os rapazes terem de ir à zona. A convivência entre os sexos ficou mais natural.”

Ver aqueles brotos descendo as ondas era “a coisa mais linda”, derrete-se ele. Uma das pioneiras, Maria Helena Beltrão, foi fisgada por Barriguinha, com quem se casou aos 18. Fernanda Guerra fazia judô e natação, sempre com o incentivo do pai, Walter, e da mãe, que era americana. Ela lembra daquele tempo como um privilégio. “Éramos umas 40 pessoas, todo mundo amigo. Um usando a prancha do outro. A gente saía da água e tinha uma fila esperando.”

Até dois anos antes, a meta de quem pegava onda no Arpoador era ficar em pé na prancha e ir o mais longe possível na diagonal. “O suprassumo era chegar no edifício da esquina da Francisco Otaviano, mas isso era alcançado poucas vezes.”

Em 1964, veio a revolução: um australiano chamado Peter Troy chegou da Amazônia peruana disposto a explorar as ondas brasileiras, mas combalido por amebíase. Foi acolhido por Barriguinha, cujo pai era médico. Quando o gringo ficou bom, Arduíno tinha acabado de fazer um bem-sucedido modelo de longboard (mais de três metros) usando resina epóxi, que não corroía o isopor dos moldes. Como o mar no Arpoador não estava bom, levaram Troy até um selvagem Recreio dos Bandeirantes, a 35 quilômetros dali. “Ele pegou duas ondas. Andou em cima da prancha. Fez um hang five com a perninha esticada. Depois deu um bottom turn, mas tão cavado que arrancou o fundo da prancha.”

Quando aquele garoto australiano entrou no mar com uma prancha de fibra de vidro foi um choque para os brasileiros. “Ele mostrou coisas que nós nem sabíamos que podiam ser feitas”, lembra Arduíno Colasanti

Boquiaberto, Arduíno não ficou chateado com a “morte” de seu modelo. Ele e todos os amigos que estavam de plateia encararam como uma aula, repetida em escala muito maior no Arpoador, com uma prancha americana Bing de fibra de vidro emprestada por um adolescente americano chamado Russell Coffin, filho de um executivo da Coca-Cola que anos depois viria a se tornar fabricante de blocos de poliuretano para pranchas de surf. “O queixo da gente caiu. Ele mostrou um monte de coisas que não sabíamos que podiam ser feitas.”

Troy surfou poucas vezes no Rio antes de seguir a vida de viajante, três meses após a chegada. Soul surfer da mais pura essência, pegou ondas em 140 países, desbravando picos míticos como Nias, na Indonésia. Retornaria ao Brasil em 1981 e 2002, sem cair novamente no palco inaugural do surf no Brasil. Em 2008, aos 59 anos, morreu, com um coágulo no pulmão.

Sua passagem em 1964 foi um divisor de águas brutal. “Muita gente deixou de surfar com a passagem da madeirite para a fibra. Foi uma mudança da água pro vinho”, conta o veterano Armando Serra, 63 anos. A partir daí, começaram a aparecer mais e mais americanos e pranchas importadas no cantinho de Ipanema. Com eles, pouco depois, a maconha. “É surpreendente, porque poderia ter vindo dos morros, ali do lado. Mas veio com eles.
A princípio foi combatida, mas foi ficando... mais aceita. E passou a ser até um gesto revolucionário”, revela Arduíno, adiantando o relógio até 1968.

Modesto, ele diz que teve muito reconhecimento para “pouca produção” e faz questão de desmitificar a condição histórica de primeiro campeão de surf no país. “O torneio que tínhamos combinado era de pesca, com um churrasco marcado para depois. Mas o mar estava de ressaca, e fomos direto pro churrasco. Lá, tomamos caipirinhas e chegamos à conclusão de que, se tinha onda, o campeonato deveria ser de surf. Viemos pro Arpoador com aquelas meninas todas – porque era uma festa . O vencedor era definido por aclamação do público, e eu ganhei só porque peguei mais ondas. E porque o Jorge Americano (ou seja, Jorge Paulo Lemann) não estava. E porque a minha namorada, a Ira, era meio ‘chefeta’ da praia, levou umas amigas e comandou a torcida por mim.”

Um orgulho, porém, ninguém tira de Arduíno Colasanti: “Eu era o melhor pescador do Arpoador. Sempre fui”.

Alguma coisa acontece

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Enquanto estudos ainda tentam comprovar cientificamente, as mais diversas experiências pessoais não deixam dúvida: tudo muda no corpo (e na mente) quando estamos na praia

Há alguns meses, cruzando os dados do último Censo inglês, pesquisadores do European Centre for Environment & Human Health, da Universidade de Exeter, no Reino Unido, fizeram uma descoberta curiosa, ainda que não exatamente surpreendente: quanto mais perto do mar as pessoas vivem, melhor é a avaliação que fazem da própria saúde. Isso significa que as populações litorâneas sejam, de fato e sempre, mais saudáveis que as do interior? Não. Mas significa que elas se sentem muito melhor na própria pele.

Se as praias inglesas são capazes de proporcionar sensação tão nítida de bem-estar, imagine na Jamaica – ou aqui. Mas ainda resta entender o que o estudo não explica. Quais são os estímulos e mecanismos específicos que fazem da praia um ambiente particularmente eficiente para descomprimir e recarregar baterias? O que ela tem que revigora, acelera convalescenças, acalma, esquenta a alma, contenta?

Como observou o principal autor do estudo, Ben Wheeler, são surpreendentemente poucas as evidências científicas que atestem quais aspectos fisiológicos são afetados quando estamos na praia. Ao divulgar sua pesquisa, em abril de 2012, o Wheeler teve o cuidado de declarar: “O estudo sugere que há um efeito positivo na saúde, mas não pode comprovar causa e efeito”. Para ele, é preciso realizar estudos mais sofisticados para desvendar razões que expliquem o que está sugerido. Mas a conclusão já abre espaço para tentarmos descobrir como cada ambiente natural atua sobre o organismo humano. As sugestões do estudo ganharam na mídia europeia diversas interpretações. Surgiram desde explicações mais óbvias – do convite ao exercício físico prazeroso que a praia proporciona à carga de iodo do ar marinho, que estimula o intelecto e reduz a fadiga – a tentativas de aprofundamento: boiar no mar, por exemplo, faria o sangue refluir dos membros para o abdôme, aumentando a oxigenação do cérebro; os íons negativos do ar marinho equilibrariam nossa serotonina, melhorando humor e sono; e o som das ondas alteraria o padrão da atividade cerebral, levando a um relaxamento profundo e, no fim das contas, revigorante.

O neurocientista brasiliense Sidarta Ribeiro, 41 anos, não tem notícia de estudos conclusivos a respeito do tema, mas põe sua mão no fogo por essa última hipótese: “Tenho certeza de que, se colocássemos uma pessoa para dormir na praia e fizéssemos uma polissonografia [o registro detalhado da atividade elétrica cerebral], veríamos uma sincronização entre as ondas cerebrais e as ondas do mar”. Homenageado pelo Prêmio Trip Transformadores de 2007 e diretor do Instituto do Cérebro da UFRN, em Natal, ele aposta que esse efeito terapêutico, que organiza a atividade cerebral e induz ao sono, é só um dos benefícios de viver com o “marzão na janela”, como ele. “Tem um custo morar na praia, levo tempo pra chegar no trabalho, mas acordar e olhar um horizonte aberto não tem preço, porque equilibra. Já sabemos que a mente é porosa. O ambiente ajuda a pensar e a sentir.”

Marcos Vilas Boas

Alguma coisa acontece...

 

Observar ventos e marés foi outro hábito que o cientista adquiriu, e que o ajuda a “conectar-se com o ritmo do planeta”. “É um ambiente cheio de informação. Aos poucos, você percebe que há uma ordem nas coisas naturais. E isso mexe com estruturas profundas da gente”, explica. “Evoluímos na natureza. Há 20 mil anos conhecemos o mar, a chuva, o sol. Viver em apartamentos de 30 metros quadrados é algo que começamos a fazer há relativamente pouco tempo. Por isso estressa: não estamos adaptados ainda”.

“A praia, sozinha, não faz a mágica”, diz o mestre de ioga uruguaio Pedro Kupfer, 46 anos. “Tem gente que consegue ficar estressada nos lugares mais paradisíacos, que vai em busca de tranquilidade e fica enfurecida por só encontrar trânsito e barulho. Mas se a pessoa tem um mínimo de sensibilidade, vai vivenciar os benefícios da proximidade com o mar.”

Surfista com um gosto muito particular para praias – prefere as “desertas, rochosas, frias e de paisagem cinza “ –, ele mesmo não fica mais que alguns dias longe do mar, e chega a recusar trabalho para não ter que fazê-lo. “Preciso de um horizonte para olhar e tenho uma relação muito física com o mar”, explica. “A praia ‘reseta’ a mente. Ela recarrega as baterias porque é um lugar cheio de elementos da natureza e de energias em movimento: o vento que desloca as massas de ar, marés que sobem e descem, ondas que passam e arrebentam. Tudo isso ativa nosso dínamo”. A exposição do corpo aos agentes naturais é um dos pontos para a pesquisadora carioca Lygia da Veiga Pereira, que tornam a praia uma experiência mais completa de prazer do que, por exemplo, o campo. “Na praia a gente fica pelado, praticamente. É muito raro que nosso corpo fique tão exposto e seja tão tocado. As ondas são um carinho no corpo”, diz.

“quem tem um mínimo de sensibilidade, vai se beneficiar de viver próximo ao mar”

Adepta da prancha de standup, ela gosta de se afastar da praia para sentir, só e no silêncio, a “enormidade” do mar. “Amo praia. Vivi até os 22 anos no Rio. Nos fins-de-semana descia para tomar café já de biquíni”. Morando em São Paulo, onde dirige o Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias da USP, às vezes embatuca diante da decisão de alugar uma casa no Litoral Norte – e enfrentar o trânsito. “Mas quando a gente se vê lá, sempre conclui que vale a pena.”

“Fico emocionada na praia. Na medida do digno, volto à infância. Além de linda, a praia é lúdica. É uma situação que mexe com todos os sentidos de uma forma deliciosa: o calor do sol, a textura da areia, o contato com a água, a beleza do mar, o movimento e o barulho das ondas, o cheiro de maresia, o gosto de sal”, reflete. “Talvez isso se traduza, de alguma forma, em estímulos positivos para nosso cérebro”.

Sócio e VP de Criação da agência Loducca, em São Paulo, o publicitário Guga Ketzer, de 37 anos, redescobriu a conexão com o mar que tinha na infância – e da qual se esqueceu ao mudar-se para São Paulo. Dez anos depois da mudança, ao passar uma temporada de férias no Havaí, Guga teve praticamente uma epifania: percebeu o quanto aquilo era vital e transformador. Faz três anos que isso aconteceu e, desde então, ele aluga a mesma casa de frente para o mar em Sunset, no litoral norte do Havaí, para passar um mês de férias com a mulher, a designer de joias Fabiana Malavazi. E assim pretende fazer todos os anos.

No mar, Guga vive uma experiência física que considera única e intransferível. “Não sinto a mesma coisa em um lago, uma represa ou debaixo de uma cachoeira. Brisa, cheiro do sal, caminhada na areia: é esse conjunto que me atrai”, conta. Mais do que a experiência física, a conexão havaiana representou uma jornada espiritual: ao reconectar-se com o mar, entendeu a sensação de não estar no comando, que lhe trouxe um novo olhar sobre a vida e a carreira. Andando descalço e vivendo com pouco, entendeu o tédio consumista. E, finalmente, religou-se ao ritmo natural da vida. “Praia pra mim é voltar ao mínimo. Meu quarto no Havaí não tem nem cortina: você dorme com a lua e acorda quando a luz chega. Você entra no ciclo do lugar, e não o contrário”, observa ele, que abomina a ideia, tão em voga, de fazer da praia uma extensão do que já se vive na cidade – cheia de serviços, trânsito de carros e prédios em frente ao mar.

“Morar na praia traz uma alienação do bem”, diz o escritor Mario Prata, que trocou São Paulo por Florianópolis há 12 anos. “Não leio notícia de Israel há muitos anos, por exemplo. Esse assunto me dá urticária. Tenho pouco tempo de vida, não posso desperdiçar com Gaza.” Na ilha, com o mar na janela da frente a Mata Atlântica na janela de trás, parou de fumar depois de 50 anos e aprendeu a respirar de novo, ajudado pelo ar puro e as caminhadas na praia. “Aqui faz um puta sol. A temperatura é sempre 2 graus abaixo do Rio e 2 graus acima de São Paulo. Em setembro, tirei a meia. Meia agora, só em maio”, ri. “Além disso, levo 35 minutos para chegar ao aeroporto, a 35 quilômetros. Se você der 5 paus para o manobrista, o cara fica feliz. E neguinho não buzina no trânsito, você não quer dar porrada nele, não fica com medo que ele te dê uma porrada. Tudo isso faz bem para a saúde”.

Mineiro de Uberaba, Prata não tem grande fetiche pelo mar, que viu pela primeira vez aos 16 anos. Mais do que o banho eventual, diz que o que faz diferença na vida é ter saído de São Paulo. Mas admite que contemplar o mar da sua varanda virou hábito diário. “Quando entrei em meu primeiro apartamento aqui, que era baratíssimo e tinha essa vista, pensei: Deus acredita em mim”.

Marcos Vilas Boas

Pablo Picasso e sua musa Françoise Gilot em Côte D’Azur, em foto clássica de Robert Capa: é o litoral mexendo com nossas estruturas

Pablo Picasso e sua musa Françoise Gilot em Côte D’Azur, em foto clássica de Robert Capa: é o litoral mexendo com nossas estruturas

Banho de mar: doce remédio

O banho de mar como o conhece-mos – modalidade de lazer coletiva, praticada sem restrições e quase sem roupa – ainda não tem cem anos. Mas há pelo menos dois milênios especula-se sobre o poder curativo da água marinha. No século 1 a.C., Hipócrates já a indicava no tratamento de afecções pruriginosas.

É o que lembra Leopoldino de Vasconcellos na dissertação que apresentou à Escola Médico-Cirúrgica do Porto, em 1907. À época, o banho de mar terapêutico estava em voga na Europa. Médicos franceses e alemães o indicavam para tratar escorbuto, icterícia, problemas gastrointestinais, até tuberculose.

Coube à família real portuguesa lançar a moda aqui. Dom João VI beneficiou-se da ação antibiótica da água do mar para curar uma mordida de carrapato inflamada. O rei banhava a perna (parece que nunca tomou banho de corpo inteiro) na então cristalina (e hoje aterrada) praia do Caju.

A “praiaterapia” chegaria ao século 20. “Os anêmicos, os escrofulosos, os convalescentes em geral melhoram muito com os banhos de mar”, escreve o doutor Plínio Olinto na Revista da semana, em 1915. Ele atribui o sucesso do tratamento ao “movimento das ondas” e adverte: “Não há necessidade de mergulhos, nem pulos, nem gritos, nem prolongados esforços de natação”.

Ilhas para não morrer tão cedo

O arquipélago de Okinawa, no Japão, abriga a população feminina mais longeva do mundo. Em Ikaria, ilha grega, os homens têm quatro vezes mais chances de chegar aos 90 anos do que nos Estados Unidos, além de sofrer menos de depressão e demência. Na península de Nicoya, Costa Rica, vive-se mais do que a média porque morre-se menos na meia-idade. A Sardenha, ilha italiana, tem a maior concentração de homens centenários da Terra. E em Loma Linda, Califórnia, uma comunidade de adventistas do sétimo dia vive, em média, dez anos mais que os demais americanos.

Descobertos em uma pesquisa da National Geographic Society, coordenada pelo educador e documentarista americano Dan Buettner, esses “bolsões de longevidade” não foram apelidados de Zonas Azuis à toa. De todos, só Loma Linda não fica no mar.

Curiosamente, a praia tem pouco peso entre os fatores que Buttner arrola no livro The Blue Zones: Lessons for Living Longer from the People Who’ve Lived the Longest. Se o ambiente natural estimula a atividade física, o que faz com que essas comunidades vivam mais é uma combinação de fatores que inclui dieta fresca, laços sociais e familiares sólidos, mecanismos antiestresse (sestas, meditação) e um senso de propósito, religioso ou não, afirma.


Os grandes clássicos da Música Praieira do Brasil

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Desde que o samba é samba é assim: um barquinho, a areia, as ondas, as garotas de biquíni, o pôr do sol e a maresia inspirando clássicos da música brasileira, de qualquer tempo, em qualquer ritmo

Claro que não está certo dizer que tudo começou com Dorival Caymmi. Mas é bem verdade que ninguém dava tanta bola para a relação, digamos, amorosa entre a música popular brasileira e a praia até que, em 1954, o compositor baiano batizou seu primeiro LP (um long-play de dez polegadas e oito músicas) de Canções praieiras. Naquele momento, com o conceito de arranjo (só voz, violão e assovio do próprio autor) dos futuros clássicos “Quem vem pra beira do mar”, “O bem do mar”, “O mar”, “Canoeiro”, “É doce morrer no mar”, “A jangada voltou só”, “A lenda do Abaeté” e “Saudade de Itapuã”, Caymmi inventava um gênero. No mínimo, dava um nome a ele. Daquilo até “A praieira”, de Chico Science (do também clássico Da lama ao caos, 1994), ou até o verão que vivemos agora, praia e música só desenvolveram (e discutiram) a relação.

“Essa relação está ligada aos primórdios da gente”, diz Marina Lima. “A composição do mar, dizem alguns cientistas, é parecida com a da placenta. Por isso, a gente tem a sensação de já pertencer ao mar desde antes de nascer.” Entre outras canções feitas olhando para a praia, ela é autora, com o irmão Antonio Cicero, de “Virgem”, em que a personagem sofre de amor sentada na areia do Leblon. Marina, que nasceu em Ipanema, começou a cair no mar muito nova, sem ter noção da importância daquilo. Quando morou nos Estados Unidos, criança, sentiu “falta física” do mar. “Era meu hábitat. Foi um choque.” Voltando ao Brasil, com 12 ou 13 anos, saciou a sede ao limite e começou a surfar. “Depois dos 30, não senti mais falta física. O mar ficou dentro de mim, uma memória interna.” Hoje, ela vive em São Paulo. Quando quer ver o mar, fecha os olhos.

Depois da Bahia de Caymmi, o Rio de Marina tornou-se o símbolo nacional do mar, da praia, do surf – ao menos no imaginário da música popular brasileira. Isso porque, quatro anos depois de lançado o tal dez polegadas de Caymmi, chegou às lojas o primeiro 78 rotações de outro baiano, João Gilberto. Tinha, do lado B, “Bim bom”, do próprio João. E, do lado A, “Chega de saudade”, da carioquíssima dupla Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Nascia ali, em frente ao mar do Rio de Janeiro, a bossa nova. A maior – e mais praieira – revolução musical do país.

“A vida que levávamos junto a Copacabana, e depois a Ipanema, nos levou a compor pensando na natureza, no mar”, conta Roberto Menescal, autor (com Ronaldo Bôscoli) de “O barquinho”, símbolo do clima “sol e mar” brasileiro. “Escrevíamos as canções inspirados por aquela liberdade que era usufruir de um local totalmente democrático, onde fazíamos também os primeiros arremedos de surf, vôlei, tênis de praia, futebol. E, à noite, violão.” Foi na areia de Copacabana que Menescal e Bôscoli compuseram ainda outros clássicos do movimento como “Nós e o mar”, “Ah, se eu pudesse”, “E nem o mar sabia” e “Rio”.

Já “Vamos pranchar”, dos irmãos Marcos e Paulo Sergio Valle (lado B do compacto que tinha “Samba de verão”), foi composta para a direita de quem olha o mar. “Fizemos surfando nas ondas do Arpoador”, lembra Marcos. “O próprio ‘Samba de verão’ foi uma consequência da nossa paixão pela praia. Eu estava no Arpoador quando mostrei a música ao Menescal. Sentado nas escadas do posto de salvamento, de sunga, toquei o samba. Ele disse: ‘Esse vai estourar!’. Fiquei na dúvida: ‘Será?’.”

“Em São Paulo também tem praia, como não? Não demora muito mais do que uma hora pro cara pegar o carro e chegar em Santos”, reclama Roger, vocalista do Ultraje a Rigor e autor de “Nós vamos invadir sua praia”, sucesso de 1985 e trilha sonora, até hoje, para qualquer tipo de invasão. Interpretações posteriores criam que Roger havia composto um manifesto para tomar a música brasileira, dominada pelos cariocas. Ele afirma que fez a letra principalmente para protestar contra o fato de que artistas não cariocas precisavam acontecer no Rio para chegar ao resto do país, já que todo o esquema de mídia, incluindo gravadoras, estava instalado lá. Também valeu de inspiração o rebuliço causado pela criação de uma linha de ônibus que levava banhistas do subúrbio às praias da zona sul.

 

"Só depois de uns anos morando em uma cidade sem mar eu noto como ele influenciou meu jeito de ser. Sou outro compositor agora por morar num lugar como São Paulo”, Felipe S., do Mombojó, de Recife

 

Roger acha que nascer ou não em frente ao mar interfere decisivamente no jeito de encarar a vida. “Passei longos períodos no Rio e encontrava todo mundo na praia, no bar. As pessoas são mais afáveis e menos desconfiadas porque estão mais expostas, até fisicamente. São Paulo é mais neurótica”, afirma. “Nunca fiquei olhando pra praia e contemplando. A contemplação do paulista é mais interna. Você faz análise sociológica, antropológica, política. Essas diferenças ficam explícitas na expressão do artista.”

Pernambucano que escolheu São Paulo para viver, Felipe S., da banda Mombojó, fecha com Roger: “Só depois de uns anos morando em uma cidade sem mar eu noto como isso influenciou meu jeito de ser”, diz. “Sou outro compositor por morar em um lugar como São Paulo.”

Parceiro musical de Rita Lee (“a mais completa tradução” de São Paulo, segundo Caetano Veloso), Roberto de Carvalho injetou DNA carioca na música autenticamente paulistana que ela faz desde que começaram a parceria, em 1978. Nascido em Ipanema, tornou mais ensolarado, feminino e sexual o rock de Rita com seus acordes. “Rita e eu passávamos longas épocas à beira-mar, fosse no Rio, em Natal, na Jamaica, em Barbados”, lembra. “Nesses lugares, compúnhamos muito. E é assim até hoje. ‘Reza’, por exemplo, nós fizemos em Miami.”

Baiana criada em Pernambuco e radicada em São Paulo, Karina Buhr lembra que compôs “Ciranda do incentivo”, de seu primeiro disco, na praia. Antes, tocou muitos anos num afoxé na Cantina Z4, colônia de pescadores em Olinda que fica em frente ao mar, “chegando peixe toda hora”. “Tem ciranda, candomblé, jogar flor no mar, dar um mergulho pra tirar as mazelas”, diz. Mais ou menos no mesmo período, fez vocais para a banda Eddie, que se autodenominava “do surf para o surf”. “De vez em quando, a gente fazia um tipo de retiro, em alguma praia, pra ensaiar, fazer música e surfar. Nunca surfei, embora seja uma das grandes vontades da vida. Quando eu ia começar, apareceram os tubarões.”

 

10 músicos e especialistas indicam suas canções favoritas

 

Gaby Amarantos, cantora paraense

“A barca” (Padre Zezinho)
Me sinto em uma rede, deitada com meu filho e com familiares e amigos ao redor. 

“Quatro semanas de amor” (Gary Col e Peter Udell – Versão: Carlos Colla)
Clássico nas vozes de Luan e Vanessa, lembra adolescência. 

“Lenda das sereias, rainha do mar” (Vicente Mattos, Dionel e Arlindo Velloso)
Na voz de Marisa Monte, linda. Tenho forte ligação com sereias.

“Merengue Latino” (Ronaldo Silva)
Minha favorita, tem minhas influências caribenhas e praieiras, pra mexer o corpo. 

“Conto da areia” (Romildo S. Bastos e Toninho Nascimento)
Na voz de Clara Nunes, deve estar em todas as listas. É uma poesia! 

Karina Buhr, atriz, cantora e compositora baiana, pernambucana e paulistana

“É doce morrer no mar” (Dorival Caymmi)
Tão clássica que parece ter existido desde sempre. Triste e linda demais.

“Cirandeiro” (canção folclórica)
Isso pra mim também já nasceu junto com o mundo.

“O mar serenou” (Candeia)
Nada consegue descrever o que sinto quando ouço Clara Nunes cantando isso.

“Meus cabelos brancos” (Baracho)
Cantada pelas filhas dele, Dulce e Severina e também por Célia do Coco.

“Ciranda de Lia” (Baracho)
Criação do grande mestre cirandeiro, que nasceu em Nazaré da Mata.

Leonardo Lichote, repórter e crítico do jornal O Globo

“A praieira” (Chico Science)
Ciranda sob o peso dos tambores e o groove da Nação Zumbi.

“Quem vem pra beira do mar” (Dorival Caymmi)
Inevitável Caymmi. Compreensão plena da atração que a praia exerce sobre nós.

“Cidade submersa” (Paulinho da Viola)
Para lembrar a força devastadora do mar, do amor.

“Lugar-comum” (João Donato e Gilberto Gil)
Na voz de Arnaldo Antunes, o oceano da canção ganha profundidade.

“A cor amarela” (Caetano Veloso)
Esta é a praia hiper-real, a do verão carioca, de tons saturados.

Adriana Calcanhotto, autora de uma trilogia (ainda incompleta) sobre o mar

“Sargaço mar” (Dorival Caymmi)
Gosto das canções praieiras, mas também daquelas que são do fundo do mar.

“O mar” (Dorival Caymmi)
“O mar quando quebra na praia é bonito.” Nada a declarar depois disso.

“Quem vem pra beira do mar” (Dorival Caymmi)
A história da minha vida: “Quem vem pra beira do mar/ Nunca mais quer voltar”.

“Tarde em Itapuã” (Toquinho e Vinicius de Moraes)
Principalmente na versão da Bethânia, um samba-reggae com muita preguiça.

“A cor amarela” (Caetano Veloso)
Uma pintura de Caetano, a menina preta de biquíni amarelo no verde da onda.

“De repente, Califórnia” (Lulu Santos e Nelson Motta)
Amo “as ondas lambem minhas pernas”, imagem perfeita.

“Maresia” (Paulo Machado e Antonio Cicero)
Petardo que gravei depois de ouvir a leitura do poema pelo próprio Cicero.

“Maritmo” (Adriana Calcanhotto)
Estava deslumbrada com o brilho no mar de Angra que Mario Peixoto filmou.

Alice Caymmi, cantora e neta de Dorival

“As praias desertas” (Tom Jobim)
Canção de amor que coloca a solidão da praia deserta como pano de fundo.

“O mar” (Dorival Caymmi)
Simplesmente a música brasileira mais icônica sobre o mar e seus encantos.

“Quebra mar” (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro)
Remete a um quadro impressionista. O mar como uma visão.

“Leãozinho” (Caetano Veloso)
Não consigo ouvir sem querer ver meus amigos e dar uma volta no Arpoador.

“Desaguar” (Mahmundi)
Canção pós-praia. Principalmente se você tem um romance em mente.

Felipe S., vocalista do Mombojó

suíte “História de pescadores” (Dorival Caymmi)
Pela simplicidade e pelo título. Reúne todos os maiores temas de mar. 

Bruno Medina, tecladista do Los Hermanos

“Tereza da praia” (Billy Blanco e Tom Jobim)
A que melhor retrata a essência pueril dos amores de verão.

“A novidade” (Bi Ribeiro, João Barone, Herbert Vianna e Gilberto Gil)
A figura da sereia subvertida como um instrumento de crítica social.

“Januária” (Chico Buarque)
“Até o mar faz maré cheia pra chegar mais perto dela.” Sem mais.

“Conto de areia” (Romildo S. Bastos e Toninho Nascimento)
Letra belíssima, refrão pra cantar gritando, de olhos fechados, com Clara Nunes.

“Festa de Rua” (Dorival Caymmi)
Todas as músicas da lista deveriam ser dele, né? Esta é uma espécie de oração.

Patricia Palumbo, radialista

“Coqueiro de Itapuã” (Dorival Caymmi)
A descrição da areia, e do vento no alto do coqueiral, é toda linda.

“Quem vem pra beira do mar” (Dorival Caymmi)
É totalmente minha cara. Preciso ir pra beira do mar pra voltar pro rumo.

“Ela vai pro mar” (Celso Fonseca e Ronaldo Bastos)
Vejo a cena da mulher caminhando de maiô lilás e me dá uma nostalgia daquele Rio anos 50.

“Mar de Copacabana” (Gilberto Gil)
Uma declaração de amor como só Gil sabe fazer. Imagine alguém te entregar o mar!

“Maritmo” (Adriana Calcanhotto)
Um passeio delicioso pela orla. Sempre que ouço me vejo tomando a brisa fresca. 

Pitty, roqueira baiana

“O mar serenou” (Candeia)
Personagens constantes na obra de Clara Nunes: o mar, o pescador e a rainha das águas, Iemanjá.

“Nós vamos invadir sua praia” (Roger Moreira)
A forma mais legal e bem-humorada de abordar a rixa (lenda?) que existia entre o rock paulista e o fluminense.

“De repente, Califórnia” (Lulu Santos e Nelson Motta)
O arranjo e o timbre das guitarras trazem a sensação nítida de ondas.

“Tarde em Itapuã” (Toquinho e Vinicius de Moraes)
Morei em Itapuã. Guardadas as proporções poéticas, a letra é fiel à sensação do lugar.

“Minha sereia” (Carlos Moura)
Ouvi muito na infância. Profundamente ligada a minha memória afetiva. 

Roberto Menescal, bossa-novista

“Garota de Ipanema” (Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
Um doce balanço, caminho do mar.

“As praias desertas” (Tom Jobim)
Elas continuam esperando por nós dois, sempre.

“Rio” (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli)
Rio é mar, é terno se fazer amar.

“Sábado em Copacabana” (Dorival Caymmi e Carlos Guinle)
Pra passear à beira-mar: Copacabana.

“Samba de verão” (Marcos Valle e Paulo Sergio Valle)
Ela vem, sempre tem esse mar no olhar.

Tárik de Souza, jornalista e pesquisador

“Rio” (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli)
É sal, é sol, é sul. É isso!

“Domingo azul do mar” (Tom Jobim e Newton Mendonça)
Uma pérola reluzente injustamente esquecida.

“A praieira” (Chico Science)
Caranguejos com antenas e nadadeiras.

“Samba de verão” (Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle)
Dois surfistas do Arpoador em temperatura máxima.

“Quem vem pra beira do mar” (Dorival Caymmi)
O criador do gênero “canções praieiras” não poderia ser mais exato. 

O medo mora dentro

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Marcos Vilas Boas

A obsessão por segurança, um fenômeno global, encontra sua expressão mais eloquente nas cidades brasileiras, que abrigam gente cada vez mais isolada – e insegura. Na contramão, há quem ache que a solução está nos movimentos que tentam reocupar a cidade

O publicitário Caio Monteiro, 22 anos, se sente um prisioneiro do condomínio de classe média onde mora, em Perdizes, zona oeste de São Paulo. “Quando chego, levo um tempo convencendo os seguranças de que sou morador”, conta. Precisa digitar a senha de seu apartamento para fazer o elevador funcionar; se esquece e aperta só o botão do andar, o que acontece “pelo menos três vezes por semana”, fica preso na cabine até responder satisfatoriamente a um questionário pelo interfone. A última etapa, a leitura biométrica das digitais, às vezes falha. “O equipamento não lê direito, o alarme dispara e tem que vir alguém ver se eu sou eu mesmo.”

Assaltado sete vezes, uma delas à luz do dia, ele não considera os sistemas de segurança desnecessários. Só acha a coisa toda pouco prática e desconfia dos critérios. “Outro dia cheguei com um amigo de SUV e eles abriram no ato.” Também se ressente do clima de hostilidade gratuita entre moradores. “Fui criado no interior, brincando na rua. Conhecia todos os vizinhos e me sentia seguro. Hoje, não posso nem pedir uma xícara de açúcar para o cara do andar de cima. Não sei a senha do apartamento dele.”

Marcos Vilas Boas

A sensação de insegurança nas cidades brasileiras é movida a índices e histórias assustadoras de violência. São Paulo, em particular, viu os assassinatos aumentarem 20% no primeiro semestre de 2012, e registrou uma onda de crimes histórica no fim do ano. Isso abre espaço para medidas radicais de vigilância e para a febre dos condomínios fechados de alto padrão, com interiores monitorados, muros intransponíveis e seguranças com botões de pânico.

Enquanto as iniciativas para incrementar os espaços públicos chamam a atenção em cidades americanas e europeias, a exemplo da High Line, viaduto nova-iorquino transformado em parque suspenso, por aqui as ruas vão sendo abandonadas e o convívio escasseia, numa cena que lembra a melancólica “City with no children”, da banda canadense Arcade Fire: “Sinto-me vivendo em uma cidade sem crianças/ Em um jardim arruinado por um bilionário que mora numa prisão.”

O clima que favorece o recrudescimento da paranoia urbana tem a ver com um fenômeno global: a obsessão pela segurança. “Até o final do século 20, vivia-se um otimismo em relação ao futuro da humanidade, ao desenvolvimento tecnológico”, diz o sociólogo e analista de tendências Dario Caldas, do Observatório de Sinais, em São Paulo. “Por uma série de fatores, incluindo o 11 de setembro, esse quadro mudou. O medo é um dado do século 21.”

 

"Se você coloca um muro de 4 metros na sua casa antes que qualquer coisa aconteça, o que está dizendo é que não gosta do mundo e que não tem a menor confiança na sociedade brasileira.”

No Brasil, a corrida da classe média para os “abrigos” reflete uma descrença no Estado, que tem como atributo garantir a segurança. “Na falta de políticas públicas eficazes de combate ao crime, a cidade está sendo esvaziada e trancafiada em pequenas fortalezas”, diz Miguel Leme Brizola Neto, do Grupo Verzani & Sandrini, uma das maiores empresas de segurança particular de São Paulo. Cada vez mais procurados, seus equipamentos e equipes encarecem em até 10% condomínios já altíssimos, entre R$ 2 mil e R$ 5 mil mensais.

Marcos Vilas Boas

Assim como esse tipo de aparato é privilégio de poucos, a insegurança urbana tem ligação com a desigualdade social: apesar das conquistas recentes, que incluem o advento da “nova classe média”, com 40 milhões de pessoas que passaram a ter conta no banco, o Brasil continua em 12º lugar no ranking mundial dos países com os maiores desníveis de renda.

Pode ser que estejamos caminhando para uma igualdade maior – que, no futuro, pode criar uma cidade com menos crime. Mas, por ora, a questão da segurança não pode ser nem ignorada nem tratada com truculência. A visão é do urbanista Cândido Malta Campos Filho, professor emérito da FAU da USP e ex-secretário do Planejamento da cidade. Um dos responsáveis pela lei que estabelece limites para a altura de prédios em São Paulo, ele acha que é preciso coibir a especulação imobiliária – a cidade tem um limite para comportar o adensamento populacional que vem com os prédios – e minimizar medidas agressivas de segurança.

“O problema da insegurança existe. Mas há um exagero, uma certa paranoia”, afirma. Vivendo na mesma casa com paredes de vidro desde 1967, há alguns meses ele viu o sistema que criou para proteger a família – um muro de 2 metros e um trio de guardas de rua – falhar pela primeira vez em mais de 40 anos. “Agora temos câmeras e sensor de presença, mas continuamos andando na rua e tendo uma vida comunitária.”

O urbanismo que reflete o clima de insegurança, ele alerta, também pode exacerbá-lo. “A própria polícia diz que quem tem muro muito alto acaba atraindo o ladrão. Por isso, defendo e pratico a moderação: fazer o mínimo necessário pela segurança, para não agredir a sociedade e não se agredir. Porque a pessoa que está enclausurada numa muralha está se agredindo. Ela se aprisionou.”

Desconfiança

A sensação de aprisionamento entre janelas gradeadas, espaços estrangulados e muros altíssimos é um dos temas principais de O som ao redor (2011), o premiado longa-metragem de estreia do cineasta pernambucano Kleber Mendoça Filho. A feia “estética da segurança” que vai dominando as cidades brasileiras fascina o diretor. Desde os anos 90 ele se inspira nos bairros de classe média transformados pelo avanço descontrolado da especulação imobiliária, principalmente Setúbal, no Recife, onde mora.

“Para mim, esses obstáculos – grades, muros – têm um significado muito rico. São superagressivos, uma demonstração física e arquitetônica de desconfiança em relação ao outro. Se você coloca um muro de 4 metros na sua casa antes que qualquer coisa aconteça, o que está dizendo é que não gosta do mundo e que não tem a menor confiança na sociedade brasileira.” Além de não gerar tranquilidade necessariamente, a atitude não colabora “para uma ideia mais humana de cidade”.

Claudio Lacerda

Dois modelos de vida diferentes no mesmo bairro em São Paulo:

Dois modelos de vida diferentes no mesmo bairro em São Paulo

Claudio Lacerda

Dois modelos de vida diferentes no mesmo bairro em São Paulo:

Dois modelos de vida diferentes no mesmo bairro em São Paulo

Muros altos e grades são lamentáveis, mas uma tendência sem volta, acredita o cineasta Fernando Meirelles. “Numa cidade grande e impessoal como São Paulo, acho compreensível que se criem comunidades menores”. Adepto da “slow-life” (“Me recuso a viver como se tivesse de tirar o pai da forca todo dia”), o diretor de Cidade de Deus também criou sua própria comunidade. Só que sem muros: há 20 anos, divide com amigos um sítio perto de São Paulo.

“A ideia era termos um espaço maior para morar e criar nossos filhos mais soltos”, conta. Uma cerca separa a propriedade do entorno, e não há nada além de verde entre as casas. No único acesso, uma rua sem saída, uma guarita com segurança serve de portaria. “Nunca dei muita bola para segurança. Nossa cerca é baixa, minha casa tem dez portas que dão para fora. Nunca houve incidente”.

O relato reforça o argumento daqueles que acham a discrição mais eficaz do que a fortificação, quando se trata de segurança. “Parecer rico é atrair predadores”, acredita o psicanalista carioca Francisco Daudt. “O mais rico dos meus clientes anda de metrô, odeia ser fotografado e desfruta de uma bela vida de perfil baixo.” Ele vai mais longe: “Auto-estima elevada é fonte de segurança, e se traduz numa linguagem corporal que transmite uma mensagem de força. Claro, não existem garantias para nada no mundo, mas as chances de uma pessoa segura de si não ser importunada aumentam muito.”

A relatividade da eficácia dos mecanismos de segurança alardeados pelos condomínios já foi objeto da fina ironia da dupla de arquitetos Isay Weinfeld e Marcio Kogan. O Muromóvel, um paredão de tijolo, espetos e cacos de vidro capaz de autoajustar sua altura aos índices de violência da cidade, foi uma das invenções que apresentaram na exposição Happyland Vol. 2, realizada no Museu da Casa Brasileira há quase dez anos. Outra era o Kit Assalto, uma mala com objetos de desejo falsificados, como relógio Rolex e cigarreira Louis Vuitton, para engambelar ladrões. 

Ocupar

Para além de muros e cercas, traços do próprio urbanismo brasileiro contribuem para esvaziar as ruas e aumentar a sensação de insegurança. O principal é um pensamento que prioriza o carro, e nunca o pedestre. “No centro de São Paulo, as calçadas estreitas, as grandes vias e os semáforos que abrem e fecham rápido demais expulsam as pessoas da rua”, diz o arquiteto e crítico Guilherme Wisnik. O atraso histórico dos transportes coletivos, que têm potencial para reduzir o número de veículos na rua e aproximar cidadãos e cidade, piora essa cena. Assim como o boom dos shoppings, tidos como mais seguros que o comércio de rua, outro elemento que traz vida às vias públicas.

Wendy Content/Alamy/Other Images

A High Line de Nova York transformada em parque

A High Line de Nova York transformada em parque

Até que esses planos mudem, a ideia de reocupar o espaço urbano e reaver o convívio “de rua” surge como alternativa para reverter situações de abandono e insegurança. “A solução está na vida comunitária”, diz João Sette Whitaker, professor das faculdades de arquitetura da USP e do Mackenzie. Para mostrar que há uma “indústria do medo” que desestimula esse convívio, ele fez uma experiência: convocou duas alunas para testar a “sensação de segurança” do Morumbi, na zona oeste, e da rua Augusta, tida como perigosa, perto do centro. As meninas sentiram mais medo nas ruas muradas do Morumbi, desertas às 19 horas, do que entre as prostitutas, traficantes e frequentadores da noite que lotavam a Augusta às 23 horas.

“Até o final do século 20, vivia-se um otimismo em relação ao futuro da humanidade, o desenvolvimento tecnológico. Por uma série de motivos, incluindo o 11 de setembro, isso mudou. O medo é o dado do século 21”

A ocupação do “baixo Augusta”, área de prostituição tomada por estudantes e boêmios de classe média nos últimos anos, é um exemplo de reapropriação da cidade. Assim como a explosão da cultura da bicicleta e os protestos públicos de todo tipo – em 2011, São Paulo parou mais de 1000 vezes para deixar passar as manifestações, algo como três vezes ao dia. “As marchas, as festas no Minhocão, a Virada Cultural e o churrascão para marcar a polêmica sobre o metrô de Higienópolis são fatos positivos nesse cenário”, diz Dario Caldas. “A bicicultura, com gente usando o veículo para ir ao trabalho e famílias inteiras pedalando juntas, é muito importante em uma cidade sem espaços naturalmente democratizantes”.

Um mecanismo que ajudaria a melhorar a segurança na cidade pela ocupação seria tornar públicos os térreos de todos os seus edifícios, sugere Ciro Pirondi, professor da escola da Cidade. “É o que já acontece em Brasília”, ele diz. Outro é reciclar espaços urbanos degradados, como fez o arquiteto Guto Requena, colunista da Folha de S. Paulo, ao reformar um apartamento na chamada “ilha da Paulista”, uma sobra das obras viárias dos anos 1950 e 1960 no cruzamento das avenidas Paulista e Consolação. “Tem muita gente no meu quarteirão querendo fechar a rua, o que é ilegal, e colocar segurança, porque ali tem muito skatista, morador de rua. Mas negar a cidade não é a solução. A perseguição aos skatistas, por exemplo, é absurda. Eles são um dos grupos mais engajados na ocupação da cidade. E ocupar é bom.”

Fora do Eixo

O festival

Festival 'Existe amor em SP'

Lições de segurança

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Muito antes de criar heróis do esporte, mudar a vida de Cauã Reymond e impressionar até Chuck Norris (!), o jiu-jítsu surgiu como uma técnica de defesa pessoal para “jovens franzinos sem perfil de lutador”. E acabou fazendo entusiastas entre gente como Oscar Niemeyer e Carlos Lacerda

Um menino assustado se escora num poste para tentar se proteger do marmanjo que tenta tirar vantagem com seu tamanho. Cadernos e canetas no chão, o grandalhão mostra suas garras. Em seguida, humilhado, o menor aparece sentado na sarjeta, sujeito à imposição do colega que conseguiu impor sua “superioridade”. Essa sequência do que hoje é conhecido como bullying nada tem de original. Se repete diariamente em escolas, escritórios e no dia a dia de milhões de pessoas de qualquer lugar do planeta desde que o mundo é mundo – e, segundo relatório da National Association of School Psychologists, faz com que 160 mil crianças faltem à escola todos os dias nos Estados Unidos por medo ou insegurança diante dos bullies. Em casos mais extremos, algumas reagem com violência, como nos mostram os massacres a mão armada cometidos com cada vez mais frequência em escolas até no Brasil.

Junto da saga do menino abusado vem o seguinte texto: “Proteja seu filho contra as torturas da inferioridade. Não deixe que ele entre na luta pela vida em condições desiguais. Sacrifique tudo, mas não deixe que seu filho seja humilhado, pois tais impressões refletem-se na vida adulta”. Parece até propaganda de livro de autoajuda. No fundo, é: trata-se de Introdução ao jiu-jítsu, publicado em 1948 pela editora Pongetti, de autoria de Carlos Gracie, que indica a prática dessa arte marcial para desenvolver a autoconfiança, aprender a se defender e transformar a vida de pessoas. “O jiu-jítsu é de defesa pessoal. Você só adquire autoconfiança quando acredita em si próprio. Qualquer sujeito que aprende fica mais tolerante, porque passa a saber que não apanha”, comentou à Trip #58 Hélio Gracie, irmão 11 anos mais novo e discípulo mais bem-sucedido de Carlos, responsável por trazer de Belém para o Rio de Janeiro na década de 1920 a luta aprendida com o japonês Misuyo Esai Maeda, o Conde Koma, e que hoje tem milhões de praticantes em todo o mundo.

O sucesso dos irmãos Gracie, que em média tinham pouco mais de 1,70 metro e 60 quilos, diante de lutadores de boxe, capoeira, caratê e luta livre, com o dobro do peso e tamanho deles, atraiu a atenção da mídia e do público carioca no fim dos anos 1920. “Se tornaram celebridades por serem franzinos, jovens, parecerem europeus e não terem perfil de lutador”, conta Reila Gracie, filha e biógrafa de Carlos, autora de Carlos Gracie, o criador de uma dinastia (2008, Editora Record). Pouco a pouco, a alta sociedade carioca foi atrás da academia de Carlos para aprender os segredos daquela luta que colocava em condições de igualdade – se não de vantagem – rapazes franzinos diante de brutamontes musculosos.

TRIP#218_JIU_JITSU_21

Artigo de jornal sobre João Alberto Barreto e a Academia Gracie

A lista de alunos famosos chama a atenção. Entre eles, o ex-presidente militar João Figueiredo, o ex-ministro militar Mário Andreazza, jornalistas como Roberto Marinho, Assis Chateaubriand, Samuel Wainer e Carlos Lacerda, o radialista Flavio Cavalcanti, o cantor Nelson Gonçalves, o playboy Jorginho Guinle e o arquiteto Oscar Niemeyer, além de um sem-número de empresários e executivos. “Tive muitas aulas com eles. Gostava muito daquele ambiente”, lembrou Niemeyer em raro depoimento sobre o jiu-jítsu para o programa Sensei SporTV, em 2009, quando faleceu Hélio. “Tive pelo menos um ano de aulas. Meu pai mandou fazer um tatame para a gente. Carlos fingia que perdia, e eu ficava entusiasmado com aqueles golpes todos, achava o máximo”, contou Guinle, em depoimento publicado no livro de Reila. Atualmente, entre os praticantes mais notórios estão Luiz Fux, ministro do Supremo Tribunal Federal, o prefeito de Manaus e ex-senador Arthur Virgílio e os atores Cauã Reymond e Wagner Moura.

Alavanca

Pode soar estranho sugerir o jiu-jítsu para ajudar a resolver problemas de autoconfiança e autoestima em tempos de combates violentos transmitidos pela televisão aberta e relatos de violência gratuita que pipocam diariamente no noticiário. “Muito antes do jiu-jítsu sempre houve covardes. Isso não é arte marcial, é índole. Se você não controla seu próprio instinto, perde pro seu oponente e na vida. Através da eficiência física e da disciplina, fui capaz de formar pessoas mais equilibradas”, disse Rickson Gracie, filho de Hélio e um dos maiores nomes do UFC, à Trip #163.

Exemplo disso é o ator Cauã Reymond. Ele atribui ao jiu-jítsu uma mudança drástica em sua vida. Desde que começou a praticar o esporte, aos 12 anos, ele se diz uma pessoa mais segura. “Tenho uma facilidade em me focar que vejo que outros colegas não têm. Ganhei autoconfiança, autoestima e determinação. O jiu-jítsu te dá uma certeza e uma segurança de que você não precisa dar o passo adiante”, conta o global, que em seu currículo tem dois títulos brasileiros na modalidade.

Nas aulas dadas por Carlos e Hélio, os alunos não eram avaliados apenas pela execução dos golpes, mas também por quesitos como coragem, disciplina, respeito e educação. “O Hélio não aceitava qualquer atitude covarde. Tínhamos uma orientação ética”, conta o psicólogo João Alberto Barreto, aluno e depois assistente de Hélio, um dos poucos no mundo que são donos de uma faixa vermelha na luta, a mais alta graduação do jiu-jítsu, dada apenas aos graduados diretamente com os velhos Gracie. “Hoje em dia o jiu-jítsu está banalizado por conta do MMA. Eu, enquanto professor, não formo lutadores, mas sim ajudo a transformar pessoas”, afirma o publicitário aposentado e professor de jiu-jítsu Flavio Behring, pupilo de Hélio e Barreto, outro faixa vermelha, que sofria de asma e mudou de vida desde que passou a viver na academia Gracie. “No MMA, os lutadores são violentos, querem agredir o adversário. Derrubam com socos e pontapés, enquanto no jiu-jítsu ensinamos as técnicas para fazer isso”, completa Barreto.

Filho mais velho de Hélio, Rorion, 61 anos, levou o jiu-jítsu brasileiro para os Estados Unidos na década de 70 e mantém um museu com o maior acervo sobre a história da família, em Torrance, Califórnia. Em sua academia, ensinou a luta a gente famosa como os atores Mel Gibson e Nicolas Cage, e o jogador de basquete Shaquille O’Neal. Mas é pelas histórias de pessoas comuns que passaram por sua academia que ele gosta de contar o quanto o jiu-jítsu pode transformar uma pessoa. “Tive muitos alunos que passaram nas mãos de psicólogos e não conseguiram se resolver. Vieram aqui e a gente ajudou.” Ele cita o caso de uma aluna policial que tinha pavor de ser atacada por facas e tinha pesadelos com isso. Depois de aprender a lutar, até nos sonhos ela conseguia se defender. “Isso afeta a psique da pessoa. Sua atitude muda, sua personalidade muda. Você se sente mais confiante e isso mexe com tudo”, diz.

Rorion usa o próprio pai como exemplo. “Ele sofria de vertigem e tonturas. Só de subir escadas correndo ele passava mal”, conta. Desautorizado a praticar esportes, ele passou a assimilar a técnica sem colocar a mão na massa, apenas assistindo às aulas do irmão mais velho. Quando isso finalmente aconteceu, reparou que precisaria adaptar o estilo ensinado por Carlos para sua realidade. Sem força, desenvolveu um estilo de luta que consiste no uso de alavancas com o corpo para aplicar os golpes. Uma vez derrubado, o confronto é definido pela imobilização, quando não por sufocamento. “Lutar não significa bater ou apanhar. É possível ganhar de todo mundo com técnica”, disse Hélio à Trip em 2002.

 foto de Rorion Gracie com o aluno Chuck Norris (de pé), Rickson  Gracie (ajoelhado) e alguns praticantes célebres do jiu-jítsu em seus primórdios

foto de Rorion Gracie com o aluno Chuck Norris (de pé), Rickson Gracie (ajoelhado) e alguns praticantes célebres do jiu-jítsu em seus primórdios

Veja abaixo depoimentos de grandes figuras que integraram a academia dos Gracie.

“Meu pai mandou fazer um tatame para a gente. Carlos Gracie fingia que perdia, e eu ficava entusiasmado com aqueles golpes todos, achava o máximo. Tive pelo menos um ano de aulas. Era uma luta extraordinária. Naquele tempo não se falava em defesa pessoal, e meu pai virou um entusiasta, embora não tenha praticado.” Jorge Guinle, playboy carioca e ex-herdeiro do Copacabana Palace, em depoimento no livro Carlos Gracie, o criador de uma dinastia

“Como era faixa preta de judô, achei que podia treinar com eles. Fui para o chão com Rickson e foi como se nunca tivesse treinado. Depois treinei com Royce e o senhor Gracie [Hélio]. Ele me disse: ‘Chuck, bata em mim’. Só me lembro de puxar meu punho para trás. Fui sufocado, fiquei inconsciente, mal conseguia engolir. Ele pediu desculpas pela força e disse que podia me tornar um grande lutador de jiu-jítsu.” Chuck Norris, ator e lutador, em depoimento ao site MMANation.com

“Tive muitas aulas com o Hélio, com o George, com o Carlos. Era um grupo muito bom, muito fraternal, as aulas eram muito divertidas, faziam muito bem. Recomendo a toda a garotada praticar um pouco de jiu-jítsu.” Oscar Niemeyer, no programa Sensei SporTV

“Eu era um nerd. Jogava videogame o dia todo. meu pai quis que eu praticasse esporte. Comecei com 12 anos e virou quase religião. Ia todo dia à academia, tinha vida de atleta. Isso mudou tudo. Ganhei confiança, autoestima, foco. Hoje me sinto mais seguro. O jiu-jítsu me ensinou a segurança de que você não precisa dar um passo adiante.” Cauã Reymond, ator, faixa preta e bicampeão brasileiro de jiu-jítsu

Conexão morro asfalto

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Quatro anos depois da primeira favela pacificada, as comunidades cariocas são descobertas por turistas, atores, cinéfilos, publicitários e, quem diria, fãs de jazz

Rio de Janeiro nunca tinha visto coisa igual. Vestidos para festa, artistas do calibre de Christiane Torloni, Fabio Assunção e Renata Sorrah subiram a favela preparados para pisar no tapete vermelho. Era uma quarta-feira, 18 de abril de 2001. Naquele tempo, a bala corria no Morro do Vidigal, comunidade erguida em uma encosta radicalmente íngreme da zona sul – e zelosamente dominada por criminosos. O adensamento de casas improvisadas se deu, barraco a barraco, até invadir, na marra, o fundo dos cartões-postais mais vendidos nas bancas do Leblon. As lajes de cimento eram o terraço dos traficantes. As miras dos fuzis eram os binóculos para uma vista arrebatadora – inclusive contra quem ousasse botar o pé ali sem autorização, como a polícia. Eram tempos de divisão social escabrosa, apartheid social entre morro e asfalto. Mas o ator Caio Blat recebia, tranquilão, seus colegas famosos para a estreia de sua peça Êxtase, montada em um casarão do grupo teatral Nós do Morro. No meio do gueto, à noite, em uma região que escapava entre os dedos do poder público.

O bas-fond chamou a atenção. Os bandidos foram avisados. “Eles gostaram”, lembra Blat, aos risos, mais de uma década depois. “Tanto que foram receber o pessoal de fuzil na mão. Fizeram escolta armada, como batedores, para as vans que aluguei para trazer amigos”, conta o Fernando da novela Lado a lado.

Ao levar a peça (e os colegas) para o morro, o paulistano Blat acabou se transformando numa espécie de precursor de um movimento que, espera-se, costure décadas de fissura entre classes sociais no Rio de Janeiro. Atualmente, uma maré sem data para secar varre as comunidades, impulsionada pela força policial que, dentro do projeto de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), expulsou delas os vendedores de drogas e seus armamentos de guerra contrabandeados. Com essa nova sensação de segurança, as empresas começam a subir as escadarias labirínticas para conhecer consumidores até então isolados. Os caminhões de coleta de lixo já podem entrar para limpar os espaços. Os gatos de luz e água estão sendo erradicados. Até os médicos conseguem chegar aos postos de saúde sem o risco iminente de cruzar com uma bala perdida.

“Queremos fazer coquetéis na laje, levar atores bombados e a imprensa, acabar com essa história de só fazer lançamento na Barra”, diz Caio Blat

O maior estandarte desse processo é o chamado teleférico do Complexo do Alemão, antigo QG do Comando Vermelho. É um marco porque foi a primeira obra de infraestrutura que o governo fez chegar até o povo carente. Por R$ 1, qualquer cidadão circula por cima de 13 favelas. O meio de transporte foi fundamental para ajudar moradores e interessados a chegar de forma menos insalubre aos becos, antes acessíveis somente após longas e suadas caminhadas. O projeto, inspirado na experiência de Medellín, na Colômbia, virou programa turístico. Estrangeiros cruzam a periferia para ver de perto, e do alto, um mar de casas irregulares.

O arquiteto das favelas

Numa coincidência pitoresca, a obra foi desenhada por um dos grandes amigos de Blat, o argentino Jorge Mario Jáuregui. Conhecido como “o arquiteto das favelas”, por ser autor de vários projetos urbanísticos em comunidades cariocas, ele é outro personagem importante desse processo de aproximação morro-asfalto. Conheceu o ator quando Caio tentava achar alguém intrépido o suficiente para projetar uma casa para ele em um paredão verde em Itanhangá. “Esperava ouvir que meu sonho era impossível, mas acabei encontrando um maluco que se apaixonou pela empreitada e me proibiu de desistir da obra. E fez a casa em que moro hoje”, conta o ator.

Para Jáuregui, o Rio de Janeiro vive um momento ímpar: o desarmamento, acredita, ampliou os limites da cidade, jogando comunidades inteiras no colo dos governantes e obrigando-os a começar a trabalhar por sua urbanização: “O teleférico, por exemplo, não pode ser pensado fora de uma política de urbanização geral, uma reorganização social. Isso inclui aspectos físicos, sociais, ecológicos, de segurança comunitária, além da problemática do cidadão contemporâneo, como relações de trabalho, amor e família”, afirma.

Atualmente, Caio e Jáuregui estão unidos em uma nova aventura. Decidiram montar um cinema na Rocinha. Já têm apoio da prefeitura e de patrocinadores, mas querem montar uma unidade que se banque, cobrando preços populares. Vão emprestar a ideia de Adailton Medeiros, criador do Ponto Cine, em Guadalupe, sala igualmente instalada num bolsão de pobreza, na zona norte, mas que hoje recebe prêmios por ter a maior taxa de ocupação do cinema nacional. “É um negócio, precisa ser sustentável. Eu entro com a parte artística, e o Jorge sobe as paredes”, conta Caio. “Vamos montar um espaço intermediário, que o pessoal do asfalto e do morro possa frequentar. Queremos fazer coquetéis na laje, levar atores bombados e a imprensa. Queremos acabar com essa história de só fazer pré-estreia na Barra.”

Be Bope

Outro protagonista dessa remixagem antropológica que ecoa pelo Rio é Bob Nadkarni. Formado em belas-artes em Londres, ele trabalhou como escultor dos cenários de 2001, uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick, antes de cansar da vida na Inglaterra e pegar uma embarcação para o Equador, em 1972. O navio quebrou, e Nadkarni parou em Salvador. Era o primeiro dia de Carnaval. Desceu do barco sem saber direito onde estava. Em 25 minutos, começou a namorar uma mulata. Perdeu o embarque – e as roupas. Tempos depois, chegou ao Rio, mas, ilegal, acabou deportado em meados da década de 1970. Iniciou a carreira jornalística na Inglaterra, estratégia para regressar ao Rio. Deu certo.

Nadkarni se instalou no Morro Tavares Bastos, no Catete, em 1981, quando o terreno ainda era uma fazenda com 400 pessoas. Usou sua influência como correspondente da UPI e da BBC para convencer o governo a abrir o primeiro e atual QG do Bope, a temida tropa de elite fluminense, num antigo esqueleto de um cassino da família Guinle, no pé do morro. Na base da conversa, pacificou a primeira favela da cidade, bem antes das UPPs. “Nunca tive medo de traficantes”, garante. “São covardes. Passam o dia paquerando e moram na casa da mamãe.”

Nas noites de jazz do The Maze, a cena impressiona: gringos e playboys se enfileiram para subir um morro que, há alguns anos, era frequentado apenas por moradores e viciados

Hoje, ele é dono do The Maze, misto de ateliê, boate e pousada que ocupa uma casa de três andares no mirante da favela. Já recebeu como hóspedes altas personalidades internacionais, como a atriz Charlotte Rampling e o cineasta Alan Parker. Mas sua maior cria foi a festa Jazz at The Maze, festa que toda primeira sexta-feira do mês leva um séquito de turistas e locais para shows de jazz na casa. Logo na entrada do morro, a cena impressiona. Europeus e playboys se enfileiram para subir uma comunidade que, até há pouco, era frequentada apenas por moradores e viciados. Pelas vielas, os cabelos louros das europeias escapavam dos capacetes dos mototáxis. Na edição em que a Trip esteve presente, no começo deste ano, a balada registrou recorde de público: 800 pessoas. “Fiz apenas o básico. Ignorei os bandidos, abri um negócio e hoje vejo minha festa citada como um dos mais interessantes pontos de jazz do mundo”, orgulha-se Nadkarni.

Capitalismo-favela

“As UPPs não significam uma cura radical, mas um grande começo”, acredita a atriz Mariana Ximenes, velha frequentadora do morro. “Agora vêm as medidas de integração social. Investimento em saúde, cultura e educação.” O coordenador da ONG O Rio Pede Paz, Cacau de Brito, concorda com a atriz: “É porque o problema dos morros não se resume às questões de segurança pública. Tudo melhorou, é verdade, mas ainda falta emprego, saneamento, muita coisa a ser resolvida. Há corrupção policial mesmo em morro pacificado. E o tráfico vai continuar, menos chamativo, claro, enquanto houver demanda. São questões maiores, mundiais. Há um problema sério, em Jacarepaguá e no Campo Grande, são as milícias que tomaram conta do espaço deixado pelos traficantes. E surgem denúncias da ligação dos milicianos com políticos”.

Uma experiência muito interessante de levar a economia ao morro ocorre em Santa Marta, Botafogo. Em meio aos barracos erguidos uns em cima dos outros, fica uma sucursal da modernosa agência de publicidade NBS (No Bullshit ou “sem papo-furado”). Lá, em uma sala alugada e decorada como um escritório em Ipanema, uma equipe de jovens publicitários iniciou um trabalho para tentar ensinar grandes empresas a investir nas favelas. Tudo começou quando uma pesquisa corriqueira, tradicional nesse ramo, apontou uma revelação curiosa. Ao perguntarem aos cariocas qual sua maior fonte de otimismo, a pacificação superou todas as respostas – ultrapassando itens como o pré-sal ou a própria beleza da Cidade Maravilhosa. Naquele momento, um sinal de alerta disparou.

“Descobrimos que havia uma revolução acontecendo. Uma grande transformação. E que precisaríamos agir”, explica André Lima, diretor responsável pela empreitada. Desde então, ele passou a levar clientes para mesasredondas em várias comunidades pacificadas. O grupo participou de reuniões de capitães de UPPs, e abriu o salão no morro para os moradores fazerem suas reuniões. “Fomos escutar o que toda essa gente tinha a dizer.”

Foi assim que, em 2012, a agência conseguiu apoio para o baile anual de debutantes do Morro da Providência, que havia sido criado pelo comandante da UPP dois anos antes. Uma edição da festa chegou a ser organizada no Museu Histórico Nacional, com direito a carruagem com cavalos para trazer as garotas – que dançaram valsa com policiais com farda de gala. Manchada pela chaga da gravidez precoce e da violência doméstica, a favela foi usada por anos como moradia de segundas famílias de muitos homens, trabalhadores que passavam pela vizinha Central do Brasil – e criavam lares paralelos. “É uma situação muito dramática”, resume o diretor da NBS.

A ideia do baile “diferente” veio da agência, em resposta a uma demanda dos jovens da comunidade, que sentiam falta de sair para dançar desde que os bailes funk irregulares foram proibidos pela polícia. “Hoje, aquelas garotas têm os policiais como ídolos, e não os traficantes armados”, diz o publicitário. “Hoje, o sofisticado é o simples. Para uma marca se diferenciar, ela tem que promover transformações. É isso que estamos tentando fazer, em nome do Rio.”

Thelma Vilas Boas

Turistas a caminho do Complexo do Alemão

Turistas a caminho do Complexo do Alemão

Falta muito
O projeto das UPPs não terá futuro se as instituições policiais não forem refundadas

Por Luiz Eduardo Soares *

As relações entre “asfalto” e “favelas” no Rio de Janeiro sempre foram ambíguas e contraditórias. Trata-se de uma longa e penosa história de amor e ódio, admiração e discriminação, idealização e rejeição. Desde a reforma urbana de Pereira Passos, no começo do século passado, na qual modernização rimava com remoção de cortiços e segregação higienista dos pobres, até as remoções promovidas pelo governo Lacerda, no início dos anos 1960, passando por momentos de assistencialismo autoritário e integração ambivalente do clientelismo, as favelas foram definidas como problema social, fonte de ameaça e risco, violência e contágio, desordem e caos.

Por outro lado, atravessaram o século 20 vistas como centros geradores de arte, núcleos dinâmicos da cultura popular, sobretudo nos campos da música e da religiosidade. Chegaram a ser idealizadas como espaços de vida autêntica e fraterna, abençoados pela beleza, promotores potenciais de transformações políticas e sociais. A imagem da favela oscilou entre promessa utópica (”Quando derem vez ao morro toda a cidade vai cantar”) e origem do grande medo da classe média: “Nós vamos invadir sua praia”. Lado A e lado B dessa valorização ambivalente revelavam-se nas visitas de grandes artistas às favelas, ao longo das décadas, assim como na distância da classe média. Nos fins de semana, jovens do asfalto iam aos morros sambar. Outros evitavam o contato. Com o funk, a história se repetiu: playboys e patricinhas enchiam as quadras das favelas, contra a vontade dos pais.

Essa longa trajetória de ambivalências sociais acabou levando às favelas benefícios infraestruturais e conquistas sociais, ainda que parciais e insuficientes, porque o preconceito e a desigualdade de tratamento por parte do Estado prevaleceram. As ambiguidades traduziam a dubiedade prática: esses “lugares indesejados das gentes” reduziam o valor dos imóveis vizinhos, mas garantiam a provisão da força de trabalho barata para os serviços domésticos da classe média e das elites cariocas.

A única área em que praticamente nunca houve oscilação e ambivalência foi a segurança pública. Salvo em alguns momentos históricos, as favelas foram palco da violência policial, inclusive da brutalidade letal, praticada em incursões policiais bélicas e genocidas. Considerando-se
esse painel, compreende-se a importância das UPPs, concebidas para substituir as invasões bélicas, nas quais morriam inocentes, suspeitos e até policiais. As incursões espalhavam o terror e mostravam que o Estado tratava as comunidades como “inimigas” ou aliadas dos “inimigos”, e não como conjuntos de cidadãos, destinatários do serviço. Prendiam-se alguns traficantes (substituídos de imediato como peças de reposição), apreendiam-se armas e drogas e os resultados eram apenas negativos. Com a implantação de uma UPP, o Estado afirma que a comunidade deve ser tratada como os residentes dos bairros nobres. Não há invasão policial de Ipanema. O serviço policial ali é prestado dia e noite. Essa presença contínua nas favelas inibe o domínio territorial despótico por grupos de traficantes ou milicianos. O objetivo é suprimir o controle territorial exercido por grupos criminosos. Mas essa liberação deve ser acompanhada pela provisão dos demais serviços públicos. Além disso, a cultura policial tem de ser transformada. Caso contrário, a liberação vai se degradar em novo despotismo e a pacificação será o nome fantasia do arbítrio. O projeto das UPPs não terá futuro nem poderá expandir-se (hoje atende a menos de 30 favelas) se as instituições policiais não forem refundadas. Enquanto as mudanças não chegam, chegam às favelas os novos visitantes, os vizinhos do asfalto que antes temiam esse grande Outro, esse enclave enigmático e perturbador, espelho de nossas divisões e da despudorada desigualdade brasileira.

* Luiz Eduardo Soares é antropólogo e escritor, especialista em segurança pública. Foi homenageado no Prêmio Trip Transformadores 2012.

Thelma Vilas Boas

Cenas da moite de Jazz no The Maze, no Catete

Cenas da moite de Jazz no The Maze, no Catete

 

Vá sem medo

Habitués dos morros cariocas indicam o melhor da programação cultural das comunidades

Mariana Ximenes, atriz
Central Única de Favelas - Cidade de Deus: Rua José de Arimateia, 90, Cidade de Deus. 

Pastoril da Matriz - Rua da Matriz, 80, Botafogo. 

Jorge Jáuregui, arquiteto
Pizzaria Lit - Estrada da Gávea, 523, Rocinha.

Teleférico do Alemão
Partida: Estação Bonsucesso (Pça. das Nações, s/n, Bonsucesso) 

Caio Blat, ator
Ponto Cine Guadalupe (Guadalupe Shopping) - Estrada Gamboatá, 2300 Guadalupe. 

Teatro Nós do Morro - Rua Dr. Olinto de Magalhães, 54, Vidigal.

Kevin Costner da Caatinga

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Em mais uma missão adrenalizante, nosso repórter excepcional se infiltra no preparadíssimo time de seguranças de Zezé di Camargo & Luciano e, com a galhardia que lhe é peculiar, não deixa o show parar

A vida é um contêiner de surpresas e eis que, desta vez, me apanho em ambiente inóspito, como parte de uma egrégora de seguranças vestidos com sua clássica indumentária, a saber: terno escuro, gravata lisa, sapato engraxado e, o mais importante de tudo, o carão. A única coisa que me diferencia de meus colegas é minha cabeleira, que não segue o padrão cabelos rentes e aparados da Forceseg, empresa que presta serviço de segurança pessoal. Tento disfarçar a juba, que parece um xaxim da Serra da Mar. Afinal, sou integrante do time. E nossa nobre função é zelar, veja você, pela integridade da dupla romântica Zezé Di Camargo & Luciano.

Atento, acompanho sem piscar os olhos as orientações sobre como proceder. O líder, Weder Godoi, delega as tarefas antes de cada show. O time é composto de cinco homens (sou o sexto elemento). Leais, treinados, disciplinados e prontos para qualquer situação. Recebo, atento, a minha missão: acompanhar e observar o zum-zum dos fãs diante da movimentação no palco.

Até aquele momento, os ídolos sertanejos ainda não haviam chegado ao Credicard Hall. A expectativa é aparentemente tranquila. Sou convocado para fazer uma ronda com meu novo colega, Rafael Krewer, pela parte interna do Credicard Hall, entre as mesas e o palco. Rafael é meticuloso com as estruturas e o posicionamento das cadeiras e mesas próximas ao palco. Depois de analisar milimetricamente e aprovar, acerta os últimos detalhes com a chefia de segurança da casa de espetáculos. Até o presente momento, tudo está nos conformes.

Pelo rádio, Krewer recebe a informação de que a dupla vendedora de 36 milhões de discos já está nas proximidades. Sigo os passos determinados de Rafael e me posiciono atento diante dos camarins. Luciano é o primeiro a se aproximar, com um largo sorriso exalando simpatia e camaradagem. Na sequência, surge Zezé, rodeado de seu séquito de amigos e convidados.

Durante um bom tempo fiquei como um obelisco, postado diante do camarim olhando o comportamento das privilegiadas fãs – raras são as que conseguem falar com os ídolos antes dos shows. Luciano atende algumas delas e, em seguida, vem trocar prosa conosco, os seguranças. “Eu e o Zezé temos dois seguranças fixos, o Alex e o Sebastião”, conta. “Quem manda na nossa vida são eles. Muitas vezes, tenho que aguardar no carro ou em casa até receber o sinal verde do Alex. O Sebastião está comigo há 14 anos. Dirige pra mim, respira o ar que eu respiro.”

Luciano conta que eles passam por cursos e treinamentos especiais. Recentemente, estiveram na SCAP Táticas Defensivas, uma escola em Castanhal, interior do Pará, considerada uma das melhores do mundo. “Sou disciplinado para obedecer aos seguranças. Aqui a gente conversa, ri, brinca, mas as situações do dia a dia são bem mais complicadas do que as dos shows.” Zezé se aproxima e complementa: “Nas viagens, eles precisam estar em estado de alerta 24 horas ao redor dos nossos movimentos. São os seguranças que coordenam a logística em todas as cidades e casas de espetáculo onde nos apresentamos”.

Mãos à obra

Rafael Krewer me chama para a última inspeção antes do início do show. “Não cruze os braços” – ele chama a minha atenção para os detalhes. “As mãos têm de ficar entre o umbigo e a genitália, e aquela mais habilidosa por baixo.” Acaba de cair o mito de que segurança bom é segurança marrento, de braços cruzados. Outra dica: ficar atento às mãos de quem se aproxima. “O que agride não são os olhos, são as mãos. E não importa o público, por mais que o conheçamos, não podemos nos descuidar das mãos. Um bom segurança não impede a plateia de se aproximar do artista. Só não pode puxar cabelo, arrancar roupa, morder.”

Chega de teoria: os portões foram abertos e, minutos depois, duas ardorosas fãs já estão grudadas no pescoço de Rafael. Querem, desesperadamente, ver, fotografar, tocar em seus ídolos. É a hora de o meu tutor mostrar sua sapiência. Rafael dá o mapa da mina e explica que há uma assistente da dupla, chamada Camila, a quem foi delegada a missão de agendar os encontros no camarim após o show. Educado, mas encerrando o assunto, Rafael passa o telefone de Camila às fãs e rapidamente se coloca a postos para o show que vai começar.

Por um bom tempo fiquei como um obelisco, postado diante do camarim, olhando o comportamento das fãs

O chefe de segurança do Credicard informa que está tudo OK. Pelo rádio, Rafael dá o sinal verde para Weder. As cortinas sobem e as explosões de luzes e percussão introduzem “Sonho de amor”, sucesso recente da dupla. Àquela altura do campeonato, já havia incorporado o Kevin Costner da caatinga. Meu olhar de águia repousava sobre a plateia, detectando como por instinto os movimentos das mãos das cercanias. Os filhos de Francisco soltam a voz e o show esquenta.

A interação entre artistas e público é impressionante, mesmo para quem não é muito afeito ao pop romântico de herança sertaneja. O êxtase é coletivo, mas devo manter a compostura. Sou um totem entre os seguranças da casa, impávidos, de costas para o palco e atentos ao público. Flashes disparam, celulares captam imagens. Explode o coral feminino de centenas de vozes. Lágrimas vertem de olhos apaixonados. Famílias se abraçam, casais se entrelaçam e se beijam. Nada disso importa. Meu negócio é olhar para as mãos.

Um de meus colegas me dá a deixa para ir à outra extremidade do palco. No trajeto, uma senhora me aborda e, com muita delicadeza, pede para ver os ídolos. Essa merece: veio de Manaus especialmente para assistir ao show e, quem sabe, trocar algumas palavras com a dupla. Conforme o exemplo de Krewer, passo o telefone de Camila e dou as orientações devidas. O olhar da manauara é de uma criança agradecida.

Recebo a orientação para ir até os camarins. Zezé está empreendendo uma troca de figurino e minha missão é me posicionar em um ângulo tal que evite surpresas, como alguma fã surgindo do além. Vestido, antes de retornar ao palco, Zezé interrompe seu trajeto e, sério, para ao meu lado e me pergunta: “Arthur, o que eu faço agora?”. Por uma fração de segundo, fico travado. Zezé solta uma sonora gargalhada e entra no palco. Ufa, posso seguir minha ronda.

A plateia se alvoroça com os mega-hits “É o amor” e “Menina veneno”, mais explosões de luzes e cores e pronto. Quatro horas depois de começar minha saga de segurança, a missão está cumprida. Zezé Di Camargo e Luciano voltam inteirinhos para seus respectivos lares, ovacionados pelo público. E eu me preparo para repousar meu corpo moído, com a certeza de sonhar com as mãos e mãos que ficaram gravadas na minha retina.

O chacra da pança

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Silvio Fatz

Arthur com Sri Prem Baba

Arthur com Sri Prem Baba


Caminho a passos largos diante do tsunami de seres humanos que circulam no vaivém do Khumba Mela, festival hinduísta que toma, de tempos em tempos, a cidade de Allahabad. Sou deslocado pelo frenesi da massa humana que se espreme no setor três, músculo cardíaco deste organismo com mais de 70 milhões de pessoas. Um êxodo bíblico de proporções inimagináveis. Nesta área, encontra-se o suprassumo dos saddhus (homens santos), dos peregrinos e das organizações religiosas milenares. Minha energia circula livremente, como um rio límpido, observando comportamento, visual, postura e hábitos dos gurus e do povo em geral. Detecto que uma parte dos homens carrega uma barriga avantajada. Mesmo os magrinhos cultivam uma pancinha desequilibrada. Sinto minha barriga tremer de emoção e percebo que o terceiro chacra, o manipura, se manifesta. Controlo fazendo algumas contrações e exercícios respiratórios. Pela graça divina das águas do Ganges, não existe nenhum problema gástrico. Do setor três, me desloco para a beira do rio Yamuna e atravesso solenemente de barco para o setor 13, onde estou acampado. Ali está concentrada a sangha (família espiritual) e os discípulos do guru Sri Prem Baba, brasileiro que virou guru e que entrevistei para a Trip há três anos. Tenho um encontro ao cair da tarde com Sri Prem Baba e, aproveitando o ensejo, pergunto justamente sobre o funcionamento do chacra do umbigo.

Silvio Fatz

Arthur com amigo no festival Khumba Mela, na cidade de Allahabad

Arthur com amigo no festival Khumba Mela, na cidade de Allahabad

Qual a função do terceiro chacra?
O terceiro chacra, conhecido como chacra solar, é a sede do poder. Quando está ativo e girando no ritmo adequado, o ser humano manifesta o poder em sua forma pura. O poder que constrói, que está a serviço do amor, que pode gerar união, saúde, realização. Ao mesmo tempo, ele é a sede do ego. Quando seu poder está contaminado pelo egoísmo e pelo ódio, seu filho predileto, torna-se destrutivo. Vira agressividade, violência.

É um chacra vulnerável? Podemos neutralizar esse efeito com exercícios?
Ioga e taichi ajudam a fortalecer esse centro de energia e os órgãos relacionados a ele. Mas o que realmente possibilita que o terceiro chacra gire da forma correta é o autoconhecimento: identificar os aspectos da personalidade que distorcem esse atributo divino e, em seguida, realizar o árduo trabalho da transformação.

Os sintomas negativos são raiva, medo e problemas digestivos?
Fisicamente, esse chacra comanda o aparelho digestivo, e o estômago é seu principal órgão. Então, quando seu poder é usado indevidamente, há tendência a problemas gastrointestinais: os órgãos da região ficam enfraquecidos. Mas o principal aspecto nocivo é o uso indevido do poder.

As emoções ficam comprometidas?
E a ação também. A ação é fruto do poder. Se o poder é contaminado pelo ódio, a ação também é. Estamos falando da energia masculina, do poder de ação. Muitas vezes, para não gerar destruição, a pessoa se paralisa. Ela sabe o que precisa fazer, mas não consegue. Isso pode ser entendido como preguiça, depressão, falta de entusiasmo. Mas é um mecanismo autorregulador: ela sabe que, se fizer, vai gerar destruição. Muitos indicam exercícios físicos, energéticos, respiratórios e posturas de ioga que ajudam a reequilibrar o chacra. Mas essa melhora é temporária, porque estamos tratando o sintoma e não a causa. Para que haja solução definitiva, a pessoa tem que ter disposição para voltar a atenção para si mesma e entender o que está gerando o distúrbio.

Notei que aqui há homens hindus com pança avantajada.
[Risos] Você sabe que existe um ditado por aqui que diz que todo guru tem tendência à pancinha? Porque ele relaxa demais e o abdome relaxado tende a crescer.

Existe diferença entre o terceiro chacra nos homens e nas mulheres?
Não. Tanto na mulher quanto no homem é o chacra do poder e do ego. Mas a distorção do poder masculino é a agressividade, enquanto a do poder feminino, além da violência, pode ser a vitimização, a submissão.

Quem come muito pode fazer isso por desequilíbrio desse chacra? Ele tem relação com o prazer de comer?
Tem. Quando existe a distorção desse atributo divino que é o poder, quando o ego está no comando, há ansiedade, essa certeza de que falta algo que não se sabe o que é. É muito fácil preencher esse vazio com comida. O ser humano é educado assim. Sempre que tem um desconforto, vem um docinho, uma comidinha. Assim ele tenta fugir da angústia existencial de não saber quem é, de estar sob a tirania do ego.

Arthur com amigos no festival Khumba Mela, na cidade de Allahabad

Arthur com amigos no festival Khumba Mela, na cidade de Allahabad

É tudo uma coisa só

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Katie Scott

 

Pesquisando o complexo sistema nervoso que comanda a digestão, os cientistas começam a elucidar a ligação evidente entre a barriga e nossos sentimentos — e a entender o que a medicina oriental já dizia: que é preciso digerir bem o medo, a raiva e a angústia. E que físico e emocional são inseparáveis

Atire a primeira pedra quem nunca sentiu frio na barriga de medo. Ou teve de sair correndo para o banheiro em uma situação de tensão. Ou perdeu o apetite ao se apaixonar loucamente. Ou sentiu o estômago revirar diante de uma visão repulsiva. Ou engordou por ansiedade. Ninguém nega que a barriga seja um campo fértil para a somatização, o nome genérico que se dá à transformação de emoções negativas em males físicos, com consequências tão graves que chega a ser reconhecida pela Organização Mundial de Saúde. Mas por que tanto assim?

A resposta pode estar no estudo aprofundado sobre a respeitável rede de neurônios que comanda a função digestiva, e na revelação de que boa parte dos neurotransmissores que circulam pelo corpo, carregando emoções e sensações, tem origem no intestino. Incluindo a serotonina, hormônio do bem-estar.

“Na verdade, essas descobertas só dão base concreta ao que já sabíamos intuitivamente”, diz Marcílio Hubner de Miranda Neto, médico e coordenador do Laboratório de Pesquisas em Neurônios Entéricos da Universidade Estadual de Maringá (PR). “A vida emocional tem relação direta com os hábitos alimentares, e o funcionamento da digestão é diretamente influenciado pelas emoções”.

Cada uma à sua maneira, as medicinas, filosofias e religiões orientais conhecem e explicam essa via de mão dupla há milênios. Os japoneses acreditam que é na barriga que se sente, se pensa, se tomam decisões, se guardam segredos. A importância do hara na cultura japonesa se reflete em uma coleção de expressões populares, envolvendo a barriga, de fazer inveja às nossas, que não são poucas (leia o boxe “A voz das tripas”).

O sistema de chacras, que sustenta até hoje a medicina hindu e está na base da filosofia dos iogues, relaciona intimamente emoções e órgãos. Descritos pela primeira vez nos Vedas, textos hindus datados de 2 mil anos antes da era cristã, os chacras (roda, em sânscrito) são sete redemoinhos de energia que se alinham ao longo da coluna. Cada um tem a incumbência de distribuir o nutriente que vem da respiração – o prana – a um grupo específico de órgãos; e a cada um cabe processar pensamentos e sensações específicos.

A barriga abriga dois chacras importantes: o segundo, swadhisthana, ligado ao aparelho reprodutor, ao impulso sexual e às funções de desintoxicação; e o terceiro, o manipura, que o guru brasileiro Sri Prem Baba define como “a sede do poder de realização e do ego” (leia entrevista a Arthur Veríssimo nas páginas a seguir).

Se os chacras não funcionam bem, por algum desequilíbrio, podemos reter sentimentos como medo, raiva e angústia, explica Simone Caldeira, terapeuta corporal que usa o toque para trabalhar a integração craniossacral. Os órgãos podem ter ou não sua função otimizada, dependendo de como a energia flui por eles. “Se o chacra está bloqueado, as funções físicas e emocionais também estão”, diz. Nesse pensamento, físico e emocional “são uma coisa só”.

 

“A região abdominal é nosso centro de energia. É como se fosse uma segunda mente”, monja Coen

 

A medicina tradicional chinesa, que considera a barriga “o centro do homem”, estabelece com precisão como cada emoção negativa altera o funcionamento dos órgãos. “Baço, pâncreas e estômago metabolizam a comida, transformando-a em um substrato sem o qual nada no corpo funciona”, diz o acupunturista Marcius Luz, de São Paulo. “Se a energia dos órgãos se desequilibra, o substrato acumula, gerando obesidade, por exemplo.”

A desarmonia pode vir de excessos alimentares ou emocionais: para os chineses, preocupação excessiva e pensamentos obsessivos esgotam a energia do baço, e a raiva afeta o fígado.

O segundo cérebro

Praticada há 5 mil anos na Índia e cada vez mais conhecida no resto do mundo, a ayurveda tem uma imagem curiosa para a digestão. Segundo essa medicina, a barriga abriga o agni, um fogo metabólico que processa não só comida, mas tudo que experimentamos: emoções, memórias, sensações. Se o agni é ou está fraco, toxinas e emoções se acumulam, gerando dor, suscetibilidade à infecção e obesidade, assim como depressão, fadiga e dificuldade de se manifestar. “Por isso, o abdome é o centro das emoções”, diz Erick Schulz, vice-presidente da Associação Brasileira de Ayurveda.

“A região abdominal é nosso centro de energia. É como se fosse uma segunda mente”, diz a monja Coen, fundadora da Comunidade Zen-budista, em São Paulo. Nesse ponto, a neurociência tende a concordar. Com 100 milhões de neurônios acomodados do esôfago ao ânus – mais do que o resto do sistema nervoso periférico inteiro –, o aparelho digestivo é, de fato, um segundo cérebro.

O primeiro a dizer isso com todas as letras, em 1996, foi o neurobiólogo norteamericano Michael Gershon, que chefia o departamento de anatomia e biologia celular da Universidade Columbia, em Nova York. Em seu livro The Second Brain, ele explica que, para administrar cada reflexo, espasmo e mudança química necessária à transformação dos alimentos – do esôfago ao estômago, do intestino delgado ao cólon –, o aparelho digestivo precisa avaliar cada situação, decidir-se por uma linha de ação e iniciar movimentos. Daí ser relativamente autônomo em relação ao cérebro, e daí envolver tantos circuitos de neurônios, neurotransmissores e proteínas.

“O intestino realiza funções de alta complexidade. Se ele não pensa de forma autônoma, como o cérebro, é certamente embarcado com grande inteligência”, diz Luiz Guilherme Correa, médico formado pela Universidade de São Paulo (USP), onde também cursou filosofia, e especializado na medicina tradicional indiana. Essa complexidade deve explicar, acredita Gershon, por que doenças como ansiedade, depressão e síndrome do intestino irritável se manifestam de formas associadas no cérebro e no aparelho digestivo. Grosso modo, nossos pensamentos e emoções são influenciados pelo que acontece nos intestinos, e vice-versa.

E tem mais. “Sabemos, pela neurociência, que 90% da serotonina não é produzida no cérebro, mas no abdome, na região do intestino e do fígado”, diz Ricardo Ghelmam, que coordena o Núcleo de Medicina Antroposófica da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp). “Então, se uma pessoa tem depressão, por exemplo, isso não é um problema de cabeça, mas do metabolismo digestivo.” Para a medicina antroposófica, o abdome está ligado à vitalidade e à força de vontade.

Com tantos fios conectando emoções e digestão, parece claro que, para o bem da barriga, é preciso cuidar da cabeça – e vice-versa. “Se você quiser aumentar a serotonina, a vontade de viver, o impulso de vida, tem de estimular essa força metabólica ligada à barriga”, diz Ghelmam. “O sedentarismo e a alimentação pobre em fibras vão na direção oposta disso, gerando doenças crônicas degenerativas, como diabetes, hipertensão e até câncer.”

Fortalecer a musculatura do abdome por meio de práticas voltadas diretamente para ela, como ioga, tai chi e pilates, também é uma forma de estimular as funções digestivas – e, por consequência, serenar as emoções. A monja Coen sugere um começo: “Respirar de forma consciente, profunda e suavemente, sentindo o abdome se expandindo e retraindo, é o caminho para nossa casa do tesouro, que jamais se exaure”.

Respirar fundo é básico, concorda Simone Caldeira. Para se sentir melhor e para não ter barriga proeminente. “O diafragma, responsável pela respiração, é um músculo intimamente ligado ao medo e ao estresse. Em estresse, ele ‘respira curto’, e isso causa dezenas de problemas”, explica. Na floresta, os animais respiram curto para não serem ouvidos pelos predadores. “A respiração faz um barulhinho que, na floresta, pode custar a vida”, diz. Pela mesma razão instintiva, homens e mulheres encurtam a respiração quando têm medo. “Em cidades como São Paulo, o predador está presente o tempo inteiro, na forma do chefe, do rival, da violência. Então a gente respira curto sem notar.” Com a tensão que isso gera, o diafragma é empurrado para baixo, na direção do chão, pressionando todos os órgãos e forçando o abdome para frente. “Os homens têm muito isso. E aí pode malhar quanto quiser que a barriguinha não sai.”  

Katie Scott

 

A voz das tripas

Expressões idiomáticas em várias línguas põem emoções como medo, raiva e vontade no devido lugar: a barriga

A ligação entre emoções e barriga pode ser um mistério que só agora a ciência ocidental começa a elucidar. Mas, na língua do dia a dia, sempre foi dada como certa. E não só na nossa. Entre as sensações “estomacais” universais que ganham expressão inclui-se aquele misto característico de ansiedade, excitação e medo. Em inglês e alemão, borboletas no estômago; em espanhol, bolhas de sabão na barriga; aqui, frio na barriga.

Usamos soco no estômago para falar tanto de agressão física quanto de qualquer outra que pegue no lugar certo. E não somos os únicos a confundir náusea física e desgosto ético: em inglês, francês, espanhol e alemão, algo revoltante dá vontade de vomitar.

Se em português é preciso ter estômago para aguentar uma situação aviltante, em inglês a expressão equivale a querer. A cultura anglosaxônica também põe coragem e intuição na barriga. Ter tripas é ter, digamos, colhões; e sentir nas tripas é ter uma revelação.

Nada se compara, porém, à barriga dos japoneses. O hara não é só abdome, intestino, estômago. É onde moram coragem, determinação, vontade, imaginação e entendimento, além do lugar onde as decisões são tomadas.

Assim, barriga grande é metáfora para mente aberta; barriga pequena, para pobreza de espírito; barriga dura equivale ao nosso “coração de pedra”; ler o estômago de alguém é entender a intenção alheia; ir pela barriga, agir com integridade; guardar na barriga, manter segredo.

Quando os japoneses ficam bravos, a barriga ferve. Já para os franceses, estar com o coração na barriga equivale a ter “sangue nos olhos”. A barriga dos franceses também é uma espécie de ponto fraco, em matéria de honra: pisar na barriga de alguém é passar por cima da pessoa. Idem para os alemães, que chamam fracasso de barrigada.


Um, dois, supera!

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Os personagens e a rotina da Ilha Point, academia da zona norte carioca que reivindica o título de maior salão de musculação do Brasil

Lá o som ao redor é uma mistura de batidão eletrônico, esteiras rolando, respiração ofegante, ruídos de conversa condensados e ferro batendo contra ferro. De vez em quando, risadas de adultos, gritos de crianças e exclamações como “Vambora, força!” sobressaem nessa amplificada massa sonora. Luzes frias iluminam o cenário tomado por espelhos e telas de TV, onde centenas de pessoas dedicam-se a lapidar corpos de diversos portes, cores e idades. Estamos na maior sala de musculação do Brasil – é o que professa um cartaz na entrada da academia Ilha Point, na Ilha do Governador, zona norte do Rio.

O maquinário de forjar músculos e suprimir gorduras que se encontra por ali é de cair o queixo quadrado de qualquer marombeiro: são 80 esteiras, 60 bicicletas e mais de 200 aparelhos de puxar ferro. Uma piscina semiolímpica, salas de aula, um salão de beleza, uma clínica estética e lojas de roupas para malhar e suplementos alimentares complementam o complexo. Só a sala de musculação ocupa uma área de 2.500 metros quadrados, distribuídos em dois andares de um edifício com ares de antiga fábrica, que poderia ter virado igreja evangélica ou filial de universidade particular, como outras construções similares na região. Acabou convertido em um templo dos corpos torneados, um monumento à obsessão dos cariocas pela forma e, ainda, para alguns, o símbolo de uma grande transformação no cada vez mais disputado mercado fitness brasileiro.

Vamos por partes, como o bom treinador, que sabe que é preciso trabalhar cada grupamento muscular de uma vez. Em primeiro lugar, o que faz o ambiente de uma academia são as pessoas que a frequentam.

Morador de Ramos, também na zona norte, Julio Cesar Moura, 38 anos, é um dos personal trainers que trabalham ali com uniformes negros, que os diferenciam dos demais professores. Além da Ilha Point, ele dá expediente em mais duas academias, uma na Penha e outra em Jacarepaguá. Dizendo-se um “pezão”, cruza o subúrbio de ônibus e van, encarando o verão mais quente das últimas décadas. A zona sul e a Barra, meca das academias cariocas, não fazem parte do seu roteiro.

Carismático e hiperativo, Julio Cesar gosta de ser chamado de Personal Boladão. O apelido, ele explica mexendo a cabeça e balançando as pernas sem parar, deve-se à determinação incansável com que busca motivar os alunos. Na Ilha Point, Boladão (atendendo ao seu pedido, só o chamaremos pelo nome artístico) treina sete mulheres e um homem. Ganha em média R$ 50 por hora e repassa à academia R$ 100 por mês por cada aluno.

É preciso estar atento e forte: caso você tenha a honra de um dia integrar o Team Boladão, deve estar preparado para receber diariamente mensagens SMS como: “Nada de pizza depois do Fantástico, hein?” ou então: “Boa noite. São 11 horas, eu já estou dormindo. E você?”. “Hoje, o mercado exige diferenciais. Os meus são saber motivar o aluno e me manter conectado, mesmo fora da academia. Eles sabem que estou sempre pensando e cuidando deles”, explica o personal, esperando sentado por uma aluna que lhe deu chá de cadeira.

Lambaeróbica

A primeira aluna só foi chegar por volta de onze da manhã. Era a comissária de bordo Camila Vieira, antiga amiga que resolveu experimentar o método Boladão de exercício. Ex-funcionária da Web Jet, incorporada pela GOL no ano passado, Camila continua recebendo salário por determinação judicial, embora não tenha voado nos últimos meses. Ela trata de aproveitar o tempo livre correndo atrás do prejuízo na academia: “Fiz uma preparação de quatro meses só para voltar à academia, não queria chegar aqui parecendo uma velha. Agora estou alcançando o ritmo”, conta a aeromoça, enquanto descansa um pouco.

 

As mulheres, 60% do público da Ilha Point, são maioria em aulas com nomes em inglês, como Dance mix, Power lifting e Body balance

 

Quando a atividade recomeça, Boladão apresenta outra de suas marcas registradas: os lemas motivacionais. “Um, dois, supera! Três, quatro, cadê? Não tô vendo! Cinco, seis, rompe! Sete, oito, rompe! Rompe! Nove, supera, vamos lá! Dez! Largou o peso e correu pra esteira”, arremata, e sai correndo na frente com o tablet no qual monitora o rendimento do alunos.

As mulheres formam cerca de 60% do público da Ilha Point e são maioria também em aulas com nomes em inglês como Dance Mix, Power Jump, Power Lifting e Body Balance. Em uma das salas, umas 30 mulheres e apenas dois homens pulam em pequenas camas elásticas ao som de um inusitado rock’n’roll. O triatleta e entusiasta da malhação aeróbica Luiz Felipe Aguiar comanda a aula, incendiando a turma com gritos de: “Força, vamos dançar!”. Em salas ao lado, a lambaeróbica – verdadeira fênix das academias – e o spinning correm soltos.

Por volta de sete da noite, a Ilha Point está em seu horário de pico, com esteiras tomadas e uma multidão correndo, malhando e conversando. Crianças brincam em um parquinho indoor, enquanto os pais trabalham... o corpo. No andar de cima, os marombeiros da pressão revezam nada menos do que seis supinos. Alguns deles são militares que servem na base aérea do Galeão, a poucos metros da academia. É o caso do capitão de infantaria da Aeronáutica José Luiz Gondin. Com seus 46 centímetros de bíceps e sua barba modelada (“Agora posso usar, pois estou de férias”), Gondin é um dos frequentadores mais assíduos da Ilha Point, malha de domingo a domingo, geralmente duas vezes por dia. “Tenho dois objetivos: chegar bem aos 100 anos e poder comer todas as besteiras que quiser”, diz o sarado militar de 49 anos.

Thelma Vilas-Boas

A instrutora Aline Oliveira é campeã carioca, brasileira e sul- americana de fisiculturismo (ou body fitness, como ela prefere chamar)

A instrutora Aline Oliveira é campeã carioca, brasileira e sul- americana de fisiculturismo (ou body fitness, como ela prefere chamar)

Tigresa do funk

Nas paredes verde-menta da Ilha Point estão colados cartazes com propagandas de campos de paintball, tratamentos estéticos a dar com pau, mercados de verduras e uma hipercalórica cadeia de pizzarias. Destaca-se em meio a essa miscelânea o rosto do cirurgião plástico Gustavo P. Vaitsman, cujo anúncio se repete em uma página inteira na revista da academia. Encontramos o doutor Vaitsman, que tem consultório nas cercanias, malhando com seu personal em uma tarde de segundafeira: “Tanto eu como a academia temos como público-alvo pessoas que se preocupam com beleza e saúde. Hoje, somos parceiros: eles me indicam para os alunos interessados e eu recomendo para cá pacientes que precisam fazer exercício”, explica com naturalidade o médico, que já foi campeão brasileiro de iatismo e hoje transpira para entrar em forma.

Outro rosto conhecido na Ilha Point é o da modelo Mariana Souza, musa da escola de samba União da Ilha, ex-dançarina de Mr. Catra e, atualmente, vocalista do grupo As Tigresas do Funk. Diariamente, ela desfila por ali suas formas generosas vestidas em tons vibrantes, adornada por pulseiras e brincos de ouro e levando a estrela de Davi tatuada no antebraço. A responsável por suas formas é a inseparável personal trainer Aline Oliveira, que só à noite pode se dedicar ao próprio treino. Ossos, ou melhor, músculos do ofício: além de instrutora, Aline é campeã carioca, brasileira e sul-americana de fisiculturismo, ou body fitness, como prefere chamar. Atualmente, treina para o Arnold Classic, competição internacional que ocorrerá no Rio, em abril. “Eu respiro esta academia. No início, o pessoal não entendia muito bem o que era body fitness, achava que era só bomba. Hoje, recebo muito apoio.”

Geração Cocoon

Por volta das 17 horas, três vezes por semana, Maria Auxiliadora Trajano, a Dodô, aparece religiosamente no salão de ginástica. Com 74 anos, é uma das decanas da academia. Piadista, gosta de dizer que estacionou nos 35 e que malha para não enferrujar. Na verdade, Dodô convive com uma fissura crônica na medula, fator de risco para a leucemia, e assegura que a ginástica tem sido fundamental em sua luta para não sucumbir. Obstinada, em março pretende renovar a matrícula por mais dois anos, aderindo ao mais extenso plano de fidelização da academia. “Desde que comecei a malhar, fiquei viúva e aconteceu muita coisa, mas continuo aqui, caminhando meus 2 quilômetros por dia. Ajuda a arejar a cabeça”, explica Dodô, aposentada por um escritório de advocacia e ex-presidente do clube de escoteiros 77 Uirapuru, cujo lema, “Sempre alerta e obediente”, faz questão de repetir.

 

"O mercado exige diferenciais. Os meus são saber motivar o aluno e me manter conectado, mesmo fora da academia"

 

O caso de Dodô ilustra bem duas estratégias contemporâneas das academias: fidelizar o máximo de clientes e atrair o crescente público da chamada melhor idade. “Estamos assistindo a um fenômeno que gosto de chamar de Geração Cocoon, gente de 70, 80 anos que quer continuar vivendo e fazendo esporte. As academias precisam aprender a atrair e lidar com esse público”, revela o empresário paulista Waldyr Soares, 72 anos, presidente do Instituto Fitness Brasil, malhador contumaz e espécie de think tank do ramo no país. “Sou um dinossauro nesse negócio e só sei que é o melhor momento que já tivemos.”

Recentemente, Waldyr visitou e malhou em dois extremos do mercado, a luxuosa Body Tech, do Shopping Eldorado, em São Paulo, cuja mensalidade chega a R$ 500, e uma recém-inaugurada academia a preços populares no bairro de Cocaia, na periferia paulistana, frequentada por caminhoneiros, empregadas domésticas e motoboys. Ficou impressionado com a sofisticação da primeira e com a quantidade de alunos da segunda. “O mercado de fitness e bem-estar já vinha crescendo muito no país com foco na classe A. De uns dois anos para cá, com o aumento da classe C dentro do novo modelo econômico brasileiro, a coisa explodiu. Agora assistimos à consolidação de grandes grupos no país e à popularização das academias através de cadeias low price, que estão se espalhando rapidamente”, observa.

A última grande pesquisa realizada pelo Sebrae, em 2011, demonstrou forte predominância da Classe B na Ilha do Governador, um segmento da classe média menos alardeado ultimamente. São os principais frequentadores da Ilha Point, onde a mensalidade custa R$ 240, mas cai para R$ 129 no plano de 24 vezes. Segundo dados próprios, atualmente malham por ali 5.500 sócios. A academia existe desde 2007, mas só no ano seguinte tornou-se filial do grupo Proquality. O novo salão, com 40 esteiras novas, foi inaugurado em novembro do ano passado e faz parte de uma estratégia para atrair até 10 mil alunos antes do final do ano.

O grupo Proquality nasceu modestamente em 1994, em Pinheiral, município de apenas 22,7 mil habitantes no interior do estado do Rio. A primeira academia tinha apenas 60 metros quadrados e foi um presente dado pela mãe ao jovem calouro de educação física Valério Ramalho. “Eu era, ao mesmo tempo, o estagiário e o dono. Tínhamos só 50 alunos e fomos descobrindo sozinhos como se faz uma gestão”, lembra Valério.

 

“Hoje, o mercado só atende 4% da população do país. Nos próximos anos, chegaremos a 17%”

 

De Pinheiral, onde ainda vive, o empresário expandiu negócios para Volta Redonda – hoje QG do grupo –, Barra Mansa e, finalmente, instalou seus supinos no Rio. Hoje, é dono de 13 filiais, com preço e luxo variados para malhadores do abastado Leblon à mais humilde Vila Isabel, do lendário compositor Noel Rosa.

Aliás, caso vivesse em nossa época, o raquítico e boêmio poeta da Vila seria a mais perfeita antítese da geração bodybuilding. Mas mesmo nos distantes anos 20 já encontramos indícios da paixão carioca pelos corpos torneados. Em “Tarzan (O filho do alfaiate)”, Noel cantou a história de um magricela-filé-de-borboleta, como ele, que arrancava suspiros e distribuía autógrafos na praia graças a um fantástico terno musculoso, uma “armadura de casimira dura” tecida pelo pai. Como a alternativa ao fitness imaginada pelo compositor nunca pegou, o Rio continua sendo a capital nacional do culto ao corpo.

Há quase duas décadas no ramo, Valério realiza estudos de mercado para garimpar novas áreas promissoras na cidade. Ele pergunta até ao repórter se conhece algum local interessante para investir em um bairro da zona sul. O empresário está seguro de que o Brasil verá o número de academias multiplicar nos próximos anos, enquanto o mercado fitness se adequará às tendências de concentração da economia atual: “Hoje, o mercado só atende 4% da população do país. Nos próximos anos, chegaremos a 17%. Mas, de agora em diante, só haverá espaço para as cadeias. Teremos academias de grande porte, como a Ilha Point, e o fim das academias médias de bairro, que vão virar pequenos estúdios ou desaparecer.”

Homem sarado, capitalismo selvagem.

A fome e a vontade de fazer

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Seis décadas separam as atuações dos dois únicos brasileiros no comando da FAO, braço da ONU criado em 1945 para combater a fome no mundo. De Josué de Castro, que presidiu o conselho da organização entre 1952 e 1956, a José Graziano, diretor-geral desde 2012, levar comida até as barrigas nas quais ela sempre faltou se mantém como um imenso desafio. A dúvida é: temos mais chance de resolvê-lo?

O mundo ainda tem muita fome. Uma em cada oito pessoas no planeta está desnutrida. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que 870 milhões de pessoas não comem o suficiente para serem consideradas saudáveis. Desse total, 75% estão em zonas rurais, a maioria vivendo de agricultura de subsistência. O número é vergonhoso, mas já foi mais alto. Há duas décadas, havia 1 bilhão de famintos na Terra. Há 50 anos, dois em cada três cidadãos do planeta passavam fome.

O paradoxal é que não faltam alimentos para suprir esse contingente. O planeta produz a cada ano 2,5 bilhões de toneladas de cereais, com estoque de 500 milhões de toneladas. Há comida suficiente. O problema é levá-la a quem precisa e acabar com o desperdício: todo ano, 1,3 bilhão de toneladas de alimentos são perdidas ou jogadas no lixo.

A guerra contra a fome é um dos grandes desafios colocados pela ONU aos seus 193 países-
membros. No centro de comando da luta, é um brasileiro que dá as ordens: José Graziano da Silva, que ficou conhecido como o ministro que implantou o programa Fome Zero no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva – e que desde janeiro de 2012 é o diretor-geral da FAO, sigla para Food and Agriculture Organization, braço da ONU para as questões ligadas à alimentação e à agricultura. Não é a primeira vez que um brasileiro lidera a agenda internacional do assunto: em 1952, exatos 60 anos antes da posse de Graziano, um médico pernambucano chamado Josué de Castro chegava à presidência do conselho da mesma FAO – entidade fundada em 1945 com a função de aumentar os níveis de nutrição e qualidade de vida no mundo, além de melhorar a produtividade da agricultura e dar melhores condições às populações rurais.

Omissão política

Diplomata e deputado federal mais tarde perseguido pela ditadura militar (morreria no exílio, em 1973, deprimido por não conseguir voltar ao Brasil), Castro foi pioneiro ao sugerir políticas de segurança alimentar, incentivo à agricultura familiar e criação de restaurantes populares. Seus livros foram traduzidos em 25 idiomas. O mais famoso, Geografia da fome, lançado em 1946, representou uma quebra na “conspiração do silêncio” que existia em torno do assunto, como diz o professor Malaquias Batista Filho, da Universidade Federal de Pernambuco – aluno de Castro e hoje grande especialista em saúde e nutrição. “Ele foi o primeiro pensador de um governo mundial capaz de gerir o problema da fome e da miséria”, destaca.

“Encaro o desafio [de erradicar a fome no mundo nos próximos anos] com bastante otimismo, por mais incrível que possa parecer”

Em outra obra, Homens e caranguejos, recorreu às metáforas do mangue e do homem-
caranguejo, “que vive na lama e da lama”, em seu Recife natal, para denunciar a fome – ideia que, nos anos 90, serviu de inspiração para o movimento Manguebeat, liderado pelo músico Chico Science. Josué de Castro tinha a clara percepção de que a fome não é um problema natural, decorrente da falta de água e condições para plantar, ou um castigo divino. A, fome, para ele, era fruto de omissão política. Graziano acredita na mesma ideia.

Fome Zero

José Graziano da Silva é filho de mãe calabresa e pai paulista – e ilustre: José Gomes da Silva foi fazendeiro de sucesso, agrônomo especialista em reforma agrária, tendo ocupado cargos nos governos paulista e federal, além de ser consultor da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da própria FAO. Nascido por acaso nos Estados Unidos, em Urbana (Illinois) – por conta do mestrado que o pai fazia por lá –, Graziano foi militante da juventude católica de esquerda e se formou agrônomo em 1972 pela Esalq, a Escola Superior de Agricultura da Universidade de São Paulo (USP). Fez doutorado na Unicamp e outras pós na Universidade da Califórnia e no Instituto de Estudos Latino-Americanos da University College London.

Foi José Gomes, o pai, que em 1991 acabou incumbido por Lula de elaborar um programa de segurança alimentar para o Brasil. Mais de dez anos depois, em 2003, com Lula eleito presidente, José Graziano, o filho, virou o ministro do Fome Zero, programa que completa dez anos em outubro e que, apesar de dividir opiniões – os críticos mais ácidos o chamam de “bolsa esmola” – tem êxito reconhecido pela ONU.

FAO/Alessandra Benedetti

Graziano em Guaribas, no Piauí, na época da implantação do Fome Zero

Graziano em Guaribas, no Piauí, na época da implantação do Fome Zero

Na esteira desse êxito (segundo os números oficiais, 24 milhões de brasileiros saíram da pobreza extrema com o programa) Graziano, pai de dois filhos e avô de dois netos, tornou-se diretor da FAO para a América Latina e ganhou a força política que o fez vencer as eleições para a direção-geral da instituição, em junho de 2011, numa disputa acirrada com o ex-chanceler espanhol Miguel Angel Moratinos.

A escolha se deu em meio a um processo de reforma da entidade. Uma das primeiras mudanças foi encurtar o mandato do diretor-
geral de seis para quatro anos e limitar a apenas dois mandatos consecutivos a possibilidade de ficar no posto (o antecessor, o senegalês Jacques Diouf, ocupou o cargo por 18 anos e o deixou sob críticas de ineficiência).

Orçamento baixo

Assim que ganhou a eleição, as notícias não foram as mais animadoras para Graziano: para começar, o orçamento da organização para o biênio 2012-2013 teve reajuste tímido (de apenas 1,4%), o que se deve em grande parte à pressão dos países mais ricos (como os EUA), que, em franca crise econômica, exigem que a FAO faça suas reformas e corte gastos antes de pedir mais dinheiro. Com US$ 1 bilhão para gastar (fora as contribuições voluntárias dos países, que devem somar US$ 1,4 bilhão no período), Graziano não escondeu que esperava mais: “A solidariedade do mundo desenvolvido é crucial”, disse na época. Mas ele concorda que a reforma administrativa é fundamental – e descentralizar é a palavra de ordem. Se ao assumir ele encontrou 80% dos 3 mil funcionários trabalhando em Roma, sua meta é espalhar a entidade por mais lugares, levando ajuda e orientação técnica a quem precisa.

À frente da FAO, Graziano se desdobra como um globe-trotter. Na mesma semana, é capaz de estar em Luanda, capital de Angola, voar para Nova York, nos Estados Unidos, e em seguida dar um pulo em Roma, na Itália, onde está o quartel-general da FAO (e o apartamento onde mora com a mulher, a jornalista Paola Ligasacchi). A agenda se desdobra entre reuniões com chefes de Estado, técnicos e representantes diplomáticos. E, claro, visitas às comunidades mais remotas do planeta.

Em janeiro de 2012, pouco depois de assumir o cargo, Graziano andou por países do Chifre da África, onde a soma de décadas de conflitos políticos e a pior seca em 60 anos causaram fome e morte em 2011. Na Somália, país-símbolo desse desastre, a situação extrema melhorou em 2012, graças a uma melhor colheita e um aumento nas entregas emergenciais de alimentos. A crise, claro, não acabou – como o próprio diretor-geral admitiu publicamente ao voltar da viagem. Mas é inegável que, em lugares como a Somália, um dos países mais pobres e violentos do mundo, atormentado por milícias em guerra, a questão da fome vai muito além dos problemas estritamente relacionados à produção e à distribuição de comida.

Meta ambiciosa

Por tudo isso, soa até utópico o desejo de atender à convocação do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, de não apenas reduzir, mas erradicar a fome global até o ano de 2015. A ideia é que todo ser humano tenha direito a ingerir pelo menos 1.850 calorias diariamente. Sem a cooperação de todas as nações, é improvável que José Graziano consiga atingir a meta em seus quatro anos de mandato. Ainda assim, o diretor-geral gosta de dizer que, se houver vontade, o objetivo não é assim tão despropositado. “O Brasil, por exemplo, conseguiu transformar a região de Petrolina, em pleno semiárido, no estado de Pernambuco, num celeiro de produção de alimentos. Lá, plantam-se frutas e produz-se até vinho. Dá para fazer isso na África.”

De voz calma, Graziano diz não temer a tarefa. “Encaro o desafio com bastante otimismo, por mais incrível que possa parecer”, comenta. Um dos amigos mais próximos, o veterano jornalista Ricardo Kotscho, que trabalhou com ele no governo Lula, diz que esse é um dos traços do professor, que descreve como “um homem simples e modesto, mas que tem sonhos”.

Combater a fome mundial sem o respaldo da comunidade global é tarefa bem mais complicada do que a experiência vivida com o Fome Zero – quando Graziano tinha o apoio do presidente da república e a simpatia de diversos setores da sociedade. Mas a experiência técnica no desenvolvimento de políticas agrícolas é um dos elementos que podem fazer a diferença em sua gestão, como apontou um artigo do jornal britânico Guardian, pouco depois de sua escolha para o comando da FAO: “São agricultores – e não diplomatas – que cultivam alimentos”. Para Graziano, a solução para os problemas de segurança alimentar começa nas aldeias, nas cidades, com iniciativas locais. “Ninguém come em nível global. Você come no restaurante, na cantina, na sua casa É aí que precisamos de respostas.” Exatamente como pregou o pernambucano Josué. Mas agora, espera-se, com mais condições para acertar.

À procura da barriga perfeita

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O que a busca pelo shape sarado das revistas diz sobre o homem contemporâneo? O padrão pançudo de outrora está mesmo condenado? E o que a alimentação tem a ver com tudo isso? Com a palavra, especialistas em saúde, bem-estar e comportamento e, claro, homens com as mais variadas circunferências abdominais

Faz tempo que os cuidados com o corpo e a exibição dele são entendidos como “assunto de mulher”. Mas uma rápida passada de olhos por qualquer banca de jornal mostra que agora os homens também estão nessa: nunca estivemos tão obcecados com o próprio umbigo e seus arredores. Ao lado de modelos mais perfeitos do que o Davi de Michelangelo estão promessas de que a graça do abdome perfeito é algo ao alcance de todos: “Tchau, pança”, “Tanque e peito de aço!”, “O corpo que ela curte”, “A dieta do abdome” e “Barriga tanque em 1 mês” são exemplos de chamadas de capas.

O que tanto está pegando na nossa barriga?

Luiz Maximiano

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Bruno Murata, 31 anos, lutador de MMA

Circunferência abdominal: 85 centímetros
Como mantém? Treinos seis vezes por semana
É assim desde: Sempre
Está feliz com ela? Sim
Mudaria? Não

“[No MMA] É primordial ter um abdome forte, porque você leva soco no corpo constantemente. Senão, vai levar um na barriga e vai dobrar. O treino em si já enrijece. Não tenho uma preocupação grande com a barriga. Não me privo de nada. Carne vermelha, que é um vilão, como quase todo dia. Sou personal trainer de luta e meus alunos homens falam sobre isso em off. O cara quer aprender a lutar, mas pergunta se vai ficar sarado. Acho que ele tem vergonha de falar, de ser rotulado de vaidoso. A velha ideia de que isso é ‘coisa de viado’”

O fenômeno não é regional – nos EUA, país com uma das maiores taxas de obesidade do mundo (35,7% dos adultos), a tendência é forte desde a mais tenra idade. A revista especializada Pediatrics divulgou no ano passado um artigo que mostra que 40% dos meninos nos ensinos fundamental e médio fazem exercícios regularmente para aumentar a massa muscular corporal. Quase a mesma porcentagem (38%) já consome suplementos alimentares e 6% já usaram esteroides. A maioria (90%) diz que procura aumentar sua massa de alguma maneira. No Brasil ainda não há pesquisas similares, mas já é possível dizer que estamos no mesmo caminho.

Presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, o médico José Horácio Aboudib conta que notou um aumento no número de homens buscando vários tipos de intervenções cirúrgicas: “Talvez hoje os homens representem 20% da clientela. Há dez anos, eram 4%. É um aumento muito grande”. As cirurgias mais procuradas por eles são a plástica de pálpebras, o implante de cabelos e – olha a barriga aí – a lipoaspiração. “O que as pessoas querem é a barriga reta: ‘Ah, doutor, quero ficar sem essa pelanca, sem flacidez’.”

Não surpreende que a modelo de lingerie Candice Swanepoel tenha virado notícia ao postar uma foto de sua barriga no aplicativo Instagram, inaugurando o termo “barriga negativa”. Já esguia, Candice revelou um abdome que não só não é protuberante, mas tem uma concavidade em relação aos quadris e ao corpo. Candice tem como original de fábrica aquilo que todo mortal se esforça para mostrar a cada vez que se vê diante de uma câmera fotográfica: a barriga encolhida, para dentro.
Mas daí a assumirmos essa configuração como padrão estético ideal a ser perseguido... é o tipo de fenômeno que nos faz perguntar: estamos indo longe demais?

Questões estéticas à parte, o que a maioria das pessoas parece ignorar é a importância da barriga no equilíbrio geral do corpo. Para o professor Julio Serrão, coordenador do laboratório de biomecânica da Universidade de São Paulo (USP), a chave para desvendar a questão tem quatro letras: core. “O ser humano tem um problema gigante no corpo, que é a instabilidade da coluna”, diz ele. “O core é uma cinta de músculos que sustenta e estabiliza a coluna.” Ou seja, se o core está forte, a coluna está forte, e, se a coluna está forte, não há limitação de movimentos, dores lombares, entraves e uma série de doenças relacionadas à mobilidade parcial da coluna. Grosseiramente falando, o core é a musculatura concentrada no cinturão abdominal, estendendo-se às costas.

“A barriga divide a parte de cima da parte de baixo do corpo. Quando você começa a entender a importância que ela tem, tudo muda”, diz Caio Vieira, praticante e instrutor de ioga há 11 anos. “Ao conseguir, com exercícios posturais, isolá-la do resto do corpo, você cria três estruturas independentes, mas ainda assim interligadas. Nessa hora, a respiração sai da barriga e vai para a caixa torácica, e é quando você expande os pulmões de forma total, usa 100% de sua capacidade respiratória e oxigena o corpo e os órgãos em volume máximo. Os benefícios são incontáveis.” É por isso que, quando estamos nos exercitando, muitos instrutores repetem o mantra: “Concentre-se na barriga”. Há uma longa distância entre perceber a importância do core e da barriga como nosso centro de gravidade e essa obsessão em voga pelos músculos abdominais.

Luiz Maximiano

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Pedro Moreno, 36 anos, professor de ioga

Circunferência abdominal: 83 cm
Como mantém? Ioga de três a seis vezes por semana e alimentação vegetariana
É assim desde: Sempre
Está feliz com ela? Sim
Mudaria? Não

'Não sou o tipo de cara que pensa com a barriga nem pensa na barriga. Credito isso ao fato de eu não comer demais. Não tenho restos de digestão nas curvas do intestino, então minha barriga não incha. O pessoal hoje é muito louco, age como se a barriga fosse símbolo. Tudo em você é um símbolo: costas, pernas, rosto, cabelo e pele. Com os meus alunos, eu corto essa preocupação. ‘Não se preocupa com a barriga, presta atenção no que eu estou falando.’ Acho que focar nela é erro.
A gente deveria focar na saúde de maneira integral'

Mas qual seria a origem dessa obsessão, em especial dos homens de hoje, pela barriga? Existem algumas pistas, e a primeira delas está ligada à saúde mesmo. A Organização Mundial da Saúde recomenda que os homens não tenham circunferência abdominal acima dos 94 centímetros. Segundo estudos, a concentração de gordura na região abdominal pode elevar o risco de doenças cardiovasculares. Se esse risco estava, antes, associado apenas ao sobrepeso, hoje ele está também na conta dos “magros com barriga”. Pesquisa da Clínica Mayo (EUA) mostrou que a “pochete” é perigosa mesmo para quem não tem sobrepeso – essas pessoas correm um risco 2,75 vezes maior de ter doenças cardiovasculares quando comparadas a indivíduos sem o cinturão de gordura abdominal.

Para além do combate à obesidade – não dá pra ignorar dados como o apontado pela revista de The Lancet, de que há mais de 500 milhões de adultos acima do peso no mundo hoje (num ranking em que o Brasil aparece na 19a colocação) –, há um fenômeno do nosso tempo mais ligado à questão da autoimagem. Até nem tanto tempo atrás, os padrões de beleza eram perceptivelmente diferentes. Homens e mulheres podiam ser mais redondos e gominhos na barriga eram coisa de fisiculturistas. Hoje, o ideal da Grécia Antiga (quando as estátuas feitas pelos artistas tentavam dar uma cara humana a deuses dando a eles um corpo reconhecível, mas perfeito) está muito mais em alta do que há cem anos, atesta a professora de história da arte do Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, Magnólia Costa. “Essa é nossa referência. Porém, hoje não buscamos isso só na representação, mas também em nossos corpos”, diz ela. Em outras duas épocas importantes na arte que também resgataram os gregos – o Renascimento (século 14) e a Arte Acadêmica (século 18) – o corpo ideal era harmônico e proporcional. Hoje, precisa ser impecável, como se fosse possível reproduzir na vida real o que as imagens altamente retocadas das revistas e anúncios nos colocam como ideal. “As mulheres até podem ser gordinhas, mas não têm celulite. Os homens têm sempre o tanquinho, são sempre fortinhos”, afirma. Um fato, porém, é verdade para qualquer época: “Homem barrigudo nunca teve lugar na história da arte”, diz Magnólia.

A arte serviu de termômetro estético até o século 20, quando o capitalismo se tornou dominante. Hoje quem dá as cartas são a moda e a publicidade. O padrão a ser seguido deixou de ser o das galerias e foi servido para consumo das massas. Uma pesquisa feita pela Universidade de Winchester descobriu que os homens de 16 a 36 anos que leem revistas masculinas com frequência têm uma percepção pior do próprio corpo, o que pode levá-los a se exercitar em excesso para ficarem parecidos com o ideal propagado por esses veículos. Outro estudo inglês, este da Universidade de West England, mostrou que 58% dos homens se sentem incomodados quando conversam sobre o corpo. Mais de 80% deles admitiram uma prática que em geral se atribui às mulheres: comentar o corpo de outros homens.

Outra consequência importante do capitalismo é o que o psicanalista Joel Birman chama de “medicalização crescente do corpo”. Quando o mundo se viu mais livre da religião (que perdeu o poder de ditar os valores do mundo ocidental), a partir do século 19, “a medicina passou a ocupar um lugar fundamental na nossa existência”, diz. “Trocamos o ideário da salvação pelo da saúde.” Se antes a vida era regulada pela concordância com mandamentos divinos, ser saudável passou a ser o maior valor da nossa cultura. “Criou-se o ideário de um corpo magro como ideário da beleza”, explica Birman. As mudanças nos costumes também têm seu papel. O fim do casamento monogâmico eterno coloca sempre a expectativa de voltar à ativa, diz Birman: “Você não pode deixar o corpo cair. Senão, vai ser abandonado pela companheira e não vai conseguir outra no mercado”.

Mas uma barriga aparente está longe de significar corpo caído. “Tem atleta que tem a barriga proeminente, mas tem o abdome extremamente forte”, diz Julio Serrão. Os atletas são, aliás, pessoas que entendem a vital função do core e encaram a barriga como ponto central do corpo. “A gente tem a imagem de que abdome forte é abdome definido, e isso não é verdade. Do ponto de vista mecânico, a coluna está protegida se o core estiver fortalecido, mesmo naquelas pessoas que têm uma camada de gordura sobre a musculatura”, completa.

O mundo oriental talvez possa servir de inspiração para lidarmos melhor com a barriga. Para os japoneses, a região da barriga se chama hara e é uma das mais importantes do corpo. É ali que está a alma dos homens. Mais do que isso, o hara é uma representação da própria vida e do universo, “a fonte de energia de todo o corpo”, como explica Marcelo Tadeu Fernandes da Silva, mestre de aikido, psicanalista e professor de educação física nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), em São Paulo. Para ele, a barriga é que dá o centro gravitacional do corpo – e estar em equilíbrio é ter uma boa postura. “Por isso a base é tão importante na prática das artes marciais”, observa Silva. “Desenvolver esse centro é uma premissa para ser um bom praticante.”

Luiz Maximiano

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Márcio Atalla, 42 anos, preparador físico e apresentador do quadro “Medida certa”, do Fantástico

Circunferência abdominal: 80 centímetros
Como mantém? Uma hora e meia de exercícios diários e alimentação
É assim desde: Sempre
Está feliz com ela? Sim
Mudaria? Não

“Não me preocupo com minha barriga. Nunca fui um cara de grandes excessos na alimentação. Gosto é de arroz e feijão mesmo. Nunca tive barriga, minha relação com ela é muito tranquila. Para mim talvez seja mais fácil, porque eu gosto de me exercitar. E não vejo pressão na sociedade para as pessoas serem magras, pelo contrário. Eu acho até que falam pouco da barriga do homem. É bobagem dizer isso num país em que existe essa porcentagem de gente acima do peso”

Até para aqueles seres mais desapegados, adeptos da meditação e que não estão nem aí para a estética das próprias barrigas, um cinturão abdominal trabalhado é fundamental: “Quando você medita, é importante que a coluna esteja ereta para que a respiração seja executada em capacidade máxima. E só um abdome forte consegue manter a coluna ereta”, reforça Caio Vieira.

Julio Serrão lembra ainda que, quando falamos em abdominal, tendemos a lembrar de um exercício apenas: aquele em que, deitados, flexionamos a coluna para frente. Mas ele diz que esse tipo de exercício exige apenas 50% da capacidade dos músculos abdominais. “Virou moda prescrever 500, 600 abdominais. Isso precisa ser revisto. Tem aula só de abdominal em academias. É bizarro.” Para ele, há muitas outras atividades – pilates, ioga, exercícios com bolas etc. – que exigem bem mais da musculatura abdominal do que o tradicional movimento que todos nós já fizemos na vida.

Tratar o corpo como máquina tem suas consequências. Primeiro, deixa-se de lado a percepção de que ele faz parte de um sistema e que depende de outras coisas. Um abdome forte e saudável não pode ser exclusivo de quem se preocupa com a estética. “Ele é importante para todo mundo, do obeso ao idoso”, reforça Serrão. “Pouca gente sabe, mas uma hérnia de disco pode começar com um abdome fraco, que leva a uma instabilidade da coluna, que leva a uma lesão.” O professor lembra ainda que o tão sonhado abdome definido depende muito mais do que o cara come (e deixa de comer) do que do exercício que ele faz. “Quem consegue definir o abdome é quem se esforçou muito na dieta. Ter um abdome tanquinho não é para qualquer um, definitivamente”, argumenta.

Qual seria, então, o grande segredo para tratarmos a barriga como ela merece ser tratada? Caio Vieira arrisca: “Temos que aprender a usar o abdome da forma correta. Se pensarmos nele isoladamente, acabaremos usando-o como um bebê: no piloto automático, e apenas para respirar pela barriga e sobreviver”. Ao entendermos a vitalidade dessa área para o dia a dia, ao sacarmos que ele é o centro do corpo e que tem essa função de interligar todas as nossas partes, iremos escolher trabalhá-lo, seja com exercícios ou respirações ou uma combinação dos dois. “A partir daí ele pode até trincar, formar gomos, sair em revistas, o que for, mas isso será apenas resultado. E um resultado que nem é o mais essencial.”

“Não tenho problema com ela. Fui atleta de rúgbi até meus 28 anos. Fui da seleção brasileira. Tinha abdome tanquinho não porque me preocupava com isso, mas por causa do esporte. Depois, a barriga superou o esporte. Apesar de tomar cerveja e comer gordura às vezes, tenho uma alimentação saudável. Os médicos ficam putos porque eu tenho indicadores de uma criancinha de 16 anos e eles não podem falar mal da minha barriga. Tenho meus limites. Quando começo a bufar para pôr meia, sapato, sei que está na hora de emagrecer um pouco”

Mitos e verdades

“Não há milagre que seque a barriga”

A gordura abdominal é difícil de ser eliminada. Para isso, é necessário perder peso com manutenção da massa magra. Pessoas, mesmo magras, podem acumular uma reserva de gordura na região abdominal, algo que a atividade física ajuda bastante a eliminar.

Mas não há milagres: se existisse alguma dieta específica, descrita em literatura e com comprovação científica, e/ou alguma pílula mágica para “secar a barriga” – promessas nas quais muita gente ainda insiste em acreditar –, a obesidade não seria um dos maiores problemas em saúde pública nos dias de hoje. A questão estética, preocupação crescente da população mundial (e, na brasileira, muito evidente), tem feito com que muitas ideias se propaguem sem que se tenha muita certeza sobre sua eficácia. Alessandra Coelho, nutricionista clínica da SBCBM (Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica) e Mariana Fontana, especialista em fisiologia do exercício e nutricionista do Instituto Vita, comentam mitos e verdades dessa seara.

Deixar de comer carboidratos à noite faz sentido?
Não. O carboidrato é um ótimo alimento para ser ingerido no período da noite, pois em geral tem fácil digestão e baixo teor de gordura na sua composição. A atenção deve ser dada à qualidade desse carboidrato e, claro, ao tamanho da porção: como qualquer outro excesso, o de carbo também é prejudicial.

Luiz Maximiano

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Murilo Perez, 50 anos, empresário

Circunferência abdominal: 130 centímetros
Como mantém? Bebendo cerveja três vezes por semana
É assim desde: Os 28 anos, quando parou de jogar rúgbi
Está feliz com ela? Sim
Mudaria? Não

“Não tenho problema com ela. Fui atleta de rúgbi até meus 28 anos. Fui da seleção brasileira. Tinha abdome tanquinho não porque me preocupava com isso, mas por causa do esporte. Depois, a barriga superou o esporte. Apesar de tomar cerveja e comer gordura às vezes, tenho uma alimentação saudável. Os médicos ficam putos porque eu tenho indicadores de uma criancinha de 16 anos e eles não podem falar mal da minha barriga. Tenho meus limites. Quando começo a bufar para pôr meia, sapato, sei que está na hora de emagrecer um pouco”

Comer de três em três horas é o canal para perder a pança?
Essa prática favorece o funcionamento mais acelerado do metabolismo. Além disso, evitar longos períodos sem comer ajuda a controlar volume e qualidade das grandes refeições (principalmente almoço e jantar).

As maiores besteiras que alguém pode fazer são…
Fazer exercício “vestindo” saco plástico ou roupas pesadas, fazer atividade física em jejum, usar laxantes e diuréticos, fazer dietas com mudanças bruscas nos hábitos alimentares, dietas radicais (à base de sopa, suco, um só alimento etc.), usar cintas, tomar vinagre antes das refeições, comer alho após as refeições… são muitas.

E os maiores acertos são…
Dieta balanceada associada à atividade física, sob orientação de profissionais capacitados. Além disso, uma dica é nunca mudar a dieta radicalmente: é mais apropriado diminuir as quantidades de comida progressivamente até chegar a um patamar em que o organismo disponibilize a reserva.

O maior segredo para perder a barriga é...
Já nem é segredo: estilo de vida saudável. Alimentação equilibrada, atividade física, manter um bom funcionamento intestinal e ingerir bastante líquido. Evitar o fumo, as bebidas alcoólicas e refrigerantes, os alimentos gordurosos e as frituras.

Cerveja e glúten são vilões?
O álcool é um tipo de açúcar de absorção rápida. O consumo excessivo faz com que o corpo reserve o excesso de açúcar na forma de gordura. Quanto maior o teor de álcool na bebida, menor deve ser o consumo, para evitar o ganho de quilinhos... O glúten é vilão só para quem tem intolerância a ele (doença celíaca, diagnosticada). Não há comprovação de que a retirada do glúten traga benefícios ao organismo.

O melhor exercício é…
O exercício mais indicado para a oxidação de gordura é o exercício aeróbio realizado regularmente. Um educador físico pode avaliar o tipo, a intensidade e a duração mais indicados para cada pessoa.

Há alimentos que estimulam o gasto de energia pelo corpo?
Pimentas, canela, gengibre e chá-verde.

Água com limão “queima” a barriga?
É um mito, não há milagres. Mas o limão tem propriedades diuréticas (diminui a retenção de líquido) e possui baixo índice glicêmico.

Gordura abdominal pode matar?
Existem dois tipos de gordura abdominal: subcutâneo e visceral. Do ponto de vista metabólico, a gordura visceral é pior, uma vez que está próxima aos órgãos e consegue liberar maior quantidade de gordura para o sangue, aumentando o risco de doenças cardiovasculares.

Transformar 2013

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Reprodução/edX

Anant Agarwal

Anant Agarwal

A educação em evolução. Esse foi o lema da edição 2013 do Transformar, que reuniu nesta quinta (4) um grande contingente de gestores, educadores, investidores, empreendedores e lideranças sociais envolvidos na agenda da melhoria da educação. O evento aconteceu na grande sala de conferências do hotel Maksoud Plaza, em São Paulo, e contou com a ilustre presença do professor Anant Agarwal, presidente do edX, uma imensa plataforma de ensino à distância que trabalha com cursos das maiores universidades do mundo, incluindo Harvard, MIT e Stanford.

Além da presença do rockstar da educação à distância, o Transformar contou com a presença de José Ferreira (fundador e CEO da companhia de aprendizado adaptativo Knewton), Joel Rose (co-fundador da empresa de inovação educacional New Classroom), Melissa Agudelo e Nicole Hinostro (da High Tech High, maior escola tecnica pública americana), Brian Waniewsky (diretor da produtora de jogos educacionais Institute of Play), Dianne Tavenner (da Summit School), Seth Choenfeld (do veículo de investimento educacional iZone), a Secretária municipal de Educação do Rio de Janeiro, Claudia Costin, entre outros

Com tantos especialistas presentes,o evento propôs novos caminhos para a educação no Brasil e no mundo, mostrando casos de sucesso de educação a distância e de investimentos em tecnologia da educação, passando por experimentos com inteligência artificial, construção coletiva do conhecimento e outros caminhos ainda considerados alternativos no que diz respeito à aplicação de massa desses conceitos.

Em uma casca de noz: tecnologia

O foco dos debates foi o uso de tecnologia como ferramenta na evolução da educação. Como o próprio Agarwal comentou em sua palestra, praticamente nada mudou nas salas de aula de ensino superior nos últimos 60 anos, o que para o especialista, é uma vergonha com a qual os educadores precisam conviver. “O novo caminho para a educação passa pela mudança do que temos como paradigmas nas salas de aula”, cravou, referindo-se à ampliação dos serviços do edX.

“O edX foi construído para prover educação de qualidade ao redor do mundo ao mesmo tempo que foi projetado para mudar o ensino dentro de nossas classes e campi. Nós acreditamos que educação é um direito humano básico e todas as nossas decisões são baseadas nesse princípio”, refletiu o professor. “O edX é o acelerador de partículas do aprendizado. E assim como cavalos são livres, nossos dados e nosso código são abertos e livres para qualquer pessoa no mundo.”

A captação de dados sobre estudantes e qualidade de ensino também foram ponto central do debate e da conferência do professor Agarwal. Em seu keynote, ele demonstrou como o edX é capaz de descobrir quais as maiores fontes de consultas dos estudantes e como os padrões de estudo se repetem mesmo sem o auxílio direto de um professor como no método tradicional de ensino. Foi aí, que o palestrante mostrou qual o grande segredo por trás do sucesso do método edX. A resposta pode surpreender, mas é muito simples: vídeogames.

Passar de fase

“Gostamos de videogame porque o feedback nos jogos é automático. Você fracassa ou tem sucesso, mas não há dúvidas sobre seu desempenho. Existe pontução e contagem de vidas e você sabe instantaneamente o resultado de suas ações. É isso que tantamos fazer no edX para manter os alunos engajados”, comentou.

Elaborando melhor, o professor Agarwal continuou. “Games são grande parte do sucesso do edX. Muito da interface foi baseada na sensação que os gamers tem enquanto estão jogando: feedback automático, estrutura lúdica, noções de narrativa, etc... Isso para qualquer tipo de matéria, seja ela humana, exata, biológica ou técnica/tecnológica. Para isso, automatizamos o sistema de correções das atividades e chegamos a um algorítimo preciso na correção de qualquer tipo de exercício, seja ele matemático, dissertativo ou de múltipla escolha.”

O projeto do edX anda de mãos dadas com o que há de mais moderno na pesquisa de ensino. A correção automática faz com que alunos tentem, falhem e tentem novamente sem depender do tempo necessário para uma correção humana. Isso faz com que os alunos busquem por si as respostas no próprio fórum de usuários do site, onde professores e alunos podem responder perguntas de outros usuários.

O transformar 2013 foi um bom termômetro da evolução tecnológica que aos poucos está se instalando na educação. Para saber mais, acesse o site do evento.

A Trip #203, de setembro de 2011, trouxe um especial sobre educação com foco na modernização do ensino em escala mundial. Você pode ler a revista na íntegra aqui mesmo no nosso site

#SeJoga

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Na profusão de causas, marchas, passeatas e ocupações organizadas via internet, Trip investiga o ativismo 3.0: o que há de realmente novo na cabeça – e nas armas – de quem sonha em mudar o mundo?

“A pior perspectiva possível é a indiferença que diz: ‘Não posso fazer nada quanto a isso; vou tocar a vida’. Pensar assim nos priva de uma das coisas mais essenciais no ser humano – a capacidade e a liberdade para a indignação. Essa liberdade é indispensável, assim como o envolvimento político que a acompanha.”

Pouca gente compartilhou. Não virou meme, trending topic. Não despertou sequer muitos artigos pelo mundo. Foi discretamente que Stéphane Hessel, o autor da frase acima, um senhor alemão, naturalizado francês, saiu de cena aos 95 anos, em 27 de fevereiro último. Morreu em casa após quase um século dedicado à luta e à mobilização política. Lutou contra os nazistas na resistência francesa, fugiu de campo de concentração, tornou-se diplomata e articulador de movimentos sociais. Rebelde com muitas causas, defendeu o desarmamento nuclear, os imigrantes, as mulheres, a causa palestina. Melhor que ninguém, Hessel encarnou o tipo de ativismo que definiu o século 20. E, talvez, o mais importante: apontou um norte para a complexa transformação que o ativismo vem sofrendo no século 21 quando em 2010, já passando dos 90 anos, escreveu Indignai-vos!.

Um livro-manifesto, tão curto quanto incisivo, convocando os jovens a reagir ao que ele via como uma retomada gradual dos ideais e das práticas fascistas. Sua geração, ele diz, deu a vida para impedir o controle privado de governos, a escalada do poder militar, a criminalização da mobilização social e, sobretudo, a subserviência e a passividade civil diante do poder.

Virou best-seller enquanto o norte da África explodia em revoluções para derrubar ditaduras e muitos na Europa acordavam para o fato de que seus parlamentos já não os representavam. Foi combustível e inspiração para os indignados que acamparam na Espanha. Sua figura serviu de lastro histórico para movimentos como Occupy Wall Street. Mas, velhinho de tudo e com um legado mais do que consolidado, a morte de Stéphane Hessel não deixa exatamente um vazio. Não como o produzido por outra morte, um mês e meio antes... Aos 26 anos, no meio de uma guerra judicial, e no auge de sua performance como ativista e programador, Aaron Swartz se enforcou em seu apartamento em Nova York.

A notícia repercutiu mais do que a partida de Hessel. Mas não foi devidamente compreendida pelos incontáveis ativistas que vêm se organizando pela rede em nome de também incontáveis causas. A morte de Swartz, mais do que prematura, foi um sinal claro de que há uma batalha séria por trás das exuberantes erupções populares nas ruas. Ele era, possivelmente, o mais importante ativista de uma causa sem tanto eco. Mas que, no fundo, é a base, a infra estrutura de todo o chamado “novo ativismo”.

A morte de Swartz foi um sinal de que há uma batalha por trás das erupções populares nas ruas

Aaron Swartz estava na linha de frente da luta pela internet livre e pela livre circulação de conhecimento e informação. Aos 14 anos ajudou Lawrence Lessig a desenvolver a licença Creative Commons. Fundador e programador do Reddit. Principal voz e articulador do megaprotesto Anti-Sopa, a lei americana que poderia acabar com a neutralidade da internet e com boa parte do fluxo livre de arquivos na rede. Uma gigantesca onda de protestos cibernéticos, a suspensão voluntária de sites como Wikipedia e incontáveis ataques de hackers a sites oficiais do governo americano, engavetaram por algum tempo o projeto. Mas por seu protagonismo, visibilidade, e por ter disponibilizado on-line, gratuitamente, milhares de artigos acadêmicos antes restritos a uma rede no MIT, Aaron foi indiciado por roubo de propriedade intelectual.

A promotoria pedia até 35 anos de prisão e US$ 1 milhão em multa. A pressão foi demais para ele. Não deixou um bilhete de suicídio, mas a imagem do jovem prodígio enforcado nos primeiros dias do ano era um sinal claro de que o ciberativismo é algo bem mais profundo do que o simplista rótulo do ativismo de sofá.

Pró o quê?

Depois de ter eleito em 2010 o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, em 2011 a revista Time estampou como a personalidade do ano uma figura mascarada: o ativista. De um jovem bilionário, o perfeito empreendedor individual, à impessoalidade orgânica do manifestante de rua, parecia haver um abismo entre os dois escolhidos. Não fosse a profunda conexão entre o sucesso da rede social e a viabilidade dos novos movimentos políticos.

2011 foi o ano em que levantes aconteceram pelo mundo todo. Todos muito diferentes entre si, mas com algo fundamental em comum. Ao contrário de todos os movimentos até então, não era possível apontar lideranças ou bandeiras. Não era possível resumir em poucas palavras as demandas ou a demografia de quem ocupava as ruas. Todos pareciam emergir rapidamente, sem que os radares dos governos e da mídia detectassem a tempo. Todos frutos do amadurecimento das redes sociais e da capacidade de mobilização popular direta, sem grupos intermediários, que a internet oferecia.

“Nossas identidades não têm corpos, assim, diferente de vocês, não vamos acatar ordens por meios de coerção física. Acreditamos que pela ética, por interesses pessoais e altruísticos, nossa governança emergirá”

Análises não demoraram a pipocar na imprensa e na academia. Entusiastas progressistas comemoravam que, finalmente, encontraram algum ímpeto rebelde em uma geração tida como apática. Exaltavam o caráter de solidariedade e pacifismo, o questionamento das premissas do sistema político e econômico. Havia uma promessa de que algo grande, talvez indomável, estava nascendo.

Representantes da esquerda tradicional, da mídia e do status quo deram de ombros. Os argumentos gasosos, a falta de demandas claras, de um projeto a ser implementado condenavam os próprios movimentos à efemeridade. E, mais do que isso, à irrelevância diante da “política real”. Como se aqueles acampamentos e passeatas súbitas não fossem capazes de construir uma plataforma viável. Não conseguiriam, avessos ao jogo partidário e eleitoral vigente, ultrapassar a barreira entre as ruas e a institucionalidade.

Algo, no entanto, parecia ficar de fora do debate público – mas estava constantemente na pauta de muita gente que ocupou praças, listas de e-mails, passeatas e livrarias em busca de algo... novo. Uma constatação que é a raiz dessa suposta falta de clareza ideológica e programática: não há uma alternativa bem articulada que pareça viável ao capitalismo, à democracia representativa, ao... sistema. Comunismo, socialismo, anarquismo, os verdes... Nomes que precedem a queda do muro de Berlim e que não encontravam mais eco no imaginário das massas.

Christophe Pettit Tesson / Max PP

O alemão Stéphane Hessel, morto em fevereiro deste ano

O alemão Stéphane Hessel, morto em fevereiro deste ano

Antiglobalização? Anticorporações? Antimilitarismo? Anticonsumismo? Pois não. Mas pró o que, mais exatamente? Ficou claro, à medida que o modelo social e econômico ostentava sua obsolescência, que a apatia da nossa geração também podia bem ser fruto da falta de possibilidades ideológicas que não soassem utópicas.

De Gaza a Cachorro Lascado

Foi preciso que a aldeia global descobrisse a ágora digital para que muita, muita gente se desse conta de que, antes de buscar uma nova utopia, era preciso se levantar contra a distopia do mundo real. Entre profusões de likes, retweets e compartilhamentos dos mais díspares graus de relevância, as causas, indagações e indignações individuais encontraram companhia.

Dos que, mundo afora, eram contra o bloqueio a Gaza aos moradores de um bairro que eram contra a demolição de uma escola. Dos que se dedicam à conscientização dos danos ambientais causados pela pecuária aos que buscam alguém disposto a adotar um cachorro lascado. Se em seus primeiros anos de massificação a internet foi uma fronteira comercial, cultural, comportamental, os últimos tempos vêm desenhando uma grande rede cada vez mais consciente de seu potencial político. Avesso a grêmios, estruturas partidárias ou sindicais, o indivíduo conectado começou a descobrir novos contextos para participar desse jogo. Não era mais necessária a adesão a um panfleto, a uma ficha de filiação. Se tornou finalmente possível para uma pessoa desenvolver um discurso político essencialmente individual e de alcance público real. Uma vocação que os pioneiros da web já reconheciam desde os primórdios.

Em 1996, John Perry Barlow, ícone da contracultura e da psicodelia dos EUA (perfilado na Trip #177) e quem primeiro batizou o território on-line como cyberspace, lançou a Declaração de Independência desse novo “lugar”. Em uma das passagens mais decisivas, ele proclama aos governos analógicos do mundo:

“Nossas identidades não têm corpos, assim, diferente de vocês, não vamos acatar ordens por meios de coerção física. Acreditamos que pela ética, por interesses pessoais e altruísticos, nossa governança emergirá”. Essas palavras definem não só o caráter intangível do cidadão digital, mas é uma espécie de Destino Manifesto da internet: a emergência de um novo sistema político a partir da conexão direta de pessoas e da livre, e virtualmente infinita, distribuição de informação. Justamente a causa final dos movimentos indignados: descobrir, colaborativamente, uma nova forma de nos governarmos.

Demorou algum tempo para que os governos aos quais Barlow se dirigia atentassem para essa promessa radicalmente democrática contida na rede. O mesmo tempo que levou para que ativistas e hackers a fim de dar um update do sistema político mundial lançassem as primeiras grandes infobombas.

Bastou Julian Assange e Bradley Manning abrirem os segredos diplomáticos dos EUA através do Wikileaks para as tais identidades sem corpos de Barlow se tornarem bastante palpáveis. Manning está há mais de dois anos detido, sofreu tortura psicológica em prisões militares e, muito provavelmente, passará o resto da vida atrás das grades. Assange, o criador do Wikileaks, está sob asilo político na embaixada equatoriana em Londres, sem data para andar de novo sob o sol, sendo caçado por mandados internacionais sem nenhum respaldo legal. Sob o pretexto dos direitos autorais, propriedade intelectual, ou simplesmente em nome da segurança nacional, frentes parlamentares pelo mundo todo, Brasil incluso, se mexem para controlar e criminalizar boa parte das atividades que são a base da livre troca de informação e, por consequência, da livre articulação de pessoas e ideais.

As obscuras e específicas sutilezas que definem os protocolos da internet e o texto das leis que podem alterá-los ainda não conseguem comover como, digamos, um Marco Feliciano na Comissão de Direitos Humanos. Mas, ao mesmo tempo, a própria rede começa a gerar ferramentas e quadros capazes de fazer o contra-ataque no território do “inimigo”.

“Abramovaaz"

Ondas digitais bem formadas hoje atingem diretamente o poder. Se não diretamente, forçam a imprensa convencional a reportar o barulho on-line. Buscando organizar, mobilizar e medir o respaldo popular das mais diferentes causas, sites oferecem plataformas para petições que, cada vez mais, penetram dentro da bolha do governo. O maior deles, o Avaaz, reúne cerca de 20 milhões de membros no mundo. O país com mais cadastrados, vejam vocês, é o Brasil. Apenas no último mês, colheu mais de 1,5 milhão de assinaturas contra Renan Calheiros na presidência do Senado. Até o fechamento desta edição, quase 500 mil para destituir Marco Feliciano.

Reprodução/Time

O ativista, homem do ano de 2011 de acordo com a Time

O ativista, homem do ano de 2011 de acordo com a Time

Muita gente ainda desconfia, ou ironiza, da eficácia de abaixo-assinados digitais. Mas basta acompanhar a própria rotina de quem coordena essas iniciativas. Pedro Abramovay, diretor do Avaaz no Brasil, ex-secretário Nacional de Justiça, não poderia ser um exemplo melhor dessa ponte cada vez mais sólida entre o novo ativismo e as instituições. Interessado em política desde sempre, foi presidente do centro acadêmico da faculdade de direito do largo de São Francisco, assessor da Marta Suplicy na prefeitura de São Paulo, assessor de Márcio Thomaz Bastos quando ministro da Justiça, um dos coordenadores da campanha do desarmamento... seu currículo segue bastante analógico até assumir a coordenação das campanhas do Avaaz. Após entregar, pessoalmente, a senadores e deputados volumosas listas de assinaturas, ele mesmo rebate os comentários que firmam que políticos não se importam com petições on-line porque a lei não as reconhece como instrumentos válidos do ponto de vista legal.

“Mecanismos de pressão são parte integrante de qualquer democracia de fato. O valor de milhares ou milhões de assinaturas é enorme. Então eu não acho que a gente dependa de nenhuma reforma legal para que algo como nosso trabalho surta um efeito real. Até porque não é a lei que precisa mudar, mas é a própria internet que vai mudar a democracia”, ele reflete poucas horas antes de voltar ao Congresso com outro abaixo-assinado em mãos.

Mas sejamos honestos: petições vão derrubar bancadas? Passeatas vão salvar a Amazônia? Acampadas vão encarcerar banqueiros? Memes vão defenestrar papas e pastores? Compartilhamentos vão acabar com o machismo, o racismo, a homofobia? Não exatamente. Ou, melhor, não diretamente. Em um mundo de infinitas pautas, disputando o mesmo campo de atenção e ação política, parece que o novo ativismo, sabendo ou não, acaba por achar um fluxo, uma caudalosa convergência que disputa mais do que leis ou providências: disputa uma nova mentalidade, uma nova narrativa, uma nova consciência política que não tem uma forma clara, muito menos um pensamento uniforme. Mas que parte de um reconhecimento cada vez mais óbvio: o presente, como está, não oferece mais futuro. E a solução, pulverizada e nebulosa como os próprios dilemas, precisa refletir uma ideia tão ancestral quanto cibernética: somos parte de uma só rede. O problema de um vai se tornando o problema de todos. E se omitir, como sempre, é um ato político. Mas que hoje, pra dizer o mínimo, pega mal demais.

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