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Show do Bilhão

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Antes hostilizados pela opinião pública por acumular grandes fortunas, Warren Buffett e Bill Gates, dois dos homens mais ricos do planeta, despertam curiosidade e admiração à frente do Giving Pledge, iniciativa que já arrancou de 105 bilionários o compromisso de doar a maior parte de suas riquezas à filantropia

A maior discussão hoje nos Estados Unidos não é a questão dos imigrantes, o direito ao aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a legalização da maconha ou a guerra civil na Síria. O que divide os partidos Democrata, de Barack Obama, e Republicano, da oposição, é a questão sobre como os ricos devem contribuir com a sociedade americana. Os democratas defendem que os milionários paguem uma parcela proporcionalmente maior de impostos. Com esse dinheiro, o governo pode investir em educação, cultura e programas para a redução da pobreza. Os republicanos, por sua vez, acreditam que os ricos, com menos impostos, podem ter mais dinheiro e investir em inovação, abrindo novos negócios, criando empregos e, consequentemente, aumentando o bem-estar de toda a sociedade.

Historicamente, os EUA se equilibram entre essas duas posturas econômicas, que variam de acordo com quem estiver no poder. O republicano Ronald Reagan reduziu a intervenção do governo na economia; o democrata Obama aumentou. Mas, independentemente de quem estiver no comando, o capitalismo sempre foi defendido pelos dois partidos americanos. Existe o sentimento de que, graças à iniciativa privada, os EUA conseguiram se tornar o maior polo tecnológico, financeiro, educacional, cultural e de medicina de todo o planeta.

Como retribuição, as pessoas que alcançam maior sucesso nos EUA, construindo gigantescas fortunas, desde os primórdios do país, costumam realizar ações filantrópicas. Basta observar o nome da universidade número um do país (e do mundo), – Harvard, uma homenagem a John Harvard, que doou dinheiro de sua herança para a construção da instituição educacional do século 17 nas margens do Charles River, em Cambridge, Massachusetts. No fim do século 19 e começo do 20, foi a vez de fortunas como a dos Rockefeller e a dos Carnegie partirem para a filantropia (quem não visitou o Rockefeller Center e o Carnegie Hall em Nova York?).

 

“Mais de 99% da minha riqueza vai para a filantropia. Meu padrão de vida ficará intacto, assim como o de meus filhos. Eles já receberam somas significativas para uso pessoal e já vivem uma vida confortável e produtiva” Warren Buffett, investidor

 

“Sábio público”

Ações como essas não ficaram no passado. No dia 27 de janeiro deste ano, o multibilionário prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, se comprometeu a doar US$ 1 bilhão ao longo de sua vida para a Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, onde estudou. O megainvestidor John Paulson, meses antes, fez uma doação de US$ 100 milhões para a administração do Central Park. Centro do capitalismo mundial, os EUA também são o centro da filantropia. Essa tem sido a história de Bill Gates, de Warren Buffett e de seus antecessores no posto de homens mais ricos do mundo. Primeiro, ganham dinheiro e ficam bilionários. Uma vez atingidos seus sonhos, ajudam a realizar o sonho dos outros.

O mais comum ainda é agir como Bloomberg e doar para universidades, museus ou centros culturais. Instituições como o Metropolitan Museum, a Universidade Yale e o Lincoln Center normalmente são o destino das fortunas, mas, nos últimos tempos, iniciativas como a Fundação Bill & Melinda Gates passaram a focar questões globais, como a cura da Aids e o combate à malária. Atualmente, a organização do fundador da Microsoft tem orçamento maior do que o da ONU para algumas iniciativas na África.

“Não são as coisas que trazem felicidade. Família, amigos, boa saúde e a satisfação de fazer uma diferença positiva são o que importa. Felizmente meus filhos, que serão os herdeiros principais, estão de acordo sobre isso” Richard Branson, dono do Virgin Group

Em troca das enormes doações, os bilionários veem seus nomes associados a iniciativas educacionais, culturais, sociais ou econômicas. O nome oficial do New York City Ballet é David Koch Theater, bilionário da indústria química que pagou por toda a reforma do complexo. Carnegie e Rockefeller são nomes de universidades. Mesmo a Johns Hopkins, que receberá US$ 1 bilhão de Bloomberg, foi fundada por um filantropo. Outro ganho evidente está na reputação. Warren Buffett, hoje quarto colocado na lista dos mais ricos do planeta segundo a revista Forbes (atrás de Carlos Slim, da America Movil – que reúne marcas como Claro e Net –, do próprio Bill Gates e de Amancio Ortega, da Zara), não é mais apenas “o investidor mais famoso da América”, mas uma espécie de “sábio público”, como aponta um perfil publicado em dezembro na prestigiada New Yorker. “No momento em que a hostilidade pública para os super-ricos nunca foi tão grande, ele se tornou não apenas o segundo homem mais rico da América, mas também um dos mais reverenciados”, diz o texto.

Buffett e Gates (fortunas estimadas em US$ 67 bilhões e US$ 53 bilhões, respectivamente) são os criadores da iniciativa Giving Pledge (compromisso de doar), hoje uma confraria com 105 bilionários que se comprometeram publicamente a doar metade de suas fortunas para o bem da humanidade. Além dos fundadores, estão na lista gente como Bloomberg, Mark Zuckerberg, do Facebook, George Lucas, peso-pesado do cinema, e Richard Branson, do grupo Virgin. “O objetivo é criar uma atmosfera que atraia mais pessoas para a filantropia”, diz o site oficial. A soma das fortunas supera o PIB da maioria dos países do mundo.

Os americanos e, em menor escala, os europeus ainda são os maiores filantropos. É uma cultura que demorou a chegar a outras regiões do planeta, mas já atinge a África, o mundo árabe e mesmo o Brasil. O sudanês Mo Ibrahim, que ficou bilionário na área de telecomunicações ao implementar a telefonia celular no continente africano, premia todos os anos com US$ 5 milhões (mais US$ 200 mil para o resto da vida) os líderes políticos africanos com o melhor histórico de governança e ideais democráticos. De Doha a Beirute, bilionários árabes também investem em educação e tecnologia para o avanço da região.

Educação

No Brasil, a filantropia começa a ganhar força, mas está longe dos americanos por dois motivos. Primeiro, não existe a cultura da doação. Segundo, há obstáculos (e não incentivos, como nos EUA) para quem quiser doar parte da fortuna. Um bilionário formado na Poli, Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, talvez não consiga legalmente dar um prédio de presente para a faculdade onde estudou. Nos EUA, o edifício teria o seu nome e a universidade faria de tudo para conseguir o dinheiro.

Jorge Paulo Lemann, homem mais rico do Brasil e 33o do mundo, também é um dos maiores filantropos do país. A opção dele, que se formou em Harvard, foi investir na educação de brasileiros nos EUA por meio de bolsas de estudo e do conhecimento do Brasil entre os americanos, através do financiamento de centros de estudo como o Lemann Center for Educational Entrepreneurship and Innovation in Brazil (Centro Lemann para o Empreendedorismo e Inovação na Educação Brasileira), da Universidade Stanford, além dos da América Latina em Columbia e Harvard.

 

“Meu compromisso é com o processo. Se tenho recursos à minha disposição, vou procurar elevar o nível das futuras gerações de estudantes de todas as idades. Estou dedicando a maior parte de minha riqueza para melhorar a educação” George Lucas, cineasta

 

Mais recentemente, a Fundação Lemann, criada pelo empresário em 2002, deu um passo importante para a educação em território nacional: levou para escolas municipais paulistas a metodologia da Khan Academy, plataforma criada em 2006 pelo educador americano Salman Khan que reúne videoaulas e ferramentas de apoio à aprendizagem. A ação (em parceria com o Instituto Natura, o Instituto Península e o Ismart), já atinge 6 mil alunos do ensino fundamental e é só o começo de um projeto de pelo menos cinco anos.

Iniciativas filantrópicas como as de Ibrahim e Lemann talvez tenham importância ainda maior do que o Giving Pledge. Os dois empresários estudaram na Inglaterra e nos EUA, onde tiveram acesso a essas iniciativas, e sabem o quão fundamentais elas são. Ibrahim quer uma África com cada vez mais presidentes democráticos, como Festus Gontebanye Mogae, de Botsuana, e menos ditadores, como Robert Mugabe, do Zimbábue. Lemann, por sua vez, deve formar uma geração de brasileiros comprometidos em alcançar o sucesso em suas carreiras para, posteriormente, retribuir com ações filantrópicas. Assim, poderemos ter, futuramente, alguns Bill Gates brasileiros.

 

Giving Pledge em resumo

O que é: campanha iniciada por Bill Gates e Warren Buffett em 2010

O grupo: 93 empresários dos EUA e 12 estrangeiros com fortunas acima de US$ 1 bilhão

O compromisso: doar metade do patrimônio para causas humanitárias ou pesquisas

A soma: a riqueza combinada dos 105 integrantes é estimada em US$ 500 bilhões


White power

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Em um mundo em que, com um pouco de articulação, toda causa consegue reverberar, Trip foi atrás de entender como tem evoluído a luta de um grupo que antes vivia escondido: o dos albinos

O galego destoava totalmente dos outros garotos de 13 anos de Lagoa da Canoa, município de 18 mil habitantes no sertão de Alagoas. Era estrábico, enxergava mal, tinha a pele e os cabelos brancos. Mas era ele – justo ele, o principal alvo de chacotas dos colegas, chamado de “cego”, “zarolho” e “instalação trocada” – quem namorava a menina mais bonita da escola. “A professora me perguntava se eu queria que ela castigasse os que me incomodavam. Eu dizia que não porque eles tinham inveja de mim.

Eu me vingava de outro jeito. Na frente dos moleques, perguntava a minha namorada: ‘O que você acha de mim?’. Ela respondia: ‘Te acho um pão. É o mais lindo de todos’. Aí não tinha pra ninguém”, conta o próprio, dando risada mais de 60 anos depois.

O galego, no caso, é Hermeto Pascoal, um dos maiores gênios da música instrumental, com turnês realizadas por Estados Unidos, Japão e Europa e cuja atenção internacional foi despertada ao gravar com Miles Davis, no início dos anos 70. Aos 76 anos, o “bruxo”, como é chamado, mantém intacto o talento para conquistar mulheres: há dez anos é casado com a cantora Aline Morena, 43 anos mais nova que ele. O casal mora em Curitiba, onde o sol castiga menos a pele de Hermeto. O mais famoso albino do Brasil é um exemplo de sucesso e autoafirmação para muitos que, como ele, nasceram com essa rara condição genética que afeta a produção de melanina e causa a falta de pigmentação nos olhos, na pele, nos cabelos e nos pelos.

A vida é dura para os albinos. Em primeiro lugar, no Brasil nem se sabe quantos são. Na Europa, estima-se que haja um a cada 17 mil habitantes, mas aqui não há qualquer levantamento. “É como se eles fossem invisíveis. Não existem dados sobre albinos no IBGE, já que não há a variável no Censo: quando questionados, alguns se identificam como negros porque os pais são negros, outros como pardos. Se o funcionário do cartório olha, registra como branco”, afirma Shirlei Moreira, fundadora da Associação das Pessoas com Albinismo na Bahia (Apalba), única do gênero no Brasil. Não é por acaso que o único grupo organizado dessa minoria tenha surgido na Bahia, estado com a maior população negra do país. “A maior incidência de albinismo ocorre justamente entre afrodescendentes”, explica o dermatologista Marcus Maia, coordenador do Programa Nacional de Controle de Câncer de Pele e responsável pelo Pró Albino, programa da Santa Casa de Misericórdia, em São Paulo, que oferece atendimento de saúde gratuito a 71 albinos. A cada três meses, Maia e o oftalmologista Ronaldo Yuiti Sano fazem avaliações nesses pacientes para evitar que desenvolvam problemas como câncer de pele, envelhecimento precoce da pele e perda da visão.

Gustavo Lacerda

Andreza Cavalli, do grupo Albinos do meu Brasil

Andreza Cavalli, do grupo Albinos do meu Brasil

Os problemas de saúde surgem cedo. “Logo que nascem, muitos já apresentam baixa visão por causa da falta de pigmentação na retina. Na infância, têm dificuldades para acompanhar a escola porque não conseguem enxergar a lousa. Há muita evasão escolar. Muitos não sabem ler ou escrever, o que os deixa ainda mais isolados”, conta Shirlei, da Apalba. Também há o problema da pele, que envelhece muito rapidamente. “Já vi garotos de 20 anos com a pele de alguém de 60 anos. Dependendo do grau de exposição ao sol, podem desenvolver câncer de pele.”

Para se proteger, a estudante de educação física Andreza Cavalli, de São Paulo, procura usar calças e camisas de mangas compridas. Todos os dias, passa protetor solar com fator 60 nas regiões descobertas do corpo. “Além disso, uso óculos escuros e chapéu. É uma obrigação, não tenho escolha. Vira um hábito como escovar os dentes”, explica a moça, que criou um grupo no Facebook chamado Albinos do meu Brasil e do Mundo para trocar dicas e informações sobre o tema. Um grupo de 20 deles se reúne periodicamente para conversar.

Albino incoerente

Existem no mercado roupas e chapéus com proteção contra raios ultravioleta, mas os preços são altos. “Uma camisa custa R$ 200. É cara e as cores e os modelos são limitados”, explica o professor universitário Roberto Bíscaro, autor do blog Albino incoerente – perspectivas albinas de vida. Criada em fevereiro de 2009, a página recebe 300 visitas por dia. “Não existia praticamente nada sobre albinismo em português. Criei o blog na tentativa de preencher essa lacuna e acabou virando uma referência. Tem agências de propaganda que me procuram em busca de personagens albinos para comerciais.”

A falta de estatísticas dificulta a criação de políticas públicas voltadas para a minoria. “É um círculo vicioso. É difícil definir ações de governo porque você não sabe quem é o público-alvo, quantos são e onde vivem”, afirma Roberto. Campanhas contra o preconceito também são necessárias. “Conheço muitos albinos que não conseguem emprego por causa da aparência”, diz o professor. A questão da autoestima é um dos temas mais delicados. Autor da série “Albinos”, da qual fazem parte as imagens espalhadas por estas páginas, o fotógrafo mineiro Gustavo Lacerda conta como lidou com isso. “Eu queria imagens posadas e não ‘roubadas’ na rua. Convidava as pessoas, elas vinham, eram maquiadas e tinham um figurino. Elas eram o centro de atenção, mas não de uma maneira negativa como estão acostumadas. Pelo contrário, a ideia era ressaltar a beleza”, afirma o artista, que começou o trabalho em 2009. Desde então, o ensaio recebeu o prêmio Conrado Wessel de Arte 2011, foi exposto na mostra Europalia, em Bruxelas, e será exibido em setembro no Museu do Quai Branly, em Paris. Além disso, um livro com as imagens será publicado pela editora Madalena, do fotógrafo Iatã Cannabrava.

A ideia de melhorar a autoestima funcionou. Pelo menos no caso de Patrícia de Matos Cardoso, a escoteira que aparece na abertura desta reportagem. As fotos da adolescente de 16 anos e de Andreza Cavalli foram adquiridas pelo Museu de Arte de São Paulo para fazer parte da Coleção Pirelli. “Eu era insegura com tudo. Não me achava bonita. O ensaio mudou minha visão sobre mim mesma.” Quando foi ao estúdio de Gustavo Lacerda, Patrícia só queria uma foto. Nem sonhava que aquilo iria para tantos lugares. “Foi uma ótima surpresa”, ela conta.

Gens Grossman/LAIF

crianças da Tanzânia

Crianças da Tanzânia

IMAGINE NA TANZÂNIA

Em algumas regiões do continente africano, a situação dos albinos é ainda pior do que no Brasil. O caso mais grave é na Tanzânia, onde em algumas tribos acredita-se que partes dos corpos dos albinos têm poderes mágicos, o que leva ao assassinato e à mutilação de centenas deles. Há também os casos de garotas albinas que são estupradas por homens portadores do vírus HIV por causa da crença de que elas curariam a Aids. Para lutar contra essas atrocidades, existe uma ONG canadense chamada Under the Same Sun, que dá assistência aos albinos na região. O site da organização é www.underthesamesun.com

Vai lá:

Apalba: www.apalba.org.br
Santa Casa de Misericórdia de São Paulo: www.santacasasp.org.br
Blog do albino incoerente: www.albinoincoerente.com
Albinos do meu Brasil e do mundo: www.facebook.com/groupsalbinosdomeubrasiledomundo

Tá rindo de quê?

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ariovaldo/cpdoc jb

Chico Anysio faz show em São Paulo, em 1971

Chico Anysio faz show em São Paulo, em 1971

Pobretões estropiados, presidentes militares, galãs de novela, famílias arruinadas, casais neuróticos, gays, celebridades: ao longo dos anos, o que as vítimas preferenciais do humor da TV brasileira revelam sobre a nossa sociedade

Num país que perde tudo, menos a piada – basta lembrar quantas horas demoramos para começar a rir de grandes ídolos mortos, como Tim Maia e Ayrton Senna –, o que os maiores sucessos do humor de massa nos dizem sobre o Brasil? Da era de ouro do humor de tipos de Chico Anysio e Jô Soares à recente explosão da graça cáustica do grupo independente Porta dos Fundos – passando por formatos cuja longevidade desafia a lógica, como A grande família e A praça é nossa –, em quem temos adorado ver nossos humoristas baterem?

Os pobres e/ou estropiados, como o Bronco, de Ronald Golias, sempre tiveram nossa preferência. Nos primeiros anos da TV brasileira, o personagem dividia com a Velha Surda de A praça (que nasceu A Praça da alegria) a tarefa de entreter a audiência, enquanto o país afundava em atos institucionais cavernosos.

Se não tiveram graça nenhuma, os anos de regime militar ao menos alimentaram pérolas do humor. Entre os tipos que Jô e Chico encarnavam nos anos 70 e 80, sobressaíam-se os que parodiavam políticos em evidência ou faziam alusões veladas ao regime. Anysio criou Salomé, a velhinha gaúcha que passava pitos no então presidente João Figueiredo; Jô, o milico que acordava de um coma com Sarney na presidência (“Me tira o tubo!”) e Sebá, exilado político que vociferava, ao ouvir notícias do Brasil: “Você não quer que eu volte!”. Isso tudo em um tempo em que a Censura era uma ameaça; um dos grandes sucessos do hunorista, o Capitão Gay, quase morreu antes de nascer: havia um coronel em Brasília que tinha Gay no nome, e Jô temia irritá-lo com o personagem.

“Apolooooonio, É você, Apolônio?”
Rony Rios, a Velha Surda 
A Praça da Alegria/A Praça É Nossa
(TV Paulista/Globo, 1957)

Rir da ditadura, eventualmente, cansaria. A virada para os anos 1980 e o processo de abertura política trazem à baila novas vítimas e novas formas de rir delas. TV Pirata (1988) batia em ricos e remediados, mas tinha como principal cristo a própria Rede Globo e sua onipresença no imaginário do país; Casseta & Planeta (1992), de verve mais política, inaugurou o “jornalismo mentira, humorismo verdade”. Se o primeiro deriva do teatro besteirol, o segundo é filho do tablóide underground Planeta Diário (1984), que atirava para todo lado, com manchetes como “Wilza Carla explode na Terça-Feira Gorda” e “Sobral mata a cobra e mostra o pinto”.

“Jô e Chico faziam humor de resistência. A Casseta e o Planeta nasceram para fazer um contraponto a isso em um período de redemocratização”, diz Marcelo Madureira.

Ricos pobres e pobres ricos

Nos anos 90, em plena redemocratização, são as mudanças no topo da sociedade brasileira que alimentam o maior sucesso humorístico da TV. Uma família de ricos submergentes, produto acabado da era de incertezas econômicas dos governos pré-real, é a vítima de eleição de Sai de baixo, que turbinou a eterna sitcom familiar com uma boa dose de improviso – era gravado de um jeito algo retrô, ao vivo e com plateia. “A família classe A falida era engraçada na época, assim como hoje a gente ri da ascensão da classe C”, diz a atriz Marisa Orth, que fazia a descerebrada Magda no humorístico.

'Ô da poltrona'
Renato Aragão em Os Trapalhões
(Globo, 1977-1995)

Prova viva da própria fala, ela encabeça o núcleo cômico da novela Sangue bom, que acaba de estrear na Globo, no papel da filha de um feirante que enriqueceu. Mas nem por isso acredita em grandes mudanças no humor feito na TV brasileira. “Sai de baixo era commedia dell’arte, um gênero do século 16. A árvore de Natal é a mesma. O que muda são os enfeites”, ri.

Coisas de casal

Na virada do milênio, em clima de democracia, estabilidade econômica e “liberdades individuais” garantidas, o que desponta como motivo de riso é, mais que a política ou a economia, a neurose conjugal, praga que une ricos, pobres e classe média numa identificação em larga escala. Os normais (2001), sitcom modernizada, promove uma mudança sutil no foco da graça. “Há dois tipos de humor. O que ri dos outros e o que ri de si mesmo. Os normais era do segundo tipo”, diz Alexandre Machado, cocriador, com Fernanda Young, da série e de O dentista mascarado, que marca a estreia de Marcelo Adnet na Globo. 

Bater nos outros, contudo, não sai de moda. Longe disso. Pânico, sucesso radiofônico que chega à TV em 2003, aposta num pastiche poderoso que ressuscita o humor de tipos, abrasileira as tiradas nojentas do programa americano Jackass e manda chumbo grosso contra nosso deslumbramento diante das celebridades. “Brincamos muito com esse culto aos famosos e com a ideia de que o sucesso ($$) transforma o ridículo em respeitável”, diz Emílio Surita, cabeça do programa.

"Eu faço a cabeça do João Batista ou não me chamo Salomé"
Chico Anysio em Chico Anysio Show
(Globo, 1982-1990)

Sucesso de audiência, Pânico desafia não só o bom gosto, mas o formato humorístico tradicional. “Estamos no horário mais competitivo da TV e temos obrigação de ser populares, mas nem por isso deixamos de brincar com a percepção do telespectador. Misturamos realidade e ficção, personagens e gente real. Temos um time irrequieto e sem medo de errar”, diz Surita. “Eu, particularmente, não gosto, mas acho que programas como o Pânico ajudam no processo de amadurecimento do público brasileiro em relação à comédia televisiva”, acredita Alexandre Machado. “Eu quero mais é que eles explodam todos os limites.”

Adir Mera/Ag. O Globo

'CANSEI!' - Jô Soares como Capitão Gay em Viva o Gordo (Globo, 1981-1987)

Censura branca

O panorama do humor televisivo atual mostra que ainda há público para os tipos caricatos de Zorra total e A praça é nossa, o humor familiar de A grande família, e novidades como o CQC (2008), formato argentino que aposta em constranger políticos, religiosos e artistas. Mesmo assim, sugere uma certa crise de criatividade na TV, atribuída por muitos humoristas ao que consideram uma nova forma de censura: a moral do politicamente correto, reforçada por leis como a 9.504, que proíbe sátiras a candidatos em época eleitoral, e pela ameaça de processos por ofensa.

A campanha contra agressões (real ou supostamente) cometidas por humoristas coincide com a organização da sociedade civil e o avanço das defesa dos direitos das minorias, mas sugere exageros de parte a parte.

“Essa patrulha do moralismo também tem fins lucrativos. Hoje fundar uma ONG em defesa dos anões caolhos gera dinheiro e é preciso justificar esse dinheiro. Essas representações sociais são muitas vezes questionáveis, veem preconceito em tudo”, diz Madureira.

“A criatividade humorística foi manietada pela autocensura do politicamente correto. A comédia de hoje parece algodão-doce”, diz Elias Thomé Saliba, professor de teoria da história na USP e autor de Raízes do riso (Cia. das Letras).

O surgimento de uma geração de comediantes “de pé” e a disseminação dos esquetes caseiros em vídeo, viralizados na internet, estão contribuindo para renovar o humor brasileiro – e pôr mais lenha nessa discussão sem fim. Um dos comediantes revelados pelo stand-up, Danilo Gentili foi acusado de crime de racismo pelo Ministério Público por uma piada que rimava negro e macaco. “Todo mundo fala de Chico Anysio e Jô Soares como se fossem santos, nesse sentido”, lamenta Gentili. “Mas eles faziam piadas sexistas, zoando homossexuais, raças, credos. O mundo faz piada disso.”

"Quem eu pensei pra fazer Deus é Seu Jorge"
Fabio Porchat em Brainstorm, esquete de Porta dos Fundos

O que distingue graça e preconceito, na opinião de quem faz humor? “Quando a piada é boa, faz rir automaticamente, não existe agressividade”, acredita Madureira. Paulo Gustavo, criador do monólogo Hiperativo, ressalva. “O melhor humor é o que faz rir e diz algo; o pior é o que apela para grosserias e humilhações.”

O humorista negro Marcelo Marrom vai mais longe. De peruca loura, ele arranca gargalhadas com um monólogo teatral que tem como alvo o negro. “Agora, em vez de me chamar de negão, o pessoal grita na rua: ‘Afrodescendente só faz merda’.” Transformar o que vive em piada é seu trabalho, afinal, justifica-se. “Nossa cabeça mudou pra pior. Chamar o negro de afrodescendente não melhora sua vida”, diz. “O preconceito não está na nomenclatura, mas no coração das pessoas. Posso usar termos como ‘crioulo’ sendo e não sendo preconceituoso. É questão de inflexão, momento, tom. É ignorância pensar que tudo é preconceito.”

Tempos velozes

Há luz no fim desse túnel? Sim, diz Alexandre Machado. “O politicamente correto é uma questão superada em outros países. Na TV americana, há um renascimento do palavrão, do mau gosto, da comédia maluca. Girls é uma série de humor que testa limites de uma forma impensável há dez anos. As pessoas aparecem peladas o tempo todo, transando, exatamente como são.”

UH/Folhapress

'Ô Cride!' - Ronald Golias em Família Trapo (Record, 1967-1971)

Menos animado, Madureira acha que o estado do humor reflete “uma certa regressão da sociedade”. “A TV aberta não comporta mais um conteúdo iconoclasta, arrojado. E quase não se fala de política no humor. Nossa sociedade reclama, mas não se engaja. De forma grosseira, há uma alienação”, opina.

Fã de vários dos comediantes que surgiram na última década – Paulo Gustavo, Marcelo Adnet, Katiuisca e, em especial, Fabio Porchat e Gregório Duvivier, dois dos criadores do sucesso virtual Porta dos Fundos –, a atriz Regina Casé discorda. “Tem um episódio deles que mostra toda a cadeia alimentar brasileira: ladrão, favela, delegado, pastor”, diz, referindo-se ao esquete em que um motorista de táxi é roubado por um traficante, que é achacado por um policial, que é afanado por um deputado, que, afinal, perde para o taxista, que se diz pastor evangélico e cobra o dízimo. “Acho isso altamente politizado”, ela diz. “É uma crítica contundente a um momento que a gente está vivendo.”

Desgraças brasileiras e males contemporâneos, como o tédio da vida corporativa e os péssimos serviços oferecidos pelas empresas das quais dependemos no dia a dia – telefônicas, por exemplo –, estão entre os temas do Porta dos Fundos. Para Fabio Porchat, um de seus criadores, os temas não são o ponto, mas o ritmo. “O ritmo das pessoas muda e as piadas têm de mudar pra acompanhar. Hoje estamos em um ritmo mais acelerado. Daí o formato do Porta dos Fundos, com esquetes de poucos minutos e tiradas rápidas. Não mudamos nada. Seguimos o modelo de esquetes de TV pirata, Monty Python. O que aconteceu foi que acertamos no timing.”

Por que amamos tanto o que não muda nunca?

Por: Eugênio Bucci

As crianças, antes de dormir, gostam de ouvir histórias. De preferência, as mesmas. Sob as cobertas, pedem aos pais que leiam os mesmos livrinhos, já gastos, puídos, cujos textos elas passam a decorar. E então gostam ainda mais daquelas palavras, aquelas mesmas palavras repetidas.

Depois as crianças crescem e seguem em busca de narrativas repetidas para seus tortuosos itinerários eróticos. As aventuras sexuais de uns e outros podem trazer novidades retumbantes para uns e outros, mas, se elas forem mesmo um filme quente, as legendas serão quase sempre iguais, com poucas variações.

O prazer da gente busca aninhar-se no conhecido, no familiar. O prazer se compraz não em conhecer, mas em reconhecer. A “vítima” do sedutor mira o estranho bem nos olhos e diz: nós somos íntimos desde tempos imemoriais. Não foi por outra razão que a indústria do cinema se organizou, disciplinadamente, em gêneros fixos. Os filmes são “devices” para entregar aos clientes o tipo exato de emoção que eles querem comprar. Os outros ramos do entretenimento também funcionam assim. Todo jazz é igual ao jazz, todo samba é idêntico a si mesmo, todo sertanejo universitário cacareja em dueto previsível. Aí o freguês compra, se reconhece e goza.

TV Globo/Zé Paulo Cardeal

'Cala a boca, Magda' - Miguel Falabella e Marisa Orth em Sai de baixo (Globo, 1996-2002)

Por que a nação prefere ver o futebol na Globo se nos outros canais a imagem é potencialmente igual? Simples: porque a voz do Galvão Bueno, que muita gente xinga, faz com que todo mundo se sinta em casa. Faz com que todos se reconheçam em casa. Que o tal Galvão seja o maior salário da TV brasileira (ou um dos maiores, vá lá) não surpreende. É ele que segura a audiência. Não por inovar, mas por ser igual, conhecido, já sabido.

Também com as piadas é assim: a gente adora rir da mesma piada. É mais confortável do que rir de piada nova – coisa mais chata, mais trabalhosa. Rir da mesma piada é mais prazeroso. Só o que se pede é que haja uma pitada de invenção, discreta, mínima. O gosto verdadeiro é o do mesmo – exatamente como na gastronomia.

No meio da aula, anuncia: “Agora eu vou contar uma piada”. Imediatamente, a classe inteira começou a rir, antes mesmo da piada. Os alunos se sentiram autorizados a rir – e isso, apenas isso, fez com que rissem com muito gosto. Foi uma boa risada coletiva, e quem ri coletivamente se sente mais em casa ainda, mesmo que seja na escola.

Para que servem as risadas gravadas ao fundo da trilha sonora das sitcoms? Elas servem para autorizar o riso. Quem ri coletivamente cumpre uma ordem –
e adora. Concorda, aceita e adora. A compensação para quem ri em tropa é sentirse pertencente.

Ah, sim, dizem que o humor liberta. Francamente, há piadas melhores. Só o que liberta é a dissonância, a dissidência. Na indústria do entretenimento, o humor apenas compacta a audiência – que, em lugar de marchar unida, gargalha unida. E se sente de volta à casa materna, à eterna, sempre aberta casa materna, sempre à espera dos que se dispersaram, perderam-se no mundo, mas um dia retornarão ao aconchego final. Um útero, um túmulo.

Por isso, o humor que vence na televisão é o que tem em si a capacidade de repetir-se ad infinitum. O Zé Bonitinho é o personagem mais importante dos humorísticos televisivos. A Praça é nossa é uma capitania hereditária, que cruza os tempos e as megatransformações tecnológicas sem dar sinal de esmaecimento. Essas coisas são o nosso cadáver de Lênin, aquilo que não muda para que tudo o mais se esboroe à vontade. As mesmas piadas de sempre, as mais cadavéricas, acolhem os infelizes na sua morada idílica.

Diante disso, não deveria intrigar a ninguém o fato de que os humorísticos mais ressequidos são aquilo que a televisão brasileira nos oferece de mais novo. E de que os humoristas mais novos, a um golpe caprichoso do tempo acelerado, acabem se convertendo no que temos de mais ressequido.

As crianças, antes de dormir, pedem que lhes contem uma historinha conhecida, assim como os velhos, antes de morrer, só desejam rir um pouco de uma piada que, segundo creem, não envelheceu.

Faz-me rir

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Trip passou um dia com uma turma que é paga para dar risada – e para induzir você a fazer o mesmo. Conheça os integrantes do auditório de A Praça é Nossa, uma das últimas claques de verdade da TV brasileira

“Bom dia, minhas pombas-rolas!”, era como Sineide Pereira saudava as senhoras que subiam – algumas com certa dificuldade – no ônibus que partiria da zona leste de São Paulo para o SBT. “Mas você tá a cara da riqueza, meu bem”, acrescentou a uma delas, para em seguida dar-lhe um tapinha no derrière. “Sua safada!”

Desde 1999, a pernambucana arretada, de 50 anos, é encarregada de selecionar e levar as pessoas que compõem o auditório de A praça é nossa. Ao lado do Zorra total, da Rede Globo, que não permitiu a entrada da Trip em seus estúdios, ele é o único programa da TV brasileira que ainda utiliza uma claque de verdade, isto é: as risadas e os aplausos que você escuta na transmissão foram gravadas ao vivo, não são uma trilha pré-gravada incluída na edição. “Nos outros programas você percebe na hora que as gargalhadas são sempre as mesmas, artificiais. Acho ridículo”, critica a expert.

São em média 40 pessoas (30 mulheres e 10 homens) em sua caravana. “O SBT não deixa eu levar menos de 37. Se alguém falta ou fica doente, dou um jeito de substituir na hora. Em 14 anos, nunca deixei de cumprir minha missão”, gaba-se. As mais desinibidas, de riso fácil, são convocadas toda semana. Com as “mais apagadinhas”, ela faz um rodízio. “Tenho mais de 500 pessoas cadastradas. Falo para todo mundo espalhar meu telefone. Sou garota de programa”, brinca. O difícil é agradar todo mundo. “Teve uma mulher que me esperou fora do ônibus com uma faca, porque eu disse que não ia poder levar ela. Desci e falei: ‘Vem cortar o meu bucho que eu quero ver!?’ Mas essas pessoas não me atingem, são apenas pedras que eu tiro do caminho.”

Jordi Burch

A pernambucana Sineide Pereira, que desde 1999 seleciona pessoas para o auditório de A Praça É Nossa

A pernambucana Sineide Pereira, que desde 1999 seleciona pessoas para o auditório de A Praça É Nossa

As idades flutuam entre 18 e 87 anos. Senhoras são maioria; senhores eram coisa rara, mas são cada vez mais frequentes. “Teve um que me deu um problemão: engasgou com a dentadura, acredita?!”. Teresinha Augusto, 74 anos, é a integrante mais animada da trupe, e também uma das mais antigas: segue Sineide neste e em outros programas desde que ela virou caravaneira. “Vim parar aqui porque minha risada é famosa. Meu pai até batia na minha boca de tanto que eu gostava de rir”, rememora, arrematando, claro, com uma gargalhada, aguda como a de uma criança. Quando vê o fotógrafo que acompanhou a reportagem, puxa palmas e entoa Michel Teló: “Delícia, delícia, assim você me mata”.

Sentada ao seu lado está Amely Costa, 78 anos, também proprietária de uma senhora risada. “Não deixam nem a gente sentar perto na gravação”, lamenta. Fã dos quadros de Paulinho Gogó e da Turma do Rapadura, ela conta que, se for preciso, desmarca até o médico para contribuir com a claque. “Rir, para mim, é o melhor remédio. Eu vivia depressiva em casa, sozinha. A Sineide mudou minha vida”, revela. “E ainda ganhamos um dinheirinho bom. Pago a conta de água e faço a feira com ele.”

Amely, Teresinha e demais membros da “família”, como Sineide gosta de chamar, recebem R$ 20 por dia da emissora, além de dois lanches (um na entrada, outro na saída) com refrigerante, sanduíche e bombom. “Parece pouco, mas tem muita gente aqui que passa a semana com esse dinheiro. Às vezes, trago três pessoas da mesma família para ajudar. Uns usam para carregar o bilhete único e ir atrás de emprego, outros vão direto para o supermercado”, diz. “Eu não como mais salsicha, né?! Mas eles vão lá e compram salsicha, arroz, feijão...”

Sineide era dona de salão de beleza até “ganhar” uma caravana de um cliente que trabalhava no ramo, quando ela disse que não tinha dinheiro para fazer os óculos de uma das três filhas. “Meu marido, que hoje graças a Deus é ex-marido, não queria nem saber.” Não é contratada do SBT, mas recebe R$ 250 por dia de trabalho. As gravações são semanais, geralmente às terças-feiras. Ela realiza ainda caravanas para outros programas, como Domingo maior, CQC e Pânico (“nesse só vai moleque, todos doidos para ver a bunda das panicats”), organiza excursões para cidades históricas e hotéis-fazenda e revende produtos de cama, mesa e banho. Por mês, estima, tira pelo menos R$ 3 mil. “Hoje tenho apartamento próprio, carro e casa de veraneio. E ainda paguei curso para todas as minhas filhas. Disse pra elas: ‘Eu dou um caminho. Você faz dele um infinito.’”

Jiló e quiabo

O ônibus, cedido pela emissora, sai do Itaim Paulista às 11h30. Depois faz mais duas paradas para buscar outros caravanistas e um pit-stop em um posto de gasolina, próximo ao estúdios do SBT, na Anhanguera. É quando todos sacam suas marmitas da bolsa e forram o estômago para aguentar as quase seis horas de gravação. Querida por todo mundo, Sineide nem precisa levar almoço: ganha de presente um Tupperware “com arroz, mistura, jiló e quiabo”.

Na TV, antes do luminoso “On Air” do estúdio 3 acender, Roque, o fiel escudeiro de Silvio Santos há 54 anos, faz as honras da casa.

Os donos das melhores risadas (leia-se: nem muito alta, nem muito baixa) são colocados nas filas da frente; os que riem de forma mais exaltada ficam no fundão

“Quem inventou esse negócio de claque”, jura, “fui eu”. “Nos tempos da rádio, quando vinha gente desconhecida para cantar, eu arranjava 20 fãs histéricas em um minuto. Ou quando era enterro de gente famosa e sem amigos eu descolava um monte de gente para chorar.” As risadas de hoje não são boas como as de outrora, na sua opinião. Ele tenta explicar: “Eu arranjei um cara que ria assim: ihhhhh hahaha! Parecia um avião decolando. Outro era assim: há! Só isso, bem grave. Hoje todo mundo ri igual. Aliás, vou falar sobre isso com o Carlos Alberto de Nóbrega [apresentador de A praça].”

Pouco antes das 15 horas, a caravana de Sineide faz fila indiana para entrar no estúdio. Os outros quarenta assentos serão ocupados por outra caravana, a de dona Isa, que não quis revelar o sobrenome nem posar para fotos. Os donos das melhores risadas (leia-se: nem muito alta, nem muito baixa) são colocados nas filas da frente; os que riem de forma mais exaltada ficam no fundão. Três microfones pendendo do teto registram tudo.

Quem faz a mágica acontecer é a assistente de palco Carla Liberal. Com o roteiro nas mãos, já com as piadas marcadas, e de olho no monitor, ela fica em frente à plateia pedindo risadas ou aplausos. É instantâneo: ela levanta um braço e as 80 pessoas (menos uma, que estava adormecida) explodem em gargalhadas; levanta o outro e parece que o volume dobra; abaixa os dois e não se ouve mais nem um pio. “Acho incrível a capacidade que essas velhinhas têm, pois eu mesma não consigo rir se me pedirem. Elas riem mesmo quando não entendem a piada”, diz Carla, que costuma ganhar presentes e doces caseiros das integrantes de sua “orquestra do riso”.

Nos intervalos, alguns caravanistas pedem para tirar fotos com os atores. Os poucos rapazes presentes preferem assediar a atriz Fabiana, mulher de Alexandre Frota, provavelmente atraídos pela comissão de frente – e de trás também – artificialmente avantajada da moça. Enquanto isso, Sineide fica na sua. “Quando comecei no ramo, gastava tudo que ganhava em filme de Polaroid. Tirei foto com todo mundo. Hoje em dia não. Sei que os famosos são pessoas normais, que nem eu”, diz. A caravaneira já desfrutou de seus 15 minutos de fama, fazendo pontas na Praça. “Já me chamaram para ser mãe de mafioso, sogra... Já fui sapatão também. Adorei! Fiquei idêntica.”

Casamento gay avança

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Depois de quase dois anos da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que definiu a legalidade para o casamento entre pessoas do mesmo sexo, enfim, os casais brasileiros poderão oficializar seus casamentos em qualquer cartório do País. Graças a uma decisão do do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), todos os cartórios da federação são obrigados, à partir de hoje (17), a oficializar casamentos entre pessoas do mesmo sexo e converter em matrimônio as uniões civis homoafetivas já cadastradas.

A vitória tem um gosto especial por acontecer no dia 17 de maio, quando se comemora o Dia Internacional da Luta contra a Homofobia. A data que marca a exclusão da homosexualidade dos registros de Classificação Internacional de Doença (CID) da Organização Mundial da Sáúde, em 1990, agora também marca o início oficial dos direitos iguais para casais formados por pessoas do mesmo sexo no Brasil. Com isso, casais gays passam a ter direito a pensões, divisão de bens e todas as vantagens asseguradas em lei para casais heterosexuais.

Caio Cezar

Capa da Trip #205, especial Diversidade Sexual

Capa da Trip #205, especial Diversidade Sexual

A decisão da CNJ provocou uma corrida de casais aos cartórios. As decoradoras Mônica Vieira (45) e Rosa Pelegrin Fernandes (40), para dar um exemplo que apareceu hoje no G1, foram o primeiro casal de São José do Rio Preto (interior de São Paulo) a se casar sob a nova lei na cidade. Em BH, como mostrou o site Em, um dos casais beneficiados foi Jeferson Pinheiro Damásio e Éder Melo Barbosa Pinheiro, que estão entre os primeiros a se casar nas Minas Gerais.

Em 2012, ainda de acordo com a reportagem do G1, cerca de 1.227 casais homosexuais oficializaram suas Uniões Estáveis em cartórios, só contando estabelecimentos de 13 capitais estaduais. Com a regulamentarização do casamento, esse número só tende a crescer em 2013, tanto nas cidades maiores como no interior.

"Essa decisão representa a garantia dos direitos de um casal homossexual no mesmo formato de um casal heterossexual. É muito diferente, em contextos variados, dizer que ‘vivemos juntos há tantos anos’ e falar que ‘estamos casados há tantos anos’. O poder instituído vai entender [a situação] de outra forma e a sociedade vai enxergar essa união com mais legitimidade”, afirmou Evaldo Amorim, secretário regional da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) de São Paulo, em entrevista à revista Exame.

Não é só aqui

E os brasileiros não estão sozinhos nessa. Nesta sexta, após diversas manifestações públicas nas ruas de Paris (tanto contrárias quanto favoráveis ao casamento gay), o Conselho Constitucional francês aprovou o casamento e a adoção de crianças para casais homossexuais no país, quase um mês depois da aprovação do projeto no Parlamento Francês. De acordo com a agência Associated Press, François Hollande, presidente francês, promulgará a lei ainda no sábado (18).

Com isso, a França torna-se o 14º país a realizar e reconhecer casamentos entre pessoas do mesmo sexo em âmbito federal. O país europeu se une à lista que já continha Argentina, Bélgica, Brasil, Canadá, Dinamarca, Islândia, Holanda, Noruega, Portugal, África do Sul, Espanha, Suécia e Uruguai. Nos EUA, apenas nove estados entre os 50 do país já reconhecem o casamento gay (Connecticut, Iowa, Massachusetts, New Hampshire, New York, Vermont, Maine, Maryland, Washington e o Distrito Federal). No México, só dois estados realizam casamentos, mas todos os estados do país os reconhecem. A mais estranha excessão é Israel, que não realiza casamentos entre pessoas do mesmo sexo, mas reconhece casamentos realizados fora de seu território.

Reprodução/Familiabolsonaro.blogspot

O deputado Jair Bolsonaro em momento mais descontraído

O deputado Jair Bolsonaro em momento mais descontraído

Na China, um dos países onde ainda hoje é mais difícil vencer a força da lei por pressão social, um grupo de dez advogados dos direitos humanos no país pediu formalmente à Assembleia Nacional Popular (equivalente à câmara dos deputados na China) que reconheça a união civil entre pessoas do mesmo sexo com um decreto unilateral. O ponto mais forte do argumento são os números, que indicam que cerca de 5% da população do país (quase 40 milhões de pessoas) se dizem homossexuais ou bissexuais.

Liberais com espumante, conservadores espumando

Ontem (16), antes que o primeiro casamento civil se realizasse sob a nova lei, o deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) soltou os cachorros contra a decisão da CNJ. "O Judiciário, a exemplo do Supremo, tem avançado sobre a Constituição. Está bem claro na Constituição aqui: a união familiar é um homem e uma mulher. Essas decisões aí só vêm a cada vez mais solapar a unidade familiar, os valores familiares: vai jogar tudo isso por terra", esbravejou no plenário, sem sucesso.

Em entrevista ao Terra, ele foi mais além: "Eu sou parlamentar para pregar o que eu bem entender. Se eu achar que jornalista tem que ir para o pau de arara, eu posso falar! Eu posso ir buscar assinaturas para a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) nesse sentido. Eu posso falar a besteira que eu quiser! Por isso que eu tenho imunidade, é para falar, dar opiniões."

Para não ficar atrás, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) também repudiou a decisão da CNJ. Mas ao invés de bater na mesa para mostrar força política, apelou contra o progresso usando a visita do Papa Francisco I ao Brasil como desculpa. O primeiro Papa sulamericano vem ao país para a Jornada Munidal da Juventude, que acontece no Rio de Janeiro entre os dias 22 e 28 de julho.

"As uniões de pessoas do mesmo sexo (...) não podem ser simplesmente equiparadas ao casamento ou à família, que se fundamentam no consentimento matrimonial, na complementaridade e na reciprocidade entre um homem e uma mulher, abertos à procriação e à educação dos filhos", defendeu a CNBB. "Unimo-nos a todos que legítima e democraticamente se manifestam contrários a tal Resolução".

Você me perdoa?

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Jorge Bispo/Acervo Trip

Angela Ro Ro

 

De: Angela Ro Ro

Para: Meu pai e minha mãe

Meus queridos papai e mamãe!

Mesmo tendo eu sido impotente, e os fatos me levarem involuntariamente por caminhos perigosos e cruéis, quero oferecer a vocês, Ayenio e Conceição, meu sentimento de pesar.

Papai! Perdoe minha inocência, minha infância e pureza, minha desatenção com o prático e o material. Mil perdões por ter permanecido virgem sexualmente até idade avançada, por ter quase entrado em um

convento, por ser espancada diversas vezes, justo pelos seus colegas de profissão, e não ter me diplomado em matemática.

Mamy, mamãe! Tente compreender meu pesar por ter sido tão ciumenta, tão chorona, tão gulosa e preguiçosa. Tanto desperdicei chances de fortuna por meu desleixo relapso, cigano e hippie. Perdoe meu piano medíocre!

Sabendo que de vocês, mamãe e papai, herdei meu maior tesouro: a humildade simples de me amar para assim amar melhor.

Minha gratidão eterna,

Angela Maria

 

Julia Rodrigues/AG O Globo

Rafinha Bastos

 

From: Rafinha Bastos

To: O casal de fãs Mariana e Roberto*

Esta carta começa com uma piada que contei por seis anos no meu antigo show: “Garçons perguntam coisas estranhas. Pedi que um embrulhasse o resto do meu hambúrguer e ele perguntou: ‘É pra viagem?’. E eu: ‘Não. Pra presente! Vou dar meio hambúrguer de Natal pra uma pessoa’”.

Agora vamos à história. Antes de trabalhar em TV aberta, fiz por dois anos um show solo em um teatro de São Paulo. Tinha um casal que assistia a quase todas as sessões e sempre me escrevia. Eu brincava nos e-mails que, o dia em que eu faltasse, chamaria os dois para fazer o show no meu lugar.

Depois de um ano de troca de e-mails eles pararam de enviar mensagens. Pensei: “Devem ter ficado de saco cheio de mim”. Após quatro meses sem contato, recebo um e-mail da Mariana. Ela contava algo que eu nunca vou esquecer: “Rafa, estivemos afastados de qualquer compromisso social nos últimos meses. Em maio, o Roberto sofreu um acidente de carro. Ele dirigia na estrada quando um caminhão fechou o seu veículo. O carro do Roberto se chocou contra a proteção da pista. Ele bateu forte a cabeça e perdeu a memória. Não existe maneira segura de apontar em quanto tempo a memória voltará e se voltará completamente. Ficamos assustados. Você não faz ideia de como é louco ter alguém que você ama ao seu lado e ele simplesmente não se lembrar de você. É desesperador. Ficamos no hospital seis dias e nada de ele se recordar de mim, dos pais nem de como executar tarefas simples. Na saída do hospital, no horário do almoço, o Roberto, sem fome, preferiu não comer. A enfermeira viu que o prato estava cheio e perguntou: ‘Roberto, você não comeu nada. Quer que eu embrulhe a comida?’. Ele respondeu: ‘Quero. Pra presente’. Foi ali que eu vi que teria o meu amor de volta”.

Essa história ainda me emociona muito. Toda vez que eu me envolvo com algum problema por causa do meu trabalho ou sinto que uma brincadeira minha foi interpretada de maneira equivocada, eu lembro dela. O efeito negativo do que eu faço é estampado na imprensa. Já o efeito positivo só quem sente somos eu e aqueles que gostam do meu trabalho. E isso pra mim é o bastante.

Ok, agora o editor da revista Trip pergunta: “Sim, amigo, e o pedido de desculpas? É sobre isso que pedimos para você escrever”. Bem, eu explico. O texto acima, enviado pela Mariana, é, na verdade, a minha lembrança da mensagem. Por quê? Porque eu formatei o meu computador e perdi o e-mail. Pior: troquei de provedor e perdi o contato com o casal. Sim, sou um idiota. Lembro que, no final da mensagem, Mariana me fazia um pedido. Ela queria que eu enviasse um vídeo parabenizando o Roberto pela recuperação. O problema é que não tenho mais como contatá-los. A verdade é que eu deveria ter cuidado melhor da mensagem. O resultado é que eles nunca receberam o tal vídeo. Por isso, EU PEÇO DESCULPAS.

PS 1: Sei que essa história parece um conto piegas, mas eu não teria criatividade para criar algo do gênero. Sou comediante e não roteirista de novela. A história é verídica.

PS 2: Se você conhece esse casal, por favor, repasse a mensagem e peça que entre em contato comigo. Eu PRECISO gravar e entregar esse vídeo.

PS 3: Outlook nunca mais.

*Nomes fictícios

Jorge Bispo/Acervo Trip

Lygia de Veiga Pereira

 

De: Lygia da Veiga Pereira

Para: Meu pai

Meu pai querido,

Hoje passei em frente ao restaurante onde almoçávamos juntos quando você vinha a São Paulo e chorei… De saudades, de pena dos desencontros, do tempo perdido que agora não tem mais volta. Na última vez eu acabei desmarcando, estava com meu dia muito corrido. Acho que você queria se explicar sobre aquele último episódio familiar lamentável. Me lembrei de uma conversa que tivemos, quando fui tão fria, cinicamente racional, e não te dei a oportunidade de falar como se sentia, de falar a sua verdade. Ali perdi o título de “a filha que seu pai escuta”, dado pela mamãe e evocado quando ela pedia ajuda para interceder “pelo seu bem”. Devo ter me tornado uma chata.

Hoje posso te entender. Que opção você tinha senão se afastar? Ao longo dos anos, você foi sendo cada vez menos valorizado por nós. Criticávamos suas amizades, sua forma de filantropia, sua ideias, sua falta de atuação na nossa empresa. Não enxergávamos mais sua cultura, seu interesse pelo mundo, seu senso de humor, seu charme. Devia ser insuportável se ver refletido nesse espelho deformador que nós nos tornamos. Era inevitável que, quando você encontrava olhares admiradores em outras pessoas, era com essas que queria conviver. Era questão de sobrevivência.

Sinto tanto por ter perdido de vista quem você era... Eu sem seu olhar sempre encantado e amoroso e minhas filhotas sem o avô bacanérrimo que você era e seria cada vez mais para elas. Mamãe está bem, agora tem um namorado que supre sua necessidade de se sentir querida e necessária. Mas sempre que estou com eles, por comparação (é inevitável), me dou conta do quão especial você era, que cara interessante, sedutor, divertido, cheio de energia de vida. Por que isso tudo ficou embaçado na relação familiar?

Não sei direito como esses últimos anos poderiam ter sido diferentes. É fácil enxergar isso tudo de longe, mas na embolação do dia a dia não era possível. Se é algum consolo, eu me reconciliei internamente com você. Entendi o sentido do “Perdoa-me por me traíres”, e isso me ajuda a construir uma relação saudável em meu casamento. Guardo o seu melhor em mim com a maior alegria e orgulho, e te mantenho vivo para suas netas em histórias, valores e gosto pela vida.

Te amo, pai.

Lygia

Bob Wolfenson/Acervo Trip

Bárbara Paz

 

De: Bárbara Paz

Para: Minhas três irmãs

Quando eu me despedia da cidade, escutei vocês me chamando para um último abraço. Mas percebi que era um só ruído dentro da minha cabeça e as lágrimas escorreram pelo rosto.

A única coisa que tinha sobrado após a morte da mãe foram biscoitos e salsichas. Foi o que comi durante o mês que antecedeu a minha viagem. Sabendo que ela seria sem retorno e duraria 18 horas, comecei a economizar os biscoitos ao longo dos dias.

Hoje eu perdoo você, minha irmã número três, por ter trancado o armário e não ter dividido a comida. Sei que não foi de propósito, você não sabia o que significava a minha viagem. Perdoo vocês três, minhas irmãs, por não me ligarem e não me procurarem depois que a mamãe se foi. Vocês esperavam isso desde o meu nascimento. Quando eu nasci, ela caiu enferma e assim ficou durante os 17 anos até sua partida. Perdoo vocês por terem se desligado de mim, não trazerem comida, não se preocuparem com aquela que vivia com medo e desesperada naquela casa vazia.

Eu perdoo vocês por não terem me dado esse último abraço. Sei que vocês tinham família, filhos e coisas mais importantes a fazer e precisavam vender a casa para dividir a herança. Eu era apenas uma adolescente de 17 anos que passou a vida cuidando dessa mãe enferma. Sempre demonstrei ser uma criança forte, independente, mas, no fundo, eu era apenas uma criança, que também perdeu o pai muito cedo.

Eu perdoo vocês porque hoje, passados 20 anos, aprendi que cada um precisa construir sua própria história. Pais, irmãs e outros familiares podem servir de apoio, mas, quando não os temos, temos a nós mesmos. Ser jogada no mundo fez de mim um ser humano melhor. Me tornei uma gladiadora, lutando sempre pela minha sobrevivência. Sei que vocês também estão na luta.

Beijo da caçula,

Barbinha

Rui Mendes para Rolling Stone

Ricardo*

 

De: Ricardo*

Para: Minha avó e todos os que foram vítimas da violência dos Carecas do ABC

Nos anos 80, fui integrante da tão falada gangue Carecas do ABC. Em quantos cidadãos eu bati? Trezentos? Não sei, não tenho ideia. Foram sete anos nessa vida, brigando 250 vezes por ano. A gente andava com machadinha, soco-inglês, faca. Mas as brigas geralmente eram de punho mesmo, coisa de homem. Todo dia eu treinava boxe, jiu-jítsu e caratê.

Todo mundo associa os Carecas do ABC aos skinheads. Mentira. Eles eram nossos piores inimigos. A gente era nacionalista. No meio dos dois grupos rivais havia preto, nordestino. Só não havia gay porque a gente dizia que só brigava com macho. O que diferenciava era a suástica que os skins usavam, o visual era o mesmo. Duas matilhas de pit-bull prontas pro ataque.

Skinheads, punks, góticos, rockabillies, uns sujeitos que usavam uma cruz de ponta-cabeça e eram chamados de anticristo... Nosso foco era bater em todo mundo. Eu chegava em casa com a roupa rasgada, cheia de sangue. Quando vi, tinha perdido minha personalidade. Me tornei um animal.

A briga que mais me marcou foi num show de rock na rua promovido pela prefeitura de Sandro André. Veio um garoto normal, bem-arrumadinho, totalmente pacífico. Até tentei salvar e disse: “Meu, corre daqui, você vai apanhar”. Não deu tempo. Quatro ou cinco batendo num garoto que você via que não era da violência. Aquilo começou a fazer minha consciência pesar. Mas o movimento era difícil de entrar e quase impossível de sair.

Naquela época, minha mãe, meu pai e meus irmãos já tinham medo de mim. Eu fui criado pela minha avó e ela ficou sabendo que o primeiro neto dela, o que ela mais gostava, tinha virado um marginal. Então veio me ver em Santo André e falou: “Arruma suas coisas que eu vou te levar embora”. Aquilo me doeu. Eu tinha tanto amor por ela que não soube ser aquele monstro de sempre. Na hora a voz não saiu, a perna tremeu. Voltei pra morar na zona norte com a minha avó, que foi me lapidando pra me tornar um cara 100%. Quero pedir desculpas a ela e a toda a geração dos anos 80 que bateu de frente com os Carecas do ABC.

Ricardo

*A pedido dele, não divulgamos seu sobrenome.

 

Valesca Popozuda

 

De: Valesca Popozuda

Para: Papa Francisco e Igreja Católica

Venho me desculpar com toda a Igreja Católica. No dia do conclave, fiz uma brincadeira no Twitter falando sobre a fumaça preta que era lançada. Sabia que fazia parte de uma cerimônia tradicional, porém fiz uma piada que em minutos foi reproduzida e muitos riram. Quero também pedir perdão ao papa, quem sabe pessoalmente, quando ele vier ao Rio, pois as músicas que eu canto contêm muito palavrão. Eu uso roupas muito curtas nos shows e eu sei que isso é errado segundo a Igreja. Mas faço isso como um trabalho e, se até Maria Madalena foi perdoada, eu espero ser também.

Valesca

Carol Guedes/Folha Press

Rabino Henry Sobel

Rabino Henry Sobel


De: Rabino Henry Sobel

Para: Leitores da Trip

Quando me tornei rabino, eu era muito intolerante comigo mesmo. O autojulgamento era severo e o sentimento de culpa, duradouro. Até que me conscientizei de que o rabino também é um ser humano e, portanto, falível. Sofri na pele as consequências de um erro cometido em 2007 nos EUA, que é de conhecimento de todos. Até hoje eu trabalho internamente para compreender e aceitar o meu ato. Eu tento me perdoar, mas não é fácil.

Perdoar não é esquecer. Se fosse, não haveria mérito no perdão. Perdoar é reconhecer a falta cometida, analisar a situação e desculpar conscientemente o culpado. Sem penalidades, sem recriminações, sem ares de superioridade. Perdoar é o ato de reconstruir o relacionamento original, uma tentativa de recuperar a “inteireza inicial” e a determinação de procurar um começo mais bem-sucedido.

Rabino emérito Henry Sobel

Ai, meu cotovelo!

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Erno/CPDOc JB

Lupicínio Rodrigues, mestre dos mestres quando o assunto é música sobre o amor que se foi

Por que a maioria das músicas de amor é sobre... o fim do amor? Artistas veteranos e da nova geração discutem por que ciúme, brigas e separação estão entre os melhores ingredientes de uma boa canção

Quando Caetano Veloso mostrou, ao violão, uma das músicas que tinha composto para o disco que estava fazendo, Jorge Mautner teve uma crise de choro. Aquela era uma das mais belas canções de amor que já tinha escutado na vida. Gostava principalmente do refrão, quando a melodia ficava mais tranquila e terna, e a voz repetia, num veludo: “Odeio você, odeio você”. Quem narra o episódio é o próprio Caetano – mas Mautner confirma tudo, palavra por palavra. A canção “Odeio” foi gravada no álbum  (2006) e é, desde o nascedouro, um clássico do nosso cancioneiro amoroso. Segundo Mautner, dizer “odeio você” é a maneira mais próxima que há de dizer “amo você”.

m música é assim. Canções de amor são, quase todas, canções de desamor. De fim de caso, de dor de cotovelo, de separação, de traição, de ódio. No Brasil, essa regra é levada à risca desde os primórdios, na Era do Rádio, até a produção mais recente da música pop. “A gente não pode falar em música sem falar em comportamento: o que acontece na sociedade se reflete imediatamente no repertório dos cantores”, diz Rodrigo Faour, autor do livro A vida sexual da MPB.

“Até a década de 60, os papéis masculino e feminino eram muito demarcados. A mulher tinha que servir ao homem. E, como a maior parte das pessoas que escrevia música era homem, tudo era visto sob a ótica deles. Por isso todas as letras falavam de amores fracassados – e esse fracasso era sempre por culpa de uma mulher ingrata”, afirma Faour. “Os seresteiros só amavam as mulheres antes de ter contato real com elas – amavam só uma idealização. Depois de realizado, elas viravam o diabo de saia.”

 

"Eu não quero mais nada, só vingança, vingança, vingança, vingança" Vingança, Lupicínio Rodrigues

 

São dessa época muitas das canções de Lupicínio Rodrigues, que não só assina inúmeras letras sobre a amargura da separação – em geral, amaldiçoando as ingratas que lhe fizeram sofrer – como teria sido o inventor do termo “dor de cotovelo”, em referência aos que cravam os cotovelos em um balcão ou mesa de bar, pedem suas doses e desfiam seu rosário de desilusões. Não surpreende, portanto, que dos dez artistas ouvidos pela Trip para que escolhessem suas músicas de separação preferidas, três tenham votado em criações de Lupe, como era conhecido (veja a lista no fim desta reportagem).

Mas, claro, as mulheres também versavam sobre corações quebrados. Dolores Duran, por exemplo, era amiga próxima de Maysa – a autora de versos de desamor desesperado como os de “Meu mundo caiu”, clássico da fossa nacional. Mas, como aponta Faour, Dolores era, na verdade, “uma mulher alegre que escrevia ‘porrada’, por isso era mais irônica do que a Maysa”. Em seu universo, o amor estava no fim, mas vinha temperado de uma tiração de sarro, em versos do tipo: “Se é por falta de adeus, vá embora desde já” e “Eu desconfio que o nosso caso está na hora de acabar”.

Só no xaveco

Claro que esse combustível – o desamor – era também o que movimentava a música internacional naquele período. A diferença fundamental, no entanto, era que os temas escritos por Cole Porter, Irving Berlin, George e Ira Gershwin e outros nomes essenciais do cancioneiro americano compunham roteiros de peças musicais. Havia conflito amoroso, é claro. Mas o final feliz estava garantido. O Brasil, todavia, não tinha a cultura dos musicais desenvolvida. Nossas canções não falavam sobre personagens, e sim sobre nós mesmos. Serviam para expressar o sofrimento causado por nossas desilusões amorosas. E para buscar uma cura para elas.

A bossa nova chegou para mudar tudo isso. Ou uma boa parte. Em 1958, João Gilberto apareceu com uma maneira leve de interpretar as canções. O repertório escolhido falava de natureza, de amor, de sorriso e de flor. Amparado pela obra de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, João foi o responsável por desfazer um pouco dessa carga dramática.

"O amor na bossa nova é platônico. Ou abstrato: o compositor compara o amor à natureza, ao Rio de Janeiro. Ou é um xaveco”, diz o cantor e compositor Romulo Fróes. “Nesse último caso, a bossa nova só seguiu um caminho que o Noel Rosa já usava. A letra de ‘Três apitos’, por exemplo, é uma cantada explícita que o Noel dá na operária da fábrica. Ele vai pra porta encontrar com ela na saída. Na bossa nova, só muda o cenário do xaveco para o litoral.” Romulo diz que, hoje e sempre, o rescaldo do amor – brigas, ciúme, separação – é a melhor gasolina para a criação artística. “Quando você está amando plenamente, tem mais o que fazer do que ficar inventando canções”, ri.

 

"Estou lhe mostrando a porta da rua pra que você saia sem eu lhe bater" Judiaria, Lupicínio Rodrigues

 

“A bossa nova não mudou só a maneira de tratar o amor – que, de fato, ficou muito mais leve por causa dela. Mas mudou, principalmente, a maneira como esse recado é passado pelo cantor ao público. O estilo dos cantores era bastante diferente antes da transformação que João imprimiu na música brasileira. Eram vozes lindas, mas uma coisa muito pesada. João nos ensinou a amar e sofrer com elegância”, diz Gal Costa. Discípula de João desde a primeira vez que o ouviu no rádio, em 1958, Gal diz que a maneira contida de interpretação fundada na bossa nova não implica nenhuma perda na carga sentimental. Ao contrário, concorda com o dramaturgo Nelson Rodrigues quando ele diz que “a grande dor não se assoa”. Quem sofre mesmo, sofre calado.

"E como o ‘Retrato em branco e preto’ [de Tom Jobim e Chico Buarque] na interpretação do João Gilberto”, Gal compara. “Ali tem uma carga densa e profunda de dor e sofrimento. Mas ele coloca isso de uma forma muito sutil, o que só enriquece a canção. As pessoas não sacam muito por causa do jeito de ele cantar. No princípio, quando a tendência da música de amor era ser trágica, de fim de amor, do cara fodido, achavam até que as músicas que João cantava eram um pouco bobinhas. Mas logo elas se tornaram clássicos.”

“Bom-gostismo”

Clássicos, ao menos entre os universitários e artistas de classe média e alta, tornaram-se sinônimo de bom gosto. Quase tudo o que veio antes da revolução de João passou a ser considerado, imediatamente, cafonice. Coisa de gente velha e ultrapassada. Foi necessário que Caetano Veloso explodisse essa regra. Seu principal manifesto contra o “bom-gostismo” amoroso está no álbum Tropicália (1968). Ali, Caetano reedita “Coração materno”, um dos temas mais trágicos não só do repertório de Vicente Celestino, mas de toda a MPB, em interpretação dramática e derramada. A provocação era evidente.

“Hoje isso nem entra mais em questão”, diz Otto. “E um amor desesperado, como o da Ângela Ro Ro, não

Erno/CPDOc JB

significa que ela não tenha amado. Ao contrário. Ela chupou muito ali antes de tomar o pé na bunda. Valeu a pena. Ela está feliz com cada foda, cada trepada, cada linguada. Não tem essa de música de desamor. É tudo música de amor.” “Exatamente. O desamor também faz parte do amor”, concorda Pélico, cantor e compositor que dedica grande espaço em suas canções para falar de amor . “O natural é compor pela falta. Não ter alguma coisa é que te move – não só nas músicas de amor, mas também nas letras sociais.”

Para quase todo mundo. Não para Milton Nascimento, que, quando crooner, ganhava a vida cantando, em boates de Belo Horizonte, músicas de amor falido, como a audiência preferia. Quando se tornou compositor, no entanto, Milton foi tratar do amor por outros vieses. Suas músicas, em grande parte, falam de amores plenos – e do amor de amigo. “Aprendi com meus pais que existem vários outros tipos de amor e de paixão. Fui criado em um clima de amizade, com todos os meus amigos brincando na sala de casa – coisa que as mães deles não deixavam. Era sempre festa. Quando cresci e saí de casa para trabalhar, continuei procurando por esse tipo de sentimento. E foi essa procura que sempre me movimentou”, diz Milton.

 

"Ela há de rolar como as pedras que rolam na estrada" Vingança, Lupicínio Rodrigues

 

Hoje um artista reconhecido no mundo inteiro, Milton começou a fazer canções a partir de uma sessão de cinema. Morava em Belo Horizonte, meados dos anos 1960, e foi ver Jules e Jim, do diretor francês François Truffaut, com o amigo Márcio Borges. Repetiriam a sessão várias vezes. “Nunca tinha visto uma história de amizade tão bonita. Voltando para casa, já combinei com ele: ‘Vamos fazer música, você vai ser meu parceiro’. Naquele mesmo dia, fizemos três: ‘Passo do amor’ [que, depois, com outra letra, se chamaria ‘Novena’ ], ‘Gira, girou’ e ‘Crença’. Todas por causa daquele filme. Daquela história de amor.” Por acaso ou não, essas três primeiras parcerias de Milton com Márcio contêm a palavra “amor” nas respectivas narrativas. E, em nenhuma delas, o final é exatamente feliz.

Músicos e entendedores do assunto fazem um top 10 “canções de desamor”:

Gal Costa: “Alguém me disse” (Evaldo Gouveia e Jair Amorim)

Milton Nascimento: “Se alguém telefonar” (Jair Amorim e Alcyr Pires Vermelho)

Pélico: “Atiraste uma pedra” (Herivelto Martins e David Nasser)

Otto: “Vingança” (Lupicínio Rodrigues)

Céu: “As canções que você fez pra mim” (Roberto e Erasmo Carlos)

Roberta Martinelli: “Judiaria” (Lupicínio Rodrigues)

Helio Flanders: “Trocando em miúdos” (Francis Hime e Chico Buarque)

Karine Carvalho: “6 minutos” (Otto)

Romulo Fróes: “Pois é” (Tom Jobim e Chico Buarque)

Rodrigo Faour: “Nunca” (Lupicínio Rodrigues)

 

El cuero se va comer

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Despachamos nosso repórter até Pucamayo, nas profundezas da Bolívia, onde, uma vez por ano, mais de 200 comunidades andinas se encontram para dançar, beber e cair na mão (sangue & morte inclusos). Arthur apanhou – mas também bateu

Desacelero meu passo e deslizo meu olhar pelo majestoso horizonte. O cenário do altiplano andino é lunar. Tal deleite me leva a outra dimensão. Uma energia sobrenatural invoca em mim a vontade de caminhar e sigo pela crista da montanha. Hesito e paro um instante. Adiante, avisto uma imensa pirambeira. Sem fôlego, respiro profundamente para alinhar-me novamente. Estou a mais de 3.800 metros de altitude, subindo a ribanceira até o pequeno vilarejo de Pucamayo, um inóspito local (fora de qualquer mapa) ao norte de Oruro e ao sul de Potosí, na Bolívia. O objetivo é gravar um dos nove episódios de Na fé com Arthur Veríssimo, série que protagonizarei no Discovery Channel (mais informações ao fim do texto), na qual me jogarei de cabeça em cerimônias religiosas bizarras espalhadas pelo globo.

Chego de mansinho e sou recebido pelo líder do clã do vilarejo, o guerreiro Jose Cruz. Acompanhado de seu irmão Carlos, traz consigo um punhado de folhas da coca, uma oferenda para este incauto peregrino. Coloco as hojitas com delicadeza entre a bochecha e os dentes. Um caldo doce é destilado em minha boca. O imediato soroche (mal das alturas), que causa estragos a muitos viajantes, é eliminado em um átimo de segundo. Os hermanos Cruz levam-me para conhecer a comunidade e explicam o significado da festa El Tinku e sua relação com Pacha Mama, a Madre Tierra, principal entidade divina dos povos dos Andes.

Nossa conversa é entremeada pelo vai e vem de conselheiros e anciões de Pucamayo. Todos estão possuídos com o advento de El Tinku, que significa “encontro” na língua quéchua e “ataque físico” em ayamara. O ritual sacia a sede de Pacha Mama, serve para agradecer pelas colheitas passadas e solicitar bênçãos para as futuras. Segundo os costumes e tradições, a briga garante o sangue que deve ser derramado como sacrifício e oferenda à Madre Tierra. A devoção é completada com muita música, dança, chicha, álcool, porrada e delírio. Quase necessariamente nessa ordem.

Carlos Cruz apresenta um kit de armas seculares de seu povo, atualmente proibidas no Tinku. Estilingues, boleadeiras, chicotes e outros artefatos belicosos. “Às vezes usamos para derrubar o adversário”, diz Carlos, com um sorisso cabuloso. Um capacete estiloso de couro me chama a atenção. Coloco o casco e o bestial Carlos joga uma pedra em minha cabeça para mostrar a pseudossegurança do capacete. Fico cabreiríssimo com a atitude desmesurada do insano. Jose pede desculpas pela estupidez de seu irmão, que exala tranquilidade. Demência explosiva.

 

Jose, exibindo um olhar de predador, diz que bate sem dó nem piedade em qualquer pessoa que estiver na Praça de Mancha - e que todos correm, sim, risco de vida

 

No dia seguinte, meus tresloucados anfitriões me levam para onde está sendo finalizado o néctar da festa. Uma destilaria artesanal onde é preparada, fermentada e produzida a chicha. A chicha morada é uma bebida fermentada (e bem alcoólica!), à base de milho, canela e outras especiarias. Imensos tachos e caldeirões estão guardados para a festa do Tinku. Estou ressabiado com o que irá acontecer no encontro final, na batalha campal. Como é possível uma festa religiosa, de comunhão com a natureza, no qual o êxtase seja uma luta violenta e sangrenta? Falta de refinamento espiritual ou tradições milenares preservadas na sua forma original?

Jose, exibindo um olhar de predador, diz que bate sem dó nem piedade em qualquer pessoa que estiver na praça de Macha – e que todos correm, sim, risco de vida. Questiono se tudo não é uma desculpa para resolver questões pessoais. Ele ri. E me deixa inquieto, acrescentando que todos sabem que alguém irá morrer na festa. Todo ano é assim.

Peço aos irmãos Cruz para fazerem uma demonstração da luta. Percebo que não existem regras ou limites: os socos são distribuídos de todas as formas e jeitos sem parar. O que vale é nocautear o adversário. Entro para o corpo a corpo e Carlos (a besta) é novamente agressivo além da conta. Estou preparado e me esquivo da violência – antes de vir para a Bolívia, havia feito treinamento de defesa pessoal, muay thai e boxe com meu sensei Marcão Zakir. Percebi que a porradaria, virilidade e barbárie seriam o tom da festa do El Tinku.

As atividades se aceleram e incendeiam. Observo o zum-zum-zum enquanto um casal de ovelhas é sacrificado com brutalidade e alegria ao mesmo tempo. O ambiente é de extrema embriaguez. Repentinamente, uma dupla de encachaçados tenta pintar meu rosto com o sangue dos animais. Saio mais rápido que o Papa-Léguas e sumo de cena.

Acordo em estado de alerta e sigo para Pucamayo. Hoje é o dia D. No vilarejo, Jose Cruz e o conselho dos anciões me oferecem o figurino completo de guerreiro, incluindo capacete, adereços, penacho e flauta andina. Estou vestido a caráter e participo dos rituais preliminares. Todos se divertem, fazem troças, bebem enlouquecidamente e dançam. Na muvuca, um grupo de fanfarrões gruda na minha jugular. Recebo tapinhas, tapões, chutes e provocações contínuas, até que dois tipos resolvem me açoitar. Perco o controle e passo uma chinela, uma rasteira, em um dos sem noção. Ele se estatela no solo sagrado. No ato levanto o tiozinho e mudo a vibração dando abraços e saindo de fininho. Por incrível que pareça, havia mergulhado no atalho da violência. Percebi que estava sendo contaminado pelo vírus da maldade. Clamo por Gandhi, por ahimsa (não violência). Mea-culpa. Reconheço minha estupidez entrando na vala da ignorância. 

 

A porradaria se instala. Míseros 32 policiais formam a equipe de contenção do ímpeto da crueldade de milhares de pessoas

 

Minha reflexão serve apenas para mim, pois o clã da família Cruz continua se encharcando de chicha e de singani, uma bebida ainda mais explosiva. Iniciamos nossa descida marchando ao som do jula-jula com charangos e flautas. Por todas as montanhas e desfiladeiros, mais de 200 comunidades fluem em legiões de guerreiros ávidos pela batalha na praça de Macha. Trotamos unidos por 5 quilômetros até o epicentro do holocausto. Milhares de indígenas com suas roupas coloridíssimas bailam e cantam hinos em louvor a Pacha Mama. Um corre-corre frenético despenca pela ruela ao lado da praça. Policiais lançam bombas de gás lacrimogêneo para dissipar uma briga coletiva que se inicia. Fico grogue e com os olhos marejados. Ao lado da igreja, policiais tentam organizar o caos das primeiras brigas individuais. Na base do chicote e do empurra-empurra, montam um ringue com a massa humana. A porradaria se instala.

Míseros 32 policiais formam a equipe de contenção do ímpeto da crueldade de milhares de pessoas. Vejo Jose Cruz distribuindo socos, cotoveladas e pernadas. Como uma arma letal, ele derruba o adversário e salta do ringue no encalço de outro guerreiro. Os policiais não conseguem acalmar a multidão. Um grupo de bêbados chuta um homem que está estatelado no chão, sangrando copiosamente. A confusão toma uma escala inimaginável. Policiais lançam outra bomba de gás lacrimogêneo. Os índios se enfurecem e ficam ainda mais agressivos.

Sou alvo fácil para as comunidades que avançam por todos os quadrantes da praça. Corro para a delegacia e me dispo das roupas e do capacete. Um policial com lágrimas nos olhos me diz que não dá mais para controlar. Turistas, crianças e autoridades assistem às cenas sem se incomodar. Vibram com o sangue espirrando dos rostos. Nenhum local é seguro. Um turista toma uma voadora e tomba inconsciente.

Sim, violência gera violência. Pra que isso? Tanto sangue e raiva paralisam a mim e à equipe. A única certeza que tenho é que esta briga não é minha. Pacha Mama, para que tanta selvageria?


O homem que não sentia dor

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Dezoito anos depois da misteriosa morte de Marcelo Behring, Trip tenta entender os conflitos de um dos maiores lutadores brasileiros de todos os tempos. Entre eles, a luta travada dentro de sua cabeça: a do poeta, boêmio e amoroso contra o pitbull que parecia estar sempre pronto para matar ou morrer

Aquele bebê gordinho, de pernas roliças, logo virou a grande atração nas reuniões de família. Como era possível ele cair no chão, bater com a cabeça ou dar uma topada e continuar correndo como se nada tivesse acontecido? Choro, então, nem pensar. O que, no início, era engraçado depois virou preocupação. O pai começou a achar que ele sofria daquela doença em que as pessoas não sentem dor, a síndrome de Riley-Day. Só quando entrou na aula de jiu-jítsu, aos 4 anos, o pequeno Marcelo deu sinais de que poderia, sim, sentir dor. Mas para isso o adversário precisava se esforçar bastante. “Levei o meu filho para gastar energia no tatame, mas, sem querer, ele machucava as outras crianças. O professor chegou a me pedir pra deixá-lo em casa por um tempo”, conta o pai, Flávio Behring, hoje um dos mestres de jiu-jítsu mais graduados do mundo.

Só que Marcelo continuou frequentando as aulas, sagrou-se campeão carioca várias vezes e até morrer, aos 30 anos, foi um dos lutadores mais temidos do Brasil. Durante anos, foi uma espécie de “controle de qualidade” de seu grande mestre Rickson Gracie. Se alguém ousava desafiar o número um da família Gracie, tinha que passar por Marcelo primeiro. Só assim o desafiante seria considerado digno de uma chance contra Rickson. “Além de lutador fantástico, o Marcelo tinha o nosso espírito guerreiro, não levava desaforo pra casa. Era como se fosse do nosso sangue”, afirma Róbson Gracie, 77 anos, hoje o primogênito da lendária família que abrasileirou o jiu-jítsu japonês e o difundiu pelo planeta. Talvez por isso Marcelo seja um personagem cultuado não só nos tatames, mas por todo mundo que gosta de histórias de valentia. Foi protagonista num tempo em que as diferenças eram resolvidas no braço.

Apesar dos 26 anos dedicados ao jiu-jítsu, a luta mais famosa da vida de Marcelo Behring foi no vale-tudo, essa modalidade que hoje atende pelo pomposo nome de MMA (artes marciais mistas, na sigla em inglês). No dia 30 de abril de 1984, o Maracanãzinho estava lotado para o primeiro desafio entre representantes do jiu-jítsu e do muay thai (boxe tailandês). Antes da história, porém, um prólogo: um ano antes, um grupo liderado por Gracies invadiu a academia Naja, no bairro do Largo do Machado, zona sul do Rio. Eles estavam em busca do lutador de muay thai Mário Dumar, que dias antes havia dado um soco em Charles Gracie, filho de Róbson, não muito longe da academia. O pau comeu dentro da Naja e o resultado da rixa foi um desafio de vale-tudo para decidir que arte marcial era a melhor. Um dos donos da Naja, Flávio Molina, queria lutar contra um Gracie, mas a família achou que ele só merecia enfrentar um discípulo – um que parecia ter o sangue deles. Marcelo bateu no adversário sem piedade. Em certo momento, o técnico de Molina jogou a toalha, num sinal de desistência, mas o árbitro da luta pegou-a no chão, enxugou o próprio suor e a arremessou para fora do ringue. Tratava-se de Hélio Vígio, ex-delegado de polícia e também um discípulo ortodoxo dos Gracies.

“Cupim de ferro”

Com a reputação de casca-grossa garantida no Rio de Janeiro, Marcelo foi dar vazão ao seu espírito inquieto fora do Brasil. Como o surf era sua segunda paixão, foi atrás das melhores ondas do planeta. Na Indonésia, impressionou os nativos quando se machucou gravemente numa barreira de corais. Suas costas ficaram em carne viva, mas ele não se queixava de dor. Foi tratado apenas com plantas da região. No Havaí, encarou os black trunks, os temidos surfistas locais, e virou amigo do bicampeão mundial de surf Tom Carroll. Na Austrália, tentou difundir o jiu-jítsu através de desafios contra adeptos de outras lutas, assim como Hélio Gracie fez no Brasil e Rorion Gracie, o criador do UFC, fez nos EUA. “Ele ficava procurando os caras mais fortões da cidade para desafiá-los. Algumas dessas lutas saíram até nos jornais de lá”, conta o pai.

 

Era um cara carismático, que agradava sem se esforçar. Sempre fez sucesso entre as mulheres. Namorou com beldades como Paula Burlamaqui

 

Quando voltou ao Brasil, no fim dos anos 80, Marcelo abriu uma academia em São Paulo e ajudou a popularizar o jiu-jítsu na capital paulista. Mas ele não se afastou dos amigos no Rio de Janeiro, onde a rivalidade entre o jiu-jítsu e outras lutas em pé estava cada vez mais acirrada. Era uma época de invasão de academias e de duelos a portas fechadas agendados pelos líderes dos dois grupos. “Para o Marcelo, a amizade era a coisa mais importante do mundo. Ele não pensava duas vezes antes de comprar a briga de um amigo”, relembra um deles, Amaury Bittetti.

Em 1991, a turma da luta livre invadiu um torneio de jiu-jítsu na Urca. O episódio poderia ter terminado em pancadaria, mas eles chegaram à conclusão de que valia mais a pena decidir tudo, de novo, num desafio de valetudo. Ali mesmo ficou decidido que Marcelo faria a luta principal da noite contra Hugo Duarte, um ex-segurança de boate conhecido como o “General da Luta Livre”. Hugo é o tal grandalhão que briga com Rickson na Praia do Pepê, num dos vídeos de luta de maior sucesso do YouTube no Brasil (http://bit.ly/14hY6LW).

Dias antes do vale-tudo no Grajaú Country Clube, que teria transmissão da TV Globo, Marcelo machucou o cotovelo. “Ele ficou arrasado”, lembra o amigo e campeão mundial de jiu-jítsu Fábio Gurgel, que naquela noite derrotou Denilson Maia. Hugo venceu por W.O. e, em cima do ringue, desafiou Marcelo mais uma vez. Durante anos, os dois se provocaram, trocaram insultos pela imprensa, mas o esperado duelo nunca aconteceu. “Chegamos a marcar uma briga em frente ao Bar Clipper, no Leblon, mas ele não apareceu. Não era nada pessoal. A gente estava apenas defendendo a nossa honra e a nossa arte marcial”, diz Hugo, hoje dono de uma academia no Flamengo.

 

Marcelo foi encontrado no porta-malas de um carro estacionado na Ladeira dos Tabajaras, na entrada de uma das favelas mais perigosas de Copacabana. Tinha uma bala alojada no crânio

 

Hugo parece mesmo falar sem raiva ou ressentimento. Marcelo era um cara carismático, que agradava sem se esforçar. Sempre fez sucesso entre as mulheres. Namorou com beldades como a atriz Paula Burlamaqui, na época conhecida como a Garota do Fantástico. Entrou de vez na família Gracie ao se casar com uma filha de Carlos, Kirla, com quem teve os filhos Kywan e Kyron. Seu desapego a bens materiais se tornou folclórico. Não ligava pra dinheiro – nem pro dele nem pro dos outros. E gostava de distribuir roupas – a dele e a dos outros. “Quando a gente morava junto, cheguei em casa um dia e os nossos armários estavam vazios. Fui reclamar com o Marcelo, mas ele disse que a gente não precisava daquilo tudo. Nem deu pra ficar chateado por muito tempo”, lembra Gurgel. Ganhou o apelido de Cupim de Ferro porque seus carros nunca duravam muito tempo. Às vezes desaparecia por dois, três dias e voltava com o carro semidestruído.

Hiperativo?

Os sumiços começaram a perder a graça quando a família e os amigos descobriram que Marcelo estava usando drogas. “Meu filho confiava cegamente nos amigos, mas não se deu conta de que alguns não queriam o bem dele”, diz Flávio. Um dos maiores lutadores de vale-tudo nas décadas de 50 e 60, o psicólogo João Alberto Barreto acredita que Marcelo sofria de hiperatividade numa época em que pouco se falava do transtorno. “O Marcelo tinha um grande coração mas, como qualquer hiperativo, precisava muito de controle e de medicamentos. Ele não tinha medo de nada”, afirma João Alberto, o tal professor de jiu-jítsu que pediu a Flávio para tirar o filho das aulas por um tempo. Em 1994, Marcelo chegou a ser internado numa clínica de desintoxicação, mas não deu muito certo. A cada crise, afastava-se mais dos tatames. “O jiu-jítsu dá uma sensação de invencibilidade que fez o Marcelo acreditar que estava no controle da situação. Mas não estava”, diz Gurgel.

No início de 1995, Marcelo desapareceu – e não foi por dois ou três dias, como de hábito. Quando completou dois meses sem dar notícias, Trip publicou aquela que seria sua última entrevista, concedida no ano anterior (http://bit.ly/14hZtdB). Nela, falava do sonho de lutar vale-tudo profissional (o UFC era um bebê recém-nascido nos EUA) e de outros planos para o futuro. “Atualmente, estou querendo cantar e compor, por incrível que pareça. Talvez ser piloto e correr de carro. Espero que eu tenha tempo pra tudo isso”, disse.

O corpo de Marcelo foi encontrado no porta-malas de um carro estacionado na Ladeira dos Tabajaras, na entrada de uma das favelas mais perigosas de Copacabana. Tinha uma bala alojada no crânio. Acreditase que tenha sido vítima de traficantes. Até hoje, os amigos gostam de imaginar como Marcelo se encaixaria neste mundo em que se luta para ganhar dinheiro e não para defender a própria honra.

*Fellipe Awi é jornalista da TV Globo e autor do livro Filho teu não foge à luta (Ed. Intrínseca)

Doce bárbaro

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Murilo Meirelles

Ele lutou contra a pobreza, o preconceito explícito e o velado, a homofobia e, hoje, como deputado federal, é o maior oponente dos felicianos da política brasileira. Dono de uma notável capacidade de manter a elegância, a coerência e a verve mesmo diante de adversários da pior espécie e sob pressão extrema, Jean Wyllys reflete sobre a briga de viver e revela, em texto exclusivo para a Trip, sua arma mais poderosa: o amor

Nascer – vir a este mundo – é ser convidado para uma guerra perene. E o termo dessa guerra é sempre a morte, não importa qual seja seu tamanho (há guerras tão curtas quanto a morte de um bebê prematuro!). Mas, até que a guerra se conclua mais cedo ou mais tarde, ela se desdobra em conflitos, lutas ou batalhas. É de batalhas que se vive a vida, diz meu conterrâneo Raul Seixas na bela balada “Tente outra vez”. Viver em sociedade é, portanto, estar permanentemente em conflito, só ou acompanhado, por ou contra alguém ou algo (pessoas, instituições, bens materiais ou imateriais, valores, ideias, a vida e a morte em si mesmas).

E, mesmo para aquele ou aquela que se imagina ou se comporta como uma ilha, alheia ao continente de pessoas vivendo em sociedade, a vida continua sendo um suceder de batalhas que se desdobram dentro de si mesmo; afinal, desde Freud (e, antes dele, graças às filosofias orientais milenares e à interpretação de Santo Agostinho para as Sagradas Escrituras), sabemos que temos adversários ou inimigos interiores e que nosso eu, subjetividade ou ego é sempre o resultado de uma guerra interna entre o desejo inconsciente e amoral e a vontade consciente e moral. Logo, nenhum ser humano que vive está fora de batalha.

Sim, há pessoas como eu que não têm apreço algum pela violência física e jamais se envolveram numa troca de socos e pontapés com algum adversário ou oponente, por qualquer motivo que fosse. Mas ter aversão consciente a essa manifestação dura e talvez letal do conflito não quer dizer que não nos engajemos em outras formas de conflito ou que a violência recalcada – portanto, inconsciente – não irrompa um dia ou não se manifeste em doenças psicossomáticas (violências da psique contra o próprio corpo). E evitar a manifestação dura do conflito não quer dizer que estejamos poupando nosso oponente do sofrimento, da dor ou da morte: palavras podem ser armas letais!

 

“O amor ao outro - a ética por excelência - é o que pode manter qualquer conflito no âmbito das palavras; é o que pode mediá-lo de modo que não resulte na paz dos cemitérios. É a ética que pode nos levar a respeitar os direitos humanos dos inimigos e infames mesmo quando estão cumprindo penas por delitos”

 

Ao contrário do que diz o verso de Carlos Drummond de Andrade, lutar com palavras não é uma luta vã. Nas batalhas políticas e legislativas que venho travando desde que me elegi deputado federal, o meu arsenal é composto basicamente de palavras – das palavras ditas no Parlamento às palavras escritas nos projetos de lei. As palavras transformam o mundo e as pessoas. Se, por um lado, elas machucam e humilham, por outro, elas salvam, curam e devolvem a dignidade (a substituição da palavra “aidético”, uma arma mortífera, pela expressão respeitosa e solidária “pessoa com HIV” é só um exemplo banal dessa ambivalência das palavras nos conflitos em que nos envolvemos mal rompe a manhã).

Por isso, são sempre preferíveis as palavras como armas às armas de fogo ou armas brancas, ainda que Nietzsche nos lembre, com razão, que o excesso de palavras enfraquece o impulso de vida. Só lutei sem

Murilo Meirelles

palavras quando ainda não falava; quando ainda não havia me apropriado delas. Com 1 ano e pouco de existência, lutei com choro fraco pela minha vida, que a desnutrição e a desidratação, muito comuns em ambientes de extrema pobreza, queriam levar. Claro que eu não teria vencido essa batalha não fossem minha mãe e meu pai, que pediram ajuda a outros em condições de ajudar – o que me faz lembrar de que, sozinhos, jamais venceremos certas batalhas.

Mas desde que me apropriei da palavra, ela tem sido a minha arma nos conflitos em que me envolvi: da luta para escapar da pobreza por meio da educação pública e do trabalho honesto até a luta para me afirmar como figura de prestígio na mídia, passando pelo enfrentamento da homofobia para afirmar, com orgulho, minha orientação sexual. Jamais dei um soco ou um pontapé em alguém, embora certa vez, aos 12 anos, eu tenha levado um soco de um desconhecido na rua pelo simples fato de ele ter me percebido como um homossexual. Alguma coisa em minha psique me impede de agredir alguém fisicamente. É como se, na hora H da agressão física, a dor do outro, seu sofrimento futuro, me impedisse.

“All you need is love”

Muita gente me questiona como consigo ser sereno nas batalhas que travo; como consigo ficar apenas nas palavras contundentes, mas sempre respeitosas, sem partir para as vias de fato contra os que me insultam... Não tenho uma resposta precisa a esse questionamento. Posso garantir que minha atitude não é produto de ioga nem de psicanálise, pois jamais recorri a essas terapias. Mas ela talvez seja fruto das marcas do cristianismo em meu caráter, da imitação de Jesus Cristo. Com Ele, aprendi a ser um doce bárbaro: oferecer a outra face diante da violência física do oponente e atacá-lo com a violência das palavras, das metáforas, das parábolas; com Ele, aprendi a ter consciência do conflito e a aceitar o fato de que ele é inevitável, o que leva qualquer pessoa de bom senso a estar sempre preparada; com Jesus, aprendi a conjugar inteligência e conhecimento com intuição e amor.

Sou do signo de Peixes, que é também o signo do cristianismo, mas meu ascendente é Aquário, o dono da nova era. Estou, portanto, na fronteira entre o amor e a razão. O amor ao outro – a ética por excelência – é o que pode manter qualquer conflito no âmbito das palavras, é o que pode mediá-lo de modo que não resulte na paz dos cemitérios. Por isso mesmo, os hippies repetiam “faça amor, não faça guerra”. O amor – o outro nome para a ética – torna saudável o conflito, sem o qual não há vida. É ele que pode impedir que joguemos sujo com nossos oponentes, que sejamos desleais e desonestos com eles. É a ética que pode nos levar a respeitar os direitos humanos dos inimigos e infames mesmo quando estão cumprindo penas por delitos. É essa ética, assimilada em meus anos de movimento pastoral, que explica minha postura serena nos conflitos. Só o amor pode fazer, do inevitável clube da luta que é a vida, um lugar também de felicidade. E a felicidade, já diziam Lennon e McCartney, é uma arma quente.

Quem fez isso?

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Colocamos um repórter na cola do Movimento Passe Livre para tentar saber um pouco mais sobre os ativistas que pararam São Paulo e todo o país

Domingo, 23 de junho, primeiro fim de semana após o governador Geraldo Alckmin e o prefeito Fernando Haddad revogarem o aumento de R$ 0,20 nas tarifas do transporte coletivo de São Paulo. Na porta de um centro cultural no bairro do Sumaré, Caio Martins, um dos integrantes do Movimento Passe Livre (MPL), come um pão de queijo, seu almoço naquele dia. Jornalistas insistentes, mas já um tanto cansados, esperam ouvir do rapaz alguma palavra sobre os rumos do grupo disforme que, dias antes, havia catalisado a maior manifestação popular que o Brasil viu desde o impeachment de Collor.

Caio tem 19 anos e é estudante de história na USP. Franzino, usa óculos e parece gostar de manter os cabelos desorganizados. Surpreende-se com a minha chegada. “Não estávamos aguardando jornalistas”, disse. Expliquei que havia visto a chamada para a reunião de apresentação do MPL aos cidadãos na própria página de Facebook do movimento, que já reúne cerca de 280 mil fãs. Ressaltei também que havia dias tentava contato com pelo menos outros seis membros do grupo, sem sucesso. “Recebemos mais de 300 pedidos de entrevistas nesses dias e não temos como falar agora. A gente não esperava que fosse ter essa repercussão”, alegou educadamente, porém desconcertado.

Seus parceiros de movimento zanzavam de um lado para o outro, também sem se identificarem ou falarem com jornalistas. Na maioria, eram jovens, aparentando entre 18 e 25 anos. Não havia nada que os estereotipasse, como cor de pele, estatura ou vestuário. Todos trajavam a camiseta do movimento. Até era possível discernir algumas lideranças, mais pela experiência e pelo traquejo do que por cargos formais.

Em outro dia, por telefone, consegui conversar com outro integrante: Marco Magri, 27 anos, no movimento desde 2006. Segundo o rapaz, que preferiu não informar a sua ocupação, o grupo se organiza organicamente. Há membros mais assíduos e outros com participação esporádica, como o próprio, que diz se envolver mais quando há passeatas. Foi tudo o que consegui tirar dele.

Já nas ruas, encontrei com a ativista Viliane Pinheiro, também pouco disposta a liberar informações. Disse apenas que o grupo conta com cerca de 40 pessoas em São Paulo, mas que abrange outras tantas parcerias flutuantes, sendo difícil mensurar com precisão quantos membros são ao todo. Ela assegurou que o MPL opera sem financiamento externo e depende da venda de suvenires, como camisetas, e doações. Quando preciso, o grupo inclusive se articula para conseguir bancar as fianças de detidos em protestos.

“Uspianos”

É evidente a presença de uma grande parcela de jovens estudantes, muitos deles da USP, como Mayara Vivian, da geografia, e Nina Cappello, do direito, que foram à mídia falar em algumas ocasiões. Mayara, além de estudante, é garçonete no Sabiá, um boteco chique na Vila Madalena. Nina era matriculada na USP de Ribeirão Preto, mas pediu transferência para a unidade paulistana depois que conheceu o pessoal do movimento. “Ela sempre foi envolvida em assembleias, reuniões e movimentos. É muito engajada na causa. Luta e consegue empolgar facilmente qualquer um a também querer participar e lutar por seus direitos”, disse seu primo João Capello, em entrevista ao site Terra.

Além da força estudantil, o MPL conta também com a simpatia de gente como Lúcio Gregori, ex-secretário de Transportes na gestão de Luiza Erundina (1989-1992). Ele chegou a propor a tarifa zero quando estava no governo – o projeto previa a criação de um fundo que recolheria fatias de uma cobrança progressiva no IPTU. A proposta, entretanto, foi derrotada na Câmara Municipal. “A tarifa zero pode ser implementada por diversas formas. Pode ser através de um fundo, como propusemos na gestão Erundina, pode ser através da estatização, pode ser através de modelos mistos. A população tem que exigir do governo que o transporte seja gratuito, pois é um direito. E os governantes, que são os responsáveis pelo orçamento, devem propor uma solução. Dizer que não existe dinheiro para isso é uma mentira”, comentou Gregori, que costuma participar das reuniões do grupo.

Outra voz de apoio é a de Pablo Ortellado, professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da USP, que aderiu à luta pelo passe livre quando viu um embrião do movimento em ação em Florianópolis, há nove anos. “Há mais de dez anos que cidades brasileiras, jovens e estudantes fazem revoltas populares parecidas com as que estamos vendo hoje, demandando redução para as tarifas de transporte. Mas o Estado não incorporou isso à agenda política, se fez de surdo. O sistema político foi rejeitando essas mobilizações porque eram jovens, não tinham ligação com partidos”, acredita. “São jovens, mas se mostraram gigantes da política.”

O MPL nasceu meio soteropolitano, meio manezinho da ilha - foi em Salvador e Florianópolis que ele ensaiou seus primeiros passos. Em 2003, centenas de jovens e trabalhadores protestaram contra um salto no preço da passagem, coincidentemente de R$ 0,20, nos ônibus municipais da capital baiana, movimento que ganhou o nome de Revolta do Buzú. No ano seguinte, foi a vez da cidade do sul, com a Revolta das Catracas, que fechou o acesso à ilha e conseguiu reverter o aumento. Foi a partir das duas experiências que, em 2005, o MPL ganhou contorno nacional, batizado como tal na Plenária Nacional pelo Passe Livre, em Porto Alegre, durante o Fórum Social Mundial.

Rapidamente, o movimento passou a organizar encontros nacionais e formar representações em diversos estados sob a proposta de horizontalidade e apartidarismo, mantendo aproximação com movimentos populares e partidos políticos de esquerda.

“Conheci o Movimento em 2006 através de pessoas ligadas à PUC de São Paulo e à FFLCH (Faculdade Filosofia, Letras e Ciências Humanas) da USP”, conta Maurício Fleury, músico do grupo Bixiga 70. “Esses movimentos foram muito fortes no início do século e foram feitos por estudantes em geral, não apenas da classe média alta, como parte da imprensa tenta tachar. E, mesmo se fosse, isso não tiraria a legitimidade do movimento, que é suprapartidário e até supraideológico, incluindo pessoas que seguem diversas linhas de pensamento, como a marxista e a anarquista”, diz Maurício, que cita o sociólogo e humanista Carlos Moore para explicar que a revolução tem que ser feita por pessoas heterogêneas: “O racismo só vai mudar quando os brancos começarem a lutar contra ele”.

E agora?

Voltemos ao Sumaré. A querela com os jornalistas só foi ter trégua após todos concordarem com a presença da imprensa, sob restrição dela não gravar nada. A reunião findou por reforçar a meta da tarifa zero, que seria desdobrada em uma carta enviada no dia seguinte à presidenta Dilma Rousseff. O texto questionava a mandatária quanto à inclusão do transporte como direito social através da Proposta de Emenda Constitucional 90/2011, que tramita na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados.

Enquanto isso, ainda tentando entender o que é o momento que estão vivendo – assim como todos nós –, os membros do MPL permanecem de olho nas resoluções oficiais e prometem convocar novas ações em prol do objetivo que leva o nome do grupo: a passagem a custo zero. A conferir.

*Colaborou Marcos Diego Nogueira

Sobra dinheiro, falta tudo

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Por que a maior e mais rica cidade do país não consegue resolver seus problemas básicos? Por que tanta gente desiste de fazê-la melhorar?

Imaginemos um dia qualquer em nossas miseráveis vidas paulistanas. Acordamos cedo, tomamos café e saímos para ganhar o troco. Quem não foi abençoado com a definitiva sorte de morar perto do trabalho terá que tourear o trânsito da cidade. De carro, de ônibus, de metrô, de moto ou de bicicleta. E é aí que você começa a ser engolido. O corajoso ciclista será espremido entre carros apressados e, assustado, talvez pule para a calçada, onde perderá o status de oprimido e passará a ter o de opressor. O pedestre, essa espécie que está no último degrau da cadeia ecológica paulistana, tem que andar olhando para os lados para se certificar que pela calçada não vem uma bicicleta ou até uma moto. Enquanto isso, no asfalto a luta é medieval: motos ziguezagueiam para ganhar espaço e tempo, carros buzinam por qualquer coisa, ônibus aceleram sem se preocupar com quem está ao lado. A queima industrial de combustível faz com que a cidade registre 4 mil mortes por ano em decorrência da poluição. Sim, você leu certo: em uma pesquisa sobre o impacto da poluição na saúde pública da capital paulista, o médico Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da USP, concluiu que a maior causa de infartos está associada à poluição do ar e à permanência no trânsito.

Se você conseguiu chegar inteiro ao trabalho, a pressão seguinte é por metas: é preciso produzir, manter a margem de lucro. Com a economia rateando e os cortes de custos ganhando o contorno de uma grande onda no horizonte, o canibalismo corporativo só aumenta. Se, para bater a meta eu precisar passar a perna no colega ao lado, fazer o quê? Na hora do almoço, nem pensar em ir para casa, ou mudar de bairro; o trânsito continua medonho. O jeito é comer qualquer merda por ali. Na volta para casa, é preciso estar atento aos assaltos – já que a violência de fato aumentou: o primeiro trimestre deste ano registrou aumento de 18% no número de homicídios dolosos em relação ao mesmo período de 2012, e depois de 11 anos seguidos de queda a partir do ano 2000.

O que justifica o cotidiano caótico da cidade mais rica do Brasil? É certo que os problemas das metrópoles são muito parecidos, mas será que São Paulo, símbolo de pujança econômica, a cidade “que não pode parar”, não deveria estar alguns passos à frente na resolução de problemas básicos? Para começar a entender, é preciso tocar em dois dos pilares que sustentam o problema: falta de planejamento e desigualdade. “São Paulo sempre contou com pouco planejamento”, diz Paula Miraglia, doutora em antropologia pela Universidade de São Paulo e diretora executiva do Ilanud (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente). “Isso foi determinante para moldá-la como cidade desigual que, a despeito do crescimento e do desenvolvimento recentes, não conseguiu reverter padrões de desigualdade.” Para o psicanalista e professor de filosofia Tales Ab’Saber, a cidade não é capaz de se resolver porque, embora o dinheiro sobre, muita coisa está em falta. “A diferença está na elite que adora andar na rua e de metrô e falar da qualidade do espaço público, mas só quando está em Paris, Barcelona ou Nova York, por exemplo”, diz ele, que cita o Minhocão, nome popular do elevado Costa e Silva, um dos símbolos da São Paulo que deu errado. “Uma diferença estaria em demolir ou reinventar como parque suspenso o Minhocão, contribuição da ditadura que sacrificou a vida de três bairros excelentes aos carros.” Ab’Saber lembra que a Cidade do México, que tem 9 milhões de habitantes, começou o seu metrô ao mesmo tempo que São Paulo, onde moram 11 milhões de almas, e que a Cidade do México tem 210 quilômetros de linhas contra apenas 70 quilômetros que a capital paulista construiu no mesmo período. Para ele, esse tipo de absurdo explica o atual estado das coisas, especialmente se levarmos em conta que o PIB de São Paulo (cerca de R$ 450 bilhões) é o 360 maior do mundo, segundo análise da Fecomercio - SP – à frente de países como Portugal, por exemplo.

Abraçar as diferenças

Figuras públicas como Antanas Mockus e Enrique Penalosa, dois dos ex-prefeitos de Bogotá, que reverteram índices de criminalidade alarmantes, entre outros problemas tão espinhosos quanto os nossos, são unânimes em dizer que a chave do problema está na própria cidade. “Uma cidade só se faz com gente na rua. Mas as pessoas precisam se sentir seguras nas ruas, e o papel do Estado é estar presente em todos os cantos da cidade. Que não haja rincões à margem”, declarou Penalosa em entrevista recente ao jornal O Estado de São Paulo. Só que, para escapar da sensação de insegurança das ruas, a classe média paulistana tomou o caminho contrário e se escondeu em condomínios. “Quando pessoas descrevem orgulhosas a vida num condomínio fechado (“eu nem preciso sair, posso fazer tudo aqui”) elas estão renunciando à cidade. Além de uma vida opaca frente a tudo que São Paulo pode oferecer, estão anunciando que não acreditam ou não estão dispostas a participar da transformação”, diz Paula Miraglia.

Nesse sentido, o projeto tombado do edifício Copan, de Oscar Niemeyer, seria a representação do que a cidade precisa para abraçar igualitariamente todos aqueles que nela vivem: trabalhadores, artistas, empresários, estudantes, profissionais autônomos. Como defende o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, o Copan não interrompe a cidade como fazem as muralhas de concreto. Ao permitir que haja circulação entre seus pilares térreos, com lojas e cafés, o edifício se integra à cidade e convida à frequência. Dentro dele, quitinetes, apartamentos de tamanho médio e outros de 200 metros quadrados permitem a convivência de classes, mistura social imprescindível para que a cidade perca o status de caótica. “A sociedade brasileira sempre foi desigual e acabou instituindo o privilégio como regra”, diz Miraglia. “Em São Paulo, a disparidade entre o centro e suas periferias é enorme em termos de qualidade de vida. Ainda hoje as periferias são vitimizadas pela violência e é uma ilusão achar que sem tornar a cidade menos desigual seremos capazes de ter uma cidade segura.”

Em Bogotá, Penalosa entendeu a questão e construiu nas zonas mais marginais da cidade colégios, jardins, bibliotecas, programas de nutrição. “Queríamos mostrar respeito pela dignidade humana. Se o Estado não respeita a vida humana, por que os bandidos o fariam?” E, se a solução passa pela ocupação da cidade e pela mistura nas ruas, estamos andando em sentido contrário faz tempo. “Em certo momento dos anos 1990 os ricos paulistanos inventaram o carro blindado”, diz Ab’Saber. Hoje, blindam-se carros no Brasil inteiro, mas São Paulo ainda concentra 71% dessas blindagens, com uma média de 200 veículos por dia. 

Ele segue: “As pessoas estão sendo assassina­das nas ruas por um celular. Nada ocorreu à elite sobre como lidar com a expansão da cultura do consumo exibido que promove, e o fato de que a maioria dos salários dos pobres na cidade, quando eles têm salários, vai até R$ 700. Esse tipo de exploração violentíssima só poderia funcionar se houvesse compensações de espaço público universal: praças, parques, museus, centros culturais, atividades para o espírito e para o corpo, como ocorre em qualquer cidade boa do mundo”.

Mas o Brasil tem pouca tradição de uso dos espaços públicos. “O que temos visto recentemente é que, na medida em que o poder público disponibiliza bons espaços, eles são imediatamente ocupados”, diz Paula Miraglia. “A praça Roosevelt é exemplar. Sua ocupação depois da reforma foi objeto de disputa entre skatistas, moradores e outros usuários.” Ao contrário de achar ruim, a antropóloga acredita que o caminho é por aí: “Vejo o embate por aquele espaço como algo positivo. Significa que ele é desejado. O que precisamos é praticar mais esse tipo de disputa para poder fazê-la de forma produtiva”. Seu colega José Guilherme Magnani, do núcleo de antropologia da Universidade de São Paulo, enxerga um maior interesse da classe média pelo público: “Há engajamento, como na mobilização contra reformas que não respeitavam normas do tombamento do Parque da Água Branca, ou o movimento pelo Cine Belas Artes etc. E aí estão as recentes manifestações do Movimento Passe Livre”.

Alimentar a utopia

Fora o isolamento a que se entregou a classe dominante, ainda temos o “cada um por si”, esse estado de espírito coletivo que parece ser a ordem das grandes cidades – e São Paulo não foge à regra. “Ideias como ‘eu pago meus impostos, portanto já fiz a minha parte’, ou desabafos do tipo ‘São Paulo não dá mais’ são uma versão perigosa desse individualismo. É como se, ao se expressar dessa forma, você não tivesse responsabilidade pela realidade e, o pior, não enxergasse em si potencial para mudar o cenário”, diz Miraglia. Quando nem o carro blindado deu mais jeito, quem teve bolso se mandou para o céu. “É um escândalo que São Paulo tenha mais helicópteros voan­do do que Nova York”, diz Ab’Saber (a frota de helicópteros da cidade, estimada em 600 aero­naves, é a maior do mundo, à frente de Nova York e Tóquio). Miraglia concorda. “A cidade sempre será campo de disputas, o problema é que numa sociedade desigual como a nossa essa disputa já começa injustamente e as pessoas bem-sucedidas precisam entender que têm uma vantagem descomunal.”

Para resolver tanta coisa, seria necessário entender a violência para além da criminalidade e pensar nela, como pede a filósofa Marilena Chaui, como “qualquer violação física ou psíquica feita contra a natureza humana”. Nesse sentido, é vítima da violência da cidade tanto o empresário assaltado com uma arma na cabeça quanto a empregada doméstica que enfrenta, só de ida, 3 horas em transportes públicos de qualidade pornográfica para chegar ao trabalho. É entender que violência é também ir para a rua “contra a corrupção”, e falsificar a carteirinha de estudante. Mas há saída. Ab’Saber diz que existem hoje importantes projetos de urbanismo que pretendem revitalizar áreas da cidade – ele cita, por exemplo, o projeto de arquitetura que vai transformar o degradado Parque Dom Pedro numa espécie de Aterro do Flamengo. “Resolver esse pepino, em um ponto vital para a cidade, como esses arquitetos fizeram, seria uma injeção de esperança imensa sobre a vida na cidade.” (O projeto, criado pelo escritório Una, já foi aprovado, mas segue em tramitação na prefeitura). Para Paula Miraglia, a solução passa pela subversão completa da relação entre o centro e a periferia, ainda pautada pelo abismo entre esses mundos. “Isso significa fazer com que o que acontece em Cidade Tiradentes interesse ao morador de Higienópolis, e que um show no Ibirapuera seja frequentado pelo morador do Jardim Ângela; significa alimentar a utopia de que vivemos todos em uma mesma cidade.”

André Lira Rodrigues (Pinho), 17 anos Pinho tinha 8 anos quando foi convidado pelo pai, ao voltar das férias no interior, a retratar a cidade de São Paulo, para onde estava indo. Portador de síndrome de Down e com a fala comprometida, ele explicou, com o desenho, por que não gostaria de voltar à cidade. Hoje, adolescente, Pinho balança a cabeça positivamente quando perguntado se é feliz em São Paulo.

 
Pablo Saborido // câmera escura É fotógrafo argentino e assina o ensaio das imagens invertidas da cidade de São Paulo que ilustram esta matéria. Para chegar à inversão, o fotógrafo forra por completo com tecidos o espaço que deseja clicar e então abre um pequeno furo em uma parede do tecido. É nesse instante que a cidade invade a parede, só que de ponta-cabeça. "Câmera escura" convida à reflexão: se o que está fora está agora dentro, o que está dentro deve estar em algum lugar lá fora. Se ônibus passeiam pelas camas e as nuvens dançam com o chão de madeira, o que impede que a cama vá para o lugar dos ônibus e que fotógrafos dancem nas nuvens antes de o quarto ficar novamente escuro?

Mangue Town

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No coração da Vila Madalena, um dos bairros mais valorizados de São Paulo, uma favela resiste desde os anos 60 e é exemplo de uma rara convivência entre diferentes classes sociais na cidade

No alto do morro, da janela de sua casa, Manuela Maria Ribeiro tem uma das vistas mais espetaculares da Vila Madalena, zona oeste de São Paulo. Sem nenhum prédio em frente para atrapalhar a paisagem, a empregada doméstica de 63 anos observa as casinhas remanescentes da área ocupada por portugueses no início do século passado. Dona Manuela é moradora da favela do Mangue, um bolsão de pobreza encravado no coração de um dos bairros mais valorizados da capital paulista. O contraste entre os edifícios de alto padrão e os barracos do Mangue chama a atenção de quem anda pela região. A um quarteirão da casa de dona Manuela fica um dos prédios mais badalados do bairro, assinado pelo escritório Triptyque e construído pela incorporadora Idea! Zarvos. Ali o aluguel de um apartamento de 150 metros quadrados custa R$ 6.500 por mês – no Mangue, um quarto e cozinha sai por R$ 800 mensais.

Localizada entre as ruas Fidalga, Fradique Coutinho e Rodésia, a favela do Mangue existe pelo menos desde os anos 60 e abriga 22 famílias, em sua maioria de pedreiros, marceneiros, empregadas domésticas e outros trabalhadores braçais. No passado, antes da especulação imobiliária que fez multiplicar os canteiros de obras pelo bairro, estima-se que o número de moradores tenha sido o dobro. Na Secretaria Municipal da Habitação, a comunidade está cadastrada como “Favelas Fidalga 1 e 2”. “Uma fica num terreno público que foi ocupado e outra, num terreno particular. No começo dos anos 90, houve uma urbanização que levou água e esgoto e melhorou as condições no local”, explica o vereador Nabil Bonduki (PT-SP), professor de arquitetura e urbanismo da USP e morador há mais de três décadas da rua Fidalga.

O nome Mangue vem das minas de água que existem na região. Outra versão aponta para o fato de que ali se tornou uma área famosa pelo tráfico de drogas que abasteceu os bares e casas noturnas da vizinhança a partir dos anos 80. No terreno onde hoje fica um belo predinho de tijolos aparentes havia um cortiço onde nasceu o traficante Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, 35 anos. Preso na penitenciária de Presidente Venceslau, no oeste do estado, Gegê é apontado como o número 2 na hierarquia da organização criminosa Primeiro Comando da Capital, atrás apenas de Marcos Camacho, o Marcola. No auge dos ataques do PCC que paralisaram São Paulo em 2006, um ônibus foi incendiado na esquina da rua Fidalga com a Aspicuelta – para não deixar dúvidas de que o “partido do crime” está presente não só na periferia, mas também nas áreas centrais. “Eu lembro do Gegê quando ele era moleque. Jogava pedra na janela e pedia doces para deixar de incomodar”, conta, dando risada, Ernesto Loiola Mota, o Ceará, dono de um antiquário no Mangue.

O período de maior violência foi nos anos 80, quando o Mangue era uma espécie de território livre. “Nessa época, eu comprava fumo lá. Uma vez, um traficante me trapaceou, fiquei puto e fui tirar satisfação. Peguei umas coisas dele e disse que só devolveria se ele me desse a maconha que devia. Após um tempo, marcamos um encontro no Mangue, numa parte cheia de mato onde havia uma demolição. Quando cheguei ao local, dois caras pularam em cima de mim, me amarraram e colocaram uma faca no meu pescoço. Ficaram tomando pico a noite toda e ameaçando me matar. Eu chorei, pedi pelo amor de Deus. De manhã, consegui me soltar e fui a pé para casa. Quando cheguei, minha mulher estava desesperada”, conta um antigo frequentador do bairro, que pediu para não ser identificado.

Hoje o tráfico de drogas ainda existe, mas de maneira bem menos ostensiva. E a maioria dos moradores do Mangue – é bom deixar claro – não tem qualquer relação com o crime organizado. “São trabalhadores cujos filhos estudam em escola pública e frequentam o posto de saúde do bairro”, afirma José Luiz de França Penna, presidente nacional do Partido Verde e morador da Vila desde os anos 70.

Samba e futebol

Como toda boa favela, o Mangue tem samba, futebol e cerveja. “Aqui parece a Baixada Fluminense. 
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fim de semana, o vizinho faz churrasquinho na calçada. Coloca mesa e cadeiras de plástico, bota um som e cerveja gelada”, afirma o artista plástico Gizé, que tem um ateliê no local. Muitos moradores fazem parte da Pérola Negra, a escola de samba fundada no bairro em 1973. Já as peladas são jogadas numa quadra na vizinhança com um time que leva o nome da comunidade.

A combinação de samba e favela em plena Vila Madalena é um atrativo para os cada vez mais numerosos estrangeiros que visitam a região. “É um diferencial. Os gringos chegam aqui e acham o máximo ver o churrasquinho rolando na vizinhança”, diz a artista capixaba Adriana Duarte, a Xiclet, que há nove anos tem uma galeria em frente à favela. Segundo Xiclet, a convivência com a população do Mangue é ótima. “Logo que cheguei, tive problemas com alguns moradores que me viam como forasteira. Mas, com a convivência, tudo se resolveu e hoje existe uma troca entre a gente. Eu atraio visitantes que compram cerveja no bar deles e dão um trocado para que guardem os carros na rua. Eles me ajudam quando preciso de serviço em casa. Se a torneira quebra, vem um deles consertar”, conta Xiclet.

Os antigos moradores, no entanto, afirmam que a vida na comunidade não é mais tão animada como era no passado. “O Mangue mudou muito. Antes a gente ficava conversando na porta de casa até tarde. A molecada jogava futebol na rua todo dia. Hoje aquele pessoal ali nem põe os pés para fora”, reclama Diva Aparecida Natali, 60 anos, apontando para os vizinhos abonados das novas casas ao redor.

Junto e misturado

Parte dos habitantes do Mangue paga aluguel para os proprietários dos lotes, muitos deles de origem portuguesa. Outros ocuparam terrenos abandonados e hoje lutam na Justiça pelo direito de posse por usucapião. Muitos têm o mesmo sonho: vender suas casas a preços milionários e dividir o dinheiro entre os familiares – quase sempre muito numerosos –, para que cada um possa comprar seu imóvel próprio na periferia. “Queremos vender nossa casa. O Otávio Zarvos [dono da imobiliária Idea! Zarvos] veio aqui, mas disse que é difícil a venda porque não dá para construir prédios altos nesse trecho do bairro”, afirma dona Diva. O pedreiro Gilberto de Oliveira Doria Jr. também pretende vender o lote onde mora com os irmãos. Sobre as transformações no bairro, ele diz: “É o progresso. Quem manda aqui é o dinheiro”.

As mudanças provocadas pela febre imobiliária são criticadas pelo arquiteto Carlos Motta, que possui uma loja-ateliê na rua Aspicuelta. “A Vila Madalena perdeu muito com a invasão de automóveis e edificações que não têm o DNA do bairro e estão ajudando a descaracterizá-lo. Uma construtora compra quatro, cinco casinhas, demole e bota um prédio que faz sombra em outras casas. Mexe com o subsolo para fazer garagens e atrair ainda mais carros. Esses prédios não estão na escala da Vila Madalena. Isso não é feito de maneira natural, está forçando uma barra.”

Para Nabil Bonduki, a coexistência da favela com prédios de classe média alta é sinal de diversidade cultural. “O Mangue é o único lugar da Vila Madalena que ainda abriga população de baixa renda. Essa mistura de classes sociais é importante para o bairro e para a cidade”, afirma. Segundo o urbanista, o charme da Vila nasceu da mescla de artistas, intelectuais e estudantes da USP – que foram morar ali a partir do final dos anos 60 – com o pessoal de origem mais humilde, os serralheiros, marceneiros e pedreiros que já habitavam a área e hoje são cada vez mais raros. Motta compartilha da opinião. E conclui: “O Mangue é um dos órgãos que fazem parte desse organismo vivo que é a Vila Madalena. Por isso mesmo, não deveria deixar de existir”.

Quer trocar de vida?

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Na contramão da cultura do “compro, logo existo”, as práticas de compartilhar, trocar, alugar e doar bens e serviços se multiplicam, impulsionadas pela sociedade em rede e pela valorização da experiência sobre a propriedade. É o consumo colaborativo, uma ideia que pode mudar o mundo

Quando resolveu mudar para Nova York, em 2007, o designer brasileiro Diego Zambrano queria levar com ele só o essencial. Pensou então em oferecer móveis, livros e eletrodomésticos no Flickr, a rede social que usava na época, e mandar o link para os amigos. Em pouco tempo, se desfez de quase tudo, vendendo baratinho ou doando aos interessados. Assim nasceu a ideia para o Bondsy, aplicativo que criou e que ajuda a encontrar gente interessada em trocar tudo por tudo: roupas, objetos, eletrônicos, comida, ingressos, serviços. No ar desde o ano passado, a “rede social de coisas” foi encampada pela Tech Stars, uma das maiores incubadoras de novos negócios on-line dos Estados Unidos. Mais do que fenômeno isolado, é uma entre as muitas iniciativas de consumo colaborativo que estão transformando nossa relação com o que possuímos.


Saímos da era do hiper-consumo e entramos na era do bem-estar


“Possuir”, aliás, talvez já não seja a melhor definição. O objetivo essencial do consumo colaborativo, que a revista Time elegeu como uma das dez ideias que vão mudar o mundo, é promover formas menos comerciais e mais sustentáveis de troca, como o escambo, o empréstimo, a locação e a doação. Uma das entusiastas da bandeira, a pesquisadora australiana Rachel Botsman, coautora do livro O que é meu é seu (ed. Bookman), acredita que, nos próximos anos, deixaremos cada vez mais de ser os donos exclusivos das coisas, e passaremos a compartilhá-las. O acesso a produtos e serviços, acredita, se tornará mais importante do que a propriedade. Estaríamos nos distanciando da era do hiperconsumo, na qual o sucesso é medido pela quantidade de posses, para entrar na era do bem-estar, que dá mais valor à experiência.

Talvez você já faça parte dessa onda. Quando, por exemplo, ao planejar as férias, acessa sites como Couchsurfing, que conecta gente a fim de hospedar e de ser hospedada no mundo inteiro, operando na base da troca. Ou entra no aplicativo Karona para ver se alguém da sua cidade está indo de carro para a mesma balada que você. Facilitadores do compartilhamento, esses mecanismos dão a mais gente, por pouco ou nenhum dinheiro, acesso a algo que elas nem sabiam que estava disponível. A tecnologia tem papel essencial nesse cenário: a rede é a ponte entre quem oferece e quem precisa. Mas, para além dela, a valorização do sustentável é cada vez mais presente. “A ideia é que, em vez de termos coisas que só usamos eventualmente, possamos usufruir delas quando precisamos”, explica a australiana Lauren Anderson, sócia do Collaborative Lab, escritório de consultoria voltado para consumo colaborativo. “Estamos percebendo que o verdadeiro valor vem das experiências que temos ao usar algo. Uma prancha de surf só é útil quando estamos sobre as ondas. Então é melhor alugá-la por um dia do que mantê-la numa garagem acumulando poeira”, diz.


Cada vez mais, deixaremos de consumir para compartilhar


A jornalista e empresária paulistana de internet Diana Botello, 30 anos, descobriu a colaboração nos dois anos em que viveu fora do país. De volta ao Brasil, começou a usar o Bondsy para se desfazer de alguns objetos depois de um divórcio e não parou mais. Entre muitas outras coisas, aceitou uma garrafa de vinho em troca de uma tábua de passar roupa que não usava mais, e acabou ganhando um amigo. “O cara veio buscar a tábua e depois me mandou uma mensagem de agradecimento, dizendo que graças à visita pôde voltar ao bairro em que morou e reviver outra fase da vida dele. Pode parecer cafona o que vou dizer, mas compartilhar faz bem. Você passa a dar menos importância a coisas e mais a processos”, ela diz.

A tábua e o vinho

O movimento de compartilhar, doar ou trocar se opõe ao “compro, logo existo”, que imperou nas últimas décadas. E se alinha aos esforços de preservar recursos naturais e reduzir lixo. “Os efeitos negativos do consumo excessivo vão além do estresse financeiro e impactam o ambiente”, diz Lauren Anderson. A pesquisa Rumo à Sociedade do Bem-estar (2012), do Instituto Akatu para o Consumo Consciente, mostra que o brasileiro já se preocupa com sustentabilidade ao comprar, observando, por exemplo, se o fornecedor de um serviço ou produto tem selo de proteção ambiental. “As pessoas estão preocupadas com o impacto que seu consumo causa no outro, no ambiente, na comunidade”, diz Helio Mattar, diretor do Akatu.


Enaltecendo experiências, o novo consumidor troca o ter pelo viver


Se a consciência ambiental predispõe a formas mais colaborativas de consumo, a pressão cultural pelo consumo, porém, permanece. Consumir é uma necessidade social; posses refletem status, tornam-se extensão da identidade. O psiquiatra Hermano Tavares vai mais fundo na alma humana para achar as raízes do consumismo. Para ele, consumir é “uma elaboração mais sofisticada de impulsos primitivos de coleta de recursos”. O que diferencia a atitude do consumista da do novo consumidor é a maneira de lidar com esses impulsos. “Na visão do filósofo francês Gilles Lipovetsky, a felicidade trazida por uma compra é efêmera, diferente daquilo que é experimentado, vivido”, lembra a analista de tendências Carol Althaller. 
“O consumidor mais consciente troca o ‘ter’ pelo ‘viver’. Ele enaltece a experiência e, por isso, não perde tempo acumulando objetos que demandam cuidado”, diz.

Ligação direta

Morando em Los Angeles há cinco anos, o empresário Marcelo Loureiro investiu em um negócio de compartilhamento de bicicletas, o site e aplicativo Spinlister. Os usuários cadastram suas magrelas para alugá-las pelo preço que acharem justo. Quem precisa de uma bike faz a busca por cidade. O serviço começou voltado para o público americano mas se espalhou pelo mundo, conforme usuários de outros países foram se cadastrando. Sem nenhum esforço de marketing ou divulgação, aluga cerca de 40 bicicletas por mês. “Meu negócio é conectar pessoas”, diz Marcelo. “A transação monetária é um benefício secundário. O que as pessoas querem é fazer parte de uma comunidade. Às vezes, usando o serviço, compartilham dicas da cidade ou arranjam alguém pra andar de bike com elas.”

Para Marcelo, os negócios gerados a partir da ideia de consumo colaborativo fomentam uma economia mais orgânica. “O modelo econômico das últimas décadas foi baseado em compra e venda de produtos e serviços, por meio de um distribuidor. Com a tecnologia, as pessoas têm mais possibilidade de escolher de quem querem comprar e quanto querem pagar”, diz. E se querem pagar, já que muitas transações dispensam o dinheiro.

O estudante de desenho industrial Plínio Calil, 27 anos, que já trocou seus serviços de marceneiro por uma jaqueta, aposta em uma experiência colaborativa mais abrangente: a casa Madalena 80. O imóvel na Vila Madalena, em São Paulo, começou como espaço de coworking e hoje é alugado e administrado por cerca de 30 pessoas. A (única) regra é clara: quem ajuda no aluguel tem a chave e pode usar a casa como preferir, desde que não haja conflito de interesses. “É um espaço de livre interação”, diz Plínio. Os “donos”, gente de 25 a 50 anos, das mais diversas profissões – publicitários, economistas, arquitetos –, usam o lugar para trabalho, festas, encontros, bazares, oficinas. Por meio de um grupo no Facebook, resolvem problemas, programam a agenda e discutem reformas. “É autogestão, não existe hierarquia”, explica Plínio.

Grande e bem cuidada, a casa custa caro; entre aluguel, contas, internet e manutenção, cerca de R$ 7.500 por mês. Além de espaço de convivência, está se tornando o embrião de um fórum para discutir novas relações de consumo, parceria e trabalho. “O consumo colaborativo nada mais é que uma faceta da sociedade organizada em rede. A partir da internet, mudamos a forma de interagir, de um padrão mais centralizado para outro mais distribuído, que não depende de ninguém”, diz o empresário Oswaldo Oliveira, especialista em construir negócios em rede e um dos idealizadores da casa. “Não é que a sociedade vai mudar. A mudança é a própria organização em rede. O resto é expressão disso.”

 

A colaboração pode redefinir conceitos de comunidade

 

As expressões dessa possibilidade são muitas: além de novas formas de consumo, a rede pode ajudar a unir pessoas em torno de objetivos políticos e educacionais. A administradora Camila Haddad, 26 anos, criou ano passado o Cinese, plataforma de crowdlearning ou educação colaborativa. Qualquer um pode se cadastrar no site e oferecer uma atividade ligada a sua área de expertise ou interesse: um workshop de culinária, uma ida comentada ao teatro, ideias sobre como planejar um mochilão. Quem tiver interesse paga a quantia sugerida (a partir de R$ 10) e o encontro é armado. Desde o ano passado, já foram quase 200 encontros e 3.200 pessoas cadastradas. “Brinco que sou a usuária mais fiel do Cinese. Tenho aprendido e ensinado muita coisa bacana, de forma livre e horizontal”, diz Camila.

Desde antes do Cinese, ela já era usuária assídua de plataformas de consumo colaborativo. “Uso o Freecycle para doar e receber usados, o Skoob para trocar livros e o Couchsurfing quando viajo e para receber viajantes no sofá da minha casa”, conta. Frequentadora de feiras de troca de objetos, acha que o modelo baseado na colaboração, além de uma forma eficiente de utilizar recursos, gera gratificação. “Comprar é sempre minha última opção. Não porque é o mais correto, mas porque é menos gratificante. Comprar algo novo é divertido por muito pouco tempo, mas, quando você troca algo com alguém, por trás daquele objeto já existe uma história, e naquele ato se forma uma relação, ainda que passageira.”

Aprendizado horizontal

Por que a maior parte dessas iniciativas nasce nos grandes centros? Porque o modelo consumista impacta sobretudo quem vive neles, acredita. “Há nas cidades uma forte sensação de isolamento e desconexão, e as pessoas estão cada vez mais incomodadas com isso”, diz Camila. “Essas novas plataformas têm o potencial de redefinir o conceito de vizinhança e comunidade. Permitem criar conexões on-line que têm resultados significativos no mundo real, encorajando as pessoas a se conhecer e criar redes de apoio mútuo.” São os grandes centros que sofrem primeiro com os grandes problemas modernos, como a estafa consumista.

 

Há nas cidades uma forte sensação de isolamento e desconexão

 

“As cidades são lugares do consumo. É natural que seus moradores se conscientizem de que a coisa está chegando ao limite antes dos outros”, diz o jornalista e escritor Leão Serva, autor do guia Como viver em São Paulo sem carro (ed. Neotropica). Se o sonho de viver no campo é hoje uma ideia quase abstrata, nos resta transformar o cotidiano. “Há algo ecoando nesse momento em que as pessoas abdicam de seu próprio poder de consumo para exercer o poder de não consumir. Cidadania tem muito a ver com isso”, acredita ele. Rachel Botsman concorda: “O consumo colaborativo permite que as pessoas, além de perceber os benefícios do acesso sobre a propriedade, economizem dinheiro, espaço e tempo, façam novos amigos e se tornem cidadãs ativas novamente”.

Agora é nóis

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Guimê trabalhava numa quintada; Lon era cabeleireiro e ganhava R$3,50 por corte. Hoje, estima-se, cada um tira cerca de R$500 mil por mês cantando sobre roupas, joias e carros - a vida que semprequiseram ter, e hoje têm. Trip colou neles e em Rodolfinho, os três principais nomes do Funk Ostentanção

MC Guimê chega para conversar com a Trip ostentando um look que ele considera humilde. A calça é da Osklen, “não foi mais que R$ 400”. O tênis Nike “custou barato, coisa de 600 conto”. O relógio saiu por “dois pau”. A corrente no pescoço é um dos modelos mais em conta de sua coleção: rendeu R$ 5 mil ao seu ourives oficial. “Mas tenho umas outras cordas [correntes] de R$ 20 mil, 30 mil numa maleta em casa. Tem MC que anda com joia banhada por aí. Eu não. Só uso ouro maciço”, gaba-se. De fato, o único metal no visual do rapaz que não reluz como ouro é o aparelho fixo que cobre seus dentes.

Sentado ao seu lado, está o amigo MC Lon. Sua “corda” também é “modesta”. “É que um dia eu estava com duas de 500 gramas cada uma, mais um Rolex de R$ 65 mil, e me roubaram a caminho de um show. Perdi 1 quilo de ouro de uma vez só. Mas não me abalo. Logo mais compro tudo de novo”, ele explica. Deve comprar mesmo. Lon diz que recebe entre R$10 mil e R$30 mil por apresentação. E são, em média, 50 por mês - 60% fica com ele; o restante, com a produtora que o empresaria. Apesar dele não revelar o valor final do salário, dá para estimar algo em torno de R$500 mil. Nada mal para o ex-cabeleireiro, que ganhava R$ 3,50 por corte. Tampouco para Guimê, antes funcionário de uma quitanda.

Estamos no Tatuapé, zona leste paulistana, no prédio da produtora Máximo, responsável pelo gerenciamento da carreira dos dois. Uma caminhonete Hyundai, modelo Santa Fe, encosta. De dentro dela, saem MC Rodolfinho, atrasado para a entrevista, e seu segurança, que conduzia o carro. Com a chegada, está completo o trio de MCs que mais se destaca no funk ostentação, gênero que adicionou o batidão do funk carioca a letras que versam sobre novinhas (mulheres com menos de 18 anos de idade), Camaros (automóvel esportivo fabricado pela Chevrolet) e Red Label (o uísque da Johnnie Walker).

A ideia não é exatamente nova. Desde o final da década de 90, o rap mainstream norte-americano privilegia rimas de elogio ao consumo em detrimento à crítica social – o rapper 50 Cent, por exemplo, produziu álbuns com títulos como Get Rich or Die Tryin (Fique rico ou morra tentando) e Power of the Dollar (Poder do dólar). Por aqui, o primeiro sucesso do funk ostentação foi a canção “Mégane”, do MC Boy do Charmes, lançada em junho de 2011. O nome faz referência ao carro – ou à “nave”, como diz a letra – da Renault.

A morte de Daleste

Muitos dos artistas do estilo nem sequer têm um álbum lançado. É no YouTube que as músicas são veiculadas, acompanhadas de clipes que invariavelmente seguem a mesma fórmula: bebidas, mulheres pouco vestidas, carros, motos e ouro, muito ouro. Dos dez vídeos mais assistidos por brasileiros no site, quatro são clipes de funk ostentação. “Plaque de 100” (plaquê são bolos de dinheiro), hit de MC Guimê, contava 29 milhões de visualizações até o fechamento desta edição; “Novinha vem que tem”, de MC Lon, batia a casa dos 25 milhões.

 

"Contando os plaque de 100/Dentro de um Citroën/Aí nóis convida, porque sabe que elas vêm/De transporte nóis tá bem, de Hornet ou 110, Kawasaky, Bandit, RR tem também" Plaque de 100, MC Guimê

 

Algumas letras destoam da temática-padrão do estilo. É o caso de “Papai e mamãe”, cantada por MC Lon, que segue assim: “Estudar, respeitar o papai e a mamãe para um futuro a eles dar/ A única coisa que eu desejo é futebol, ser igual ao Neymar”. Mas, na opinião dos MCs, a mensagem das músicas é sempre positiva. “A gente fala pro povo sonhar e realizar seus sonhos. Se você quer ter uma mansão, um tênis da hora, é só correr atrás que você consegue. Eu consegui”, acredita MC Lon.

Apesar de fazer a cabeça dos jovens brasileiros há pelo menos um ano e meio, o funk ostentação só virou pauta nacional no mês passado, mais exatamente no dia 7, quando MC Daleste, outro expoente do movimento, foi assassinado com dois tiros enquanto fazia um show em Campinas. Antes dele, cinco MCs, um DJ e um empresário também haviam tido suas vidas encerradas. Nenhum dos casos foi esclarecido pela polícia.

O boato que corre é que Daleste teria “se envolvido com a mulher errada”. Um crime passional, portanto. Na visão dos três, porém, os disparos foram motivados por “inveja, recalque”. Depois do ocorrido, Rodolfinho ficou com medo. “Nenhum show mais foi igual. Tô lá no palco e lembro do que aconteceu. Estou me sentindo vulnerável”, revela. Lon, que às vezes anda por aí com até cinco seguranças, também está cabreiro. E faz um apelo: “Muitas pessoas desejam a minha morte, então vou dar uma satisfação. Vocês podem ter total certeza que não sou envolvido com droga, crime, nada. Meu trampo é cantar. Sustento cinco irmãos, pai e mãe. Sou a pilastra da família. Tenho minha mulher, não fico pegando fã. Levo uma vida certa e honesta. Só faço o bem. Maldade nem com uma borboleta”.

Brother do Neymar

MC Guimê, Guilherme Dantas no RG, tem 20 anos de idade. Cresceu nas quebradas de Osasco, município paulista, sem a mãe, que abandonou a família cedo. Aos 15, já rimava. Frequentava os shows de MC Lon, que começou a chamá-lo para cantar. Depois, diz, ensinou ao amigo a arte da autopromoção: “Ele me ajudou a entrar no funk e eu ajudei ele a entrar na mídia”. Durante a entrevista, não desgrudou do iPhone 5 branco. Ele mesmo cuida de sua página no Facebook, seguida por mais de 500 mil fãs.

 

"De carrão, de Montona/O bagulho te impressiona/Ela brisa, ela olha, ela pisca, ela chora/Só pra andar de navona/Ai meu Deus como é bom ser vida loka" Como é bom ser vida loka, MC Rodolfinho

 

Começou cantando sobre a vida que queria viver. Hoje, canta sobre a vida que vive. Seu patrimônio inclui duas casas, dois apartamentos, dois carros e uma moto. Em coisa de um ano, tatuou o corpo quase inteiro. É brother do jogador Neymar. “Aconteceu de a gente colar legal. Me identifico com o estilo de vida e a ideologia dele. O pessoal critica nóis, mas, agora que a gente pode ter as coisas, a gente não vai ter? Batalhamos, merecemos isso que estamos vivendo”, diz. No momento, está solteiro. “Eu stalkeio [do verbo inglês stalk, significa investigar a vida de alguém nas redes sociais] as mina antes de ter qualquer coisa com elas. Vai que ela é ex de algum camarada, algum cara que está preso... Por exemplo: se eu viajo e minha mina apronta com alguém, eu ia quebrar a cara dos dois. Agora, imagina se pego a mina de um cara que tem essa mesma sintonia? Tem que ficar esperto.”

Já Airon de Lima, o Lon, é casado. “Já aconteceu de eu me envolver com outras minas. Mas não sou burro. Minha mulher é que tá comigo desde sempre. Ela gosta de mim, não do MC Lon. Isso não tem preço”, diz. O jovem de 22 anos nasceu na Vila do Sapo, comunidade carente na Baixada Santista. Cresceu sem o pai, que deixou ele e os cinco irmãos com a mãe.

Lon prefere investir a grana em bens em vez de torrar tudo na balada. Até agora, investiu bastante: tem um jet ski, três carros, um apartamento na praia, outro em São Paulo, cinco casas sendo construídas, oito prontas e um sítio, “graças a Deus”. “Não me arrependo de nada. Dinheiro está aí para gastar. Vou guardar para quê? Vai que acontece o que rolou com o Daleste...”, justifica. Em um show no Love Story, inferninho paulistano, o MC subiu no palco e jogou R$ 10 mil reais para a galera. “Acredita que os engravatados ficaram ofendidos? Gritaram que não precisavam de esmola.”

 

"Ganhou o nosso bonde de longe e se aproximou/Viu vinte Red Bull, whisky e Absolut/Nóis que é portador de malote/Qualquer balada somos área vip/Vem curtir nosso camarote" Novinha vem que tem, MC Lon

 

Com 19 anos, Rodolfo Martins, o Rodolfinho, é o caçula dos três. De Osasco, como Guimê, trabalhou de empacotador em supermercado e depois em uma loja de celular. O autor do sucesso “Como é bom ser vida loka” não tem reclamações da vida que o funk lhe proporciona. “Mudou tudo. As mina não dava bola, agora tão tudo correndo atrás. Elas gostam de coisa boa, de luxo, de dinheiro. A gente tem o que elas querem e elas têm o que a gente gosta”, diz, caindo na gargalhada.

Apesar de não entenderem muito bem por que o estilo que cantam foi chamado de funk ostentação (“Foi a mídia que deu esse nome”), não há dúvidas de que, na prática, os três jovens sabem ostentar muito bem. E não têm vergonha nenhuma de estar na contramão de um mundo que cada vez mais pensa em viver com menos, em compartilhar. Com a palavra, MC Lon: “A gente quer ostentar cada vez mais. Queremos chegar onde os gringos do rap chegaram. Nóis canta ostentação porque pode. É como se fosse a celebração de uma vitória”.

Modelos Ana Carolina de CarvalhoAndréa Bondesan e Natália Lacerda Assistentes de Foto Cal Vasques e Cadu Maya


Aula na Amazônia

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O acionista de uma grande empresa de comunicação, um dos maiores big riders do surf mundial, um publicitário paulistano e um campeão de travessias oceânicas em stand-up paddle se uniram ao diretor de uma ONG de educação para um desafio: remar 300 km nos rios da Amazônia para ensinar suas técnicas aos locais. Resultado: acabaram aprendendo a viver

Carlos Burle é um laureado surfista de ondas grandes. Alessandro Matero, ou Amendoim, é referência brasileira na canoagem e no stand-up paddle. Geraldo da Rocha Azevedo é sócio de uma agência de comunicação e de uma empresa de marketing esportivo, esta em parceria com o publicitário André Bianchi, um dos autores deste texto. O outro autor, Luiz Felipe Moura, é diretor da AMABrasil, ONG que trabalha para que habitantes da floresta tenham acesso à educação e criem economias a partir de seu patrimônio ambiental. Cinco amigos unidos por uma paixão: o stand-up paddle. E com um objetivo comum: remar onde ninguém havia remado. O destino escolhido foi a Amazônia, onde a AMABrasil poderia ajudar na logística, já que mantém atividades na região. “Além disso, queríamos travar contato com comunidades que moram isoladas, sem acesso a TV, internet, nada. Fomos atrás de uma experiência de vida”, complementa Burle.

A expedição, chamada de Soul Fighters, começou em Alter do Chão, apelidado de “o Caribe brasileiro”, graças às suas águas cristalinas. Num dia de maré e lua cheias, os cinco zarparam a bordo do barco Cuicuera, acompanhados de três jovens estudantes locais, encarregados de fazer a cobertura da expedição para o Faceduc (primeira rede social de educação do Brasil, que leva tablets, conteúdo digital, capacitação e empreendedorismo para dentro da floresta) e pelo intrépido fotógrafo e cinegrafista especializado em esportes, Anselmo Venansi. A primeira parada foi 12 horas depois, em Arapiuns, onde o guia Nan se juntou à tripulação. Com o sinuoso rio Maró na palma da mão, ele seria essencial na navegação e no approach com as comunidades locais.

Ao chegarem na primeira delas, uma surpresa: todos ali eram remadores. Sempre foram. É de canoa que eles fazem grande parte de seus deslocamentos. “As crianças pegavam as nossas pranchas e sem nem pensar já estavam remando pra longe. Eles já nascem sabendo, é inacreditável”, lembra Geraldo. “Descobrimos que nós, moradores de uma megalópole, e eles, habitantes de uma civilização que fica a dois dias de barco da cidade mais próxima, somos unidos pela canoagem. O esporte, realmente, junta todo mundo”, acrescenta Burle. “Poderiam sair grandes atletas de lá, se houvesse informação e equipamentos. Instrução eles nem precisam, pois já dominam o SUP, sabem a postura certa da remada.

Para Geraldo, que leva a tradicional rotina de um empresário em São Paulo, foi a primeira vez que ele conseguiu ficar cinco dias completamente desconectado. O business man, que sempre pegou onda e remou nas horas vagas, fez sucesso com a criançada, quase toda de linhagem indígena. Motivo: foi o primeiro homem careca que elas viram na vida. “Me surpreendeu ver crianças tão inteligentes, saudáveis, com os dentes perfeitos. Deve ter a ver com a dieta rica em proteínas, já que só comem peixe que eles mesmo caçam”, acredita.

Todos tinham a sensação de que o tempo corria diferente. “O tempo não é problema para eles como é para nós. Nós vivemos nas grandes cidades, rodeados de problemas que nós mesmos inventamos. Eles vivem no tempo da floresta”, analisa Burle. Depois de ver tantas famílias vivendo sem carro, internet ou até mesmo eletricidade, Amendoim refletiu: 
“Eles não têm nada. Mas têm tudo. Se divertem com o que têm ali”. Simples, as casas que o quinteto visitou tinham algo em comum: as cozinhas imaculadas de tão limpas, mesmo que, às vezes, o chão fosse de terra.


"O tempo não é problema para eles como é para nós. Eles vivem no tempo da floresta"


O maior vilão da saúde por lá não são as doenças cardíacas, o câncer ou as síndromes mentais que assombram as metrópoles (ninguém nunca tinha ouvido falar de estresse ou depressão). O medo é da serpente. Para se ter uma ideia, são quase 400 entradas na rede pública de saúde de Santarém por ano, decorrentes de picadas de cobras.

COBERTOR DE ESTRELAS

Eram 8, 9 horas de remada por dia. Ao todo, foram 300 quilômetros percorridos dentro da floresta alagada, conhecida como igapó, remando ora rente às copas das árvores (o nível da água chegou a 4 metros acima do nível do mar), ora no meio de pequenos riachos, que pareciam desenhados à mão e decorados com orquídeas, bromélias e vitórias-régias. Botos-cor-de-rosa davam o ar da graça vez ou outra. Quando a noite subia, um cobertor de estrelas se instalava no céu. Rompendo o silêncio, apenas a sinfonia natural da floresta. “Era tão agradável remar que você não sentia sede, cansaço”, rememora Burle, que acabou sofrendo uma desidratação no último dia, por conta do calor excessivo. “Não havia nem mosquito, como é de se esperar numa selva.”

Na volta para Alter do Chão, os desbravadores foram recebidos pelos prefeitos de Santarém e Belterra. A solenidade foi para comemorar a empreitada e também a inclusão de uma escola indígena no Faceduc. Agora com tablets, livros digitais e câmeras nas mãos, os alunos poderão retratar e compartilhar seu particular contexto de vida, que, apesar de distante e distinto, não é menos brasileiro que qualquer outro. “É só levando informação que conseguimos evitar, por exemplo, que essas comunidades sejam exploradas por madeireiros”, opina Geraldo.

Assim terminava a experiência, deixando em todos a pergunta: qual o destino dessas civilizações? E como podemos fazer com que a evolução do mundo tal qual a conhecemos aconteça de forma menos agressiva e mais consciente? A experiência deixou a visão de um tempo não linear. Quanto mais avançamos para o futuro, mais olhamos para o passado. “Fomos para ensinar”, diz Amendoim. “Mas acabamos aprendendo.”


"Fomos para ensinar", diz Amendoim. "Mas acabamos aprendendo."

 

 

Burle e a maior onda da história

Poucas semanas após regressar do tour amazônico, que por sinal o deixou derrubado com uma baita desidratação, o campeão mundial em ondas gigantes Carlos Burle voou até o litoral norte do Chile, onde supõe-se que ele tenha surfado a maior onda de sua carreira – e também da história. Fala-se em um monstro aquático de mais ou menos 80 pés (24,3 metros), o que suplantaria o recorde mundial atual, de 78 pés (23,7 metros), do havaiano Garett McNamara. O feito ocorreu no dia 3 de julho.

Não há registros em vídeo da proeza, apenas fotos. O julgamento cabe ao XXL, o Oscar das ondas grandes, que só deverá soltar seu veredicto em abril ou maio do ano que vem. Burle, no entanto, está otimista: “Foi uma das maiores que já surfei, com certeza. Não deve em nada a Mavericks, Jaws e à própria onda do Garret”. A conferir.

A dama e o vagabundo

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Um troca-troca improvável entre nosso repórter excepcional e a esfuziante Brunete Fraccarolli. Entre caviar e ioga, os opostos, por fim, se atraíram

Em minha extensa cauda histórica na Trip, tive o privilégio de compartilhar momentos e páginas com musas, beldades, anarquistas, pitonisas... Da cantora Rosana, de “Como uma deusa”, à Narcisa “Ai, que loucura!” Tamborindeguy. Da Gisele Bündchen, ainda em início de carreira, à papisa do universo fashion Costanza Pascolato. Nesta edição, a redação me convidou para passar um dia ao lado da arquiteta, decoradora e personagem coruscante da série Mulheres ricas: Brunete Fraccarolli.

Combinamos uma troca de experiências sensoriais e vivenciais que fazem parte de nossa rotina. Brunete, tal qual uma imperatriz, me convidou para conhecer seu feudo – seu escritório, no caso –, suas coleções, fazer uma degustação de caviar e champanhe. De minha parte, decidi oferecer uma manhã de prática de ashtanga ioga e um café da manhã orgânico e suculento em um lugar paradisíaco, nos arredores de São Paulo.

Marcamos nosso encontro às seis da manhã na subida da Serra da Cantareira. O caminho é um conto de fadas urbano. Como num passe de mágica, estávamos na densa floresta respirando ar puro, prontos para iniciar os primeiros asanas no Centro Vidya, encravado nas bordas da serra. A sala pulsava energia. Um grupo de mais de 20 praticantes bombava e suava por todos os poros. Brunete se mostrava disponível e seguia as orientações do professor Cristovão de Oliveira. A pequena imperatriz se esticava, puxava e pedia explicações ao focado instrutor. No entanto, na hora de uma postura um tanto intrincada, coitada, acabou caindo em cima do mestre. O revés talvez tenha reduzido seu ânimo. Depois de cerca de 20 minutos conosco, Brunete abandonou a sala. Eu fiquei na minha e concluí a prática.

Encontro-a tagarelando com algumas das yoginis. Estão todas devorando uma imensidão de iguarias divinas e orgânicas. Tapiocas, sucos, pães, geleias, chás, cafezinho, queijos e frutas enchiam a mesa central. Comi e bebi de tudo. Brunete borbulhava de felicidade por ter saído da sua rotina e ter se permitido experimentar um momento de tranquilidade e muito tônus logo pela manhã.

Nossa descida para São Paulo foi outro passe de mágica. Todos os caminhos e faróis se abriam ao longo das encruzilhadas. Chegamos nos Jardins, zona nobre paulistana onde ela mora, rapidinho. Na portaria, fomos recebidos pelos funcionários com extrema educação e garbo. Brunete havia chegado antes de nós e permaneceu alguns minutos no quarto, onde era arrumada por Thiago, seu valet, maquiador, cabeleireiro e amigo, que nos acompanhou durante todo o dia. Ela desfaz a escova que havia feito para a aula de ioga e enrola as madeixas com um Baby Liss. Sai do quarto vestida como uma perfeita Barbie, com a inseparável Sissi, uma maltês que está com ela há mais de 14 anos, a tiracolo. Sissi tem uma vida classuda. Vai ao acupunturista e é habituée de pet-shops. Brunete é loira, linda e tem pés de princesa. Calça 33, o que faz com que muitos de seus sapatos fiquem sobrando. Diz que não é muito chegada em sapatos nem em roupa. Que, sempre que compra uma peça nova, retira uma velha do armário e faz uma doação.

Champa & caviar

Não sou nenhuma grande autoridade em design, mas impossível não notar a cadeira Banquete, criação dos irmãos Campana, em sua sala de visitas. Na casa, há ainda o modelo Cone, também dos designers paulistas, além de uma cadeira de papelão (!) desenhada por Frank Gehry e outra transparente, de policarbonato, obra de Phillip Starck. Como um magneto, a Banquete me acolhe com seus bichinhos de pelúcia. Na sala envidraçada, Brunete nos oferece uma geladíssima champanhe Moët & Chandon Reserva Rose Brut. Brunete convoca Thiago para registrar o momento que se seguiria. De fato, merece o clique: como uma samurai, ela pega um sabre, dá um golpe preciso no gargalo e abre a garrafa.

Brunete abre as cortinas, revelando sua imensa coleção de Barbies. Perfiladas como os soldados de terracota de Xian do imperador Qin (tudo bem, pode dar um Google nisso), as Barbies exalam os sonhos da colecionadora. Vestuário, visual, coloração e adereços das bonecas têm significados particulares. O santo graal da coleção é uma Barbie feita exclusivamente para ela, igualzinha à imperatriz.

Como uma estrela, ela fugazmente entra em outra dependência de seu apê. Espero um longo período. Com muita desenvoltura, Thiago me abre alguns armários e mostra agora a coleção de garrafas d’água de sua patroa. São mais de mil. Tem água de geleiras, água de chuva, todas com um design diferente.

Tudo muito bonito. Mas a fome rondava meu aparelho. Eis que Brunete retorna com o terceiro look do dia, exibindo um coque à la Grace Kelly. Iluminada, diz: “Arthur, quero que você conheça meu escritório do outro lado da rua. Na sequência, iremos ao hotel Emiliano fazer uma degustação de caviar e bebericar outros champanhes. Que tal?”. Brunete é assim, gosta de celebrar a vida. Pergunto a ela se seu dia a dia é sempre assim. Ela desbarata e, com um vestido assinado por Ronaldo Fraga e um anel de tanzanita, entra no elevador.

Seu escritório é rosa translúcido, com tons pastel. Ela me apresenta os aromas das essências que ela desenvolve. Aromas naturais de abacaxi, limão frumelo, framboesa e uva. Tudo bem doce, como a pequena Brunete.

No Emiliano, requintado restaurante localizado em um hotel homônimo, uma imensa mesa nos aguardava com algumas porções de acepipes. Nossa conversa espumava champanhe e histórias de viagens. Degustávamos um delicioso caviar russo Petrossian, acompanhado de creme azedo e blinis (uma espécie de crepe). Num átimo de segundo, duas garrafas de Perrier Jouet são abertas. Outra bandeja com diversos canapés é servida. Nela, pesto de nozes, tomate confit com queijo Grana Padano, tapenade de azeitonas e salmão defumado nos aguardam.

Num dado momento, começamos a falar sobre animais. Gargalhando, Brunete contou que no primeiro casamento, aos 18 anos, foi morar perto de Conceição de Araguaia, entre os estados de Goiás e Pará. Em um passeio, viu um pequeno gatinho solitário e se encantou pelo felino. O gatinho foi crescendo, crescendo até que ela percebeu que se tratava de... uma onça. Com muito pesar, doou a fera para um zoológico.

Na hora da despedida, não me contive: fiz como ela fez com o gato que não era gato e a peguei no colo. Brunete não esperava por essa. Mas que gostou, gostou.

Taylor Camp

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Numa praia do Havaí nos anos 70, um grupo de estudantes, ambientalistas, surfistas e veteranos de guerra fundaram Taylor Camp, uma experiência antropológica em busca de um novo jeito de ocupar este mundo. O acampamento foi desfeito, mas seus ideais de uma vida mais frugal continuam ecoando por aí

Uma praia com areias brancas e águas cristalinas, rodeada de floresta tropical, cachoeiras, rios e encostas esculpidas por lava vulcânica. Ali, homens e mulheres andam nus, moram em casas sobre as árvores, plantam o próprio alimento e realizam festas regadas a todo tipo de substâncias – lícitas e ilícitas. Sonho? O paraíso hippie existiu e seu nome era Taylor Camp, uma comunidade criada no final dos anos 60 no litoral norte da ilha de Kauai, considerada por muitos a mais bela do arquipélago havaiano. De 1969 a 1977, centenas de ambientalistas, ativistas de direitos civis, veteranos de guerra e surfistas vindos da Califórnia, de Nova York e da Flórida se mudaram para o local para viver dias de utopia. No auge, a comunidade chegou a abrigar mais de 350 pessoas, que acabariam expulsas pelo governo para a criação de um parque estadual.

“Taylor Camp foi o ápice da fantasia hippie realizada num dos locais mais bonitos do planeta”, afirmou à Trip o fotógrafo e escritor americano John Wehrheim, autor dos retratos em preto e branco que ilustram estas páginas. Nos anos 70, quando trabalhava para a ONG ambientalista Sierra Club, John foi enviado ao Havaí e escreveu uma série de reportagens chamada “Paraíso perdido”. As imagens da comunidade hippie foram feitas principalmente no ano de 1975. Em 2009, o fotógrafo lançou o livro Taylor Camp (ed. Serindia) e produziu o documentário de mesmo nome dirigido por Robert Stone, em que ex-moradores relembram seus dias de idílio 30 anos depois.

O nome Taylor Camp veio de Howard Taylor, irmão da atriz Elizabeth Taylor que era proprietário da área em que a comunidade se estabeleceu. Irritado quando soube que o governo de Kauai iria desapropriar o terreno onde ele pretendia construir uma casa, Howard emprestou a área para 13 estudantes californianos que acabavam de deixar a prisão no Havaí. Depois de 90 dias detidos por acampar em local proibido, os jovens não tinham para onde ir. Até que receberam a oferta. “Meu pai e minha mãe pegaram dois carros e foram buscá-los. Foi o início de Taylor Camp”, conta Tommy Taylor, filho de Howard, em depoimento que está no livro de John Wehrheim. No primeiro ano do acampamento, a própria Liz Taylor chegou a visitar o local, na época de Natal. “Ela levou um peru assado para a ceia. Os filhos dela, Michael e Chris, eram adolescentes e passavam as férias com o tio e os primos. Eles sempre iam passear em Taylor Camp. Para os garotos, aquilo era o paraíso”, conta o fotógrafo.

REHAB PAZ & AMOR

Taylor Camp serviu de refúgio em um período de plena efervescência política nos EUA, com o surgimento de movimentos pacifistas, ambientalistas e de luta pelos direitos civis. “Todos em Taylor Camp estavam fugindo de alguma coisa”, conta o ex-morador Bruce Kramer no filme de John Wehrheim. Os 13 pioneiros de Taylor Camp eram estudantes da Universidade Berkeley, na Califórnia, que participavam das manifestações contra a Guerra do Vietnã. Fugindo da repressão policial, escolheram o Havaí como destino. “A situação em Berkeley era explosiva. Era pegar em armas ou deixar o lugar. Nós decidimos sair”, conta a educadora Sondra Schaub, uma das primeiras a chegar ao acampamento de “refugiados”.

Para alguns, a temporada no paraíso foi uma forma de superar os traumas do passado. “Quando voltei do Vietnã, eu tinha muitos pesadelos. Encontrei a cura em Taylor Camp”, contou o veterano de guerra James Mitchell. Para outros, o local foi de reabilitação. “Eu poderia ter morrido de alcoolismo ou por causa das drogas. Fugi da polícia de San Diego. Fui presa duas vezes por fumar maconha. Se tivesse ficado no continente, perderia a guarda das minhas filhas”, declarou Suzanne Bollin, hoje vendedora de uma loja de surf no Havaí. Em comum, todos tinham o desejo de criar um modelo de sociedade diferente do encontrado no mundo capitalista. “Estávamos em busca de algo que não era o que as nossas famílias ofereciam. Procurávamos algo diferente e fomos muito sortudos, porque encontramos”, afirma Cherry Hamilton no livro.

Ao longo dos anos, outros hippies e surfistas se mudaram para lá, atraídos pela ideia de morar em uma comunidade sem hierarquia ou regras, onde era possível consumir livremente maconha, haxixe e LSD. “Estávamos expandindo nossas mentes e nossa espiritualidade”, diz o artista plástico David LaCock. Durante o dia, eles se dedicavam a participar de torneios de vôlei na praia, sessões de ioga e meditação e jogos de baralho. “Cada dia era uma nova aventura. Podia se passar o dia à beira do rio ou fazer uma escalada no vale de Kalalau”, conta a professora de artes aposentada Francine Pearson. À noite aconteciam jantares nas casas dos amigos e festas em volta da fogueira.

Para se alimentar, os habitantes de Taylor Camp pescavam e cultivavam uma horta com alface, tomate, espinafre e manjericão. Quando precisavam de outros mantimentos iam até uma venda na cidade. Ao lado funcionava o correio, onde postavam cartas aos familiares. Alguns faziam trabalhos temporários nas lavouras da região. As crianças frequentavam a escola local. No acampamento foram construídos banheiros coletivos e um sistema de coleta da água das nascentes. Na chamada Free Store, um local de troca de mercadorias, cada morador colocava objetos que não usava mais para serem aproveitados pelos outros. Também havia uma igreja ecumênica, onde cada um cultivava a sua fé – fosse budismo tibetano, judaísmo ou cristianismo.

Apesar de não haver regras formais ou hierarquia estabelecida, havia uma divisão de tarefas. “Alguns cuidavam do lixo, outros do sistema de água, do banheiro ou da quadra de vôlei. Cada um fazia o que podia”, contou à Trip o hoje professor de história aposentado David Pearson, 70 anos. “Quando havia conflitos dentro ou fora da comunidade, alguns homens mais fortes assumiam a liderança. Hawk Hamilton era tido como o xerife e David Pearson fazia o papel de policial. Eles e outros formavam as forças de paz do acampamento”, explica John Wehrheim, que cita também um prefeito informal: “Rosey Rosenthal, 
o responsável pela quadra de vôlei”.

TENSÃO SEXUAL

Naturalmente, vários casais se formaram ali. “Havia muita energia e tensão sexual. Porque eram todos jovens e bonitos, tantos os homens como as mulheres”, conta Teri Green. “Encontrei minha mulher, Francine, lá e estamos juntos há 35 anos. Ela foi a melhor coisa que me aconteceu em Taylor Camp”, declara David Pearson, o “policial” do acampamento.

Apesar do ambiente hippie e das pessoas sem roupa, Taylor Camp não era uma comunidade de amor livre, como se poderia supor. “Andávamos pelados, mas éramos caretas nesse sentido”, diz a hoje corretora de imóveis Debi Green. “Havia casais e relacionamentos como em qualquer comunidade, com a diferença de que as pessoas viviam mais próximas umas das outras”, conta Acacia Siouix Morrison. Alguns se arrependem de não ter vivido o período mais intensamente. “Eu poderia ter aproveitado mais, vivido de maneira mais selvagem. Infelizmente, não dá para voltar no tempo”, resmunga o setentão Pearson.

Muitas crianças que cresceram no local têm boas lembranças de lá, apesar do choque ao serem confrontadas com a realidade exterior. “Ir para a escola foi difícil, ainda mais sendo uma criança hippie vinda de Taylor Camp. As outras crianças não brincavam conosco. Meus pais não me ajudavam e eu tive que me virar sozinha”, conta Alpin Noble, que chegou ao acampamento aos 3 anos de idade. Adulta, Alpin tornou-se uma engenheira com trajetória bem diferente da dos pais hippies. “Eu me rebelei. Quis levar uma vida normal, ter segurança, me integrar à sociedade.” Sua irmã mais velha, Minka, morreu de aids aos 21 anos.

FORA HAOLE

A chegada de um número cada vez maior de hippies barbudos e cabeludos começou a chamar a atenção dos habitantes de Kauai e dos jornais locais. E parte dos nativos começou a se opor à presença dos forasteiros. “Eles pediam carona nas estradas, acampavam em qualquer lugar, dormiam na praia”, afirma Eduardo Malapit, prefeito de Kauai de 1974 a 1982. “Comecei a receber reclamações sobre Taylor Camp. Eles não usavam roupas e estavam plantando maconha em qualquer lugar. Não tinham permissão para construir aquelas casas”, acrescenta.

Em 1974, a área do acampamento foi desapropriada pelo estado para a criação de um parque. Após três anos de uma intensa batalha legal, os moradores que ainda permaneciam no local foram expulsos. “A polícia e as autoridades de Kauai chegaram ao acampamento e começaram a prender as pessoas e a queimar suas casas. Foi horrível”, lembra Francine Pierson.

Hoje não há nenhum vestígio de Taylor Camp: tirando um estacionamento, toda a área foi coberta por floresta. “Ao publicar estas fotos, minha intenção é que, daqui a décadas, elas sejam o testemunho de um momento especial na história”, diz John Wehrheim. Para os antigos moradores, muitos deles amigos até hoje, restam as lembranças do que chamam de “os melhores dias de nossas vidas”. “Foi um lugar mágico, que provocou profundas mudanças internas e externas em todos que viveram ali. Todos os dias me vêm lembranças das pessoas, das paisagens, da luminosidade e do cheiro daquele lugar. É algo que está em mim e vou carregar para sempre”, conclui Francine.

Vai lá: findingutopia.org // taylorcampkauai.com

Bem-vindo à terra santa

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Um Muro das Lamentações na zona norte do Rio, uma réplica do Templo de Salomão no centro de São Paulo e um Kibutz na periferia paulistana mostram o desejo de importar Israel para o brasil

Domingo, 8h30 da manhã. Nas frestas entre blocos de pedra de um muro alaranjado, Maria Geraldina Cavalcanti se esforça para colocar bilhetes pedindo pela saúde de sua família, pelo aumento de sua pensão e pelo retorno da filha que fugiu de casa. “Aqui é a minha Terra Santa, é o meu contato direto com Deus”, explica a empregada doméstica aposentada de 73 anos. O muro em questão fica no bairro de Del Castilho, zona norte do Rio de Janeiro, na entrada do principal templo da Igreja Universal do Reino de Deus: a Catedral Mundial da Fé. Antes de entrar na missa, os seguidores do bispo Edir Macedo encostam as mãos no local e fazem orações. Alguns fiéis, como dona Maria, depositam papéis com seus desejos por escrito. Por causa da semelhança com o monumento sagrado de Jerusalém, o local ganhou o apelido de Muro das Lamentações carioca.

Trata-se de apenas um entre outros exemplos do desejo de importar a Terra Santa para o Brasil. O caso que chama mais a atenção – pela dimensão e pelas cifras milionárias envolvidas – é a réplica do Templo de Salomão que está sendo construída no bairro do Brás, no centro de São Paulo. Com previsão de ser inaugurado em junho do ano que vem, o complexo, também da Igreja Universal, vai abrigar até 10 mil pessoas sentadas. O prédio principal terá 126 metros de comprimento, 104 metros de largura e 55 metros de altura, “quase duas vezes a altura da estátua do Cristo Redentor”, como gosta de destacar a igreja. Para revestir o templo, foram trazidas toneladas de pedras da cidade de Hebron, em Israel, num empreendimento que vai consumir um total de R$ 700 milhões. A ideia, segundo Edir Macedo, surgiu em uma viagem a Jerusalém. “Se eu não posso trazer o povo da Universal para cá, então vou levar pedaços desta terra para eles”, afirmou o líder da igreja evangélica.

O Templo de Salomão (o original) é um local de adoração tanto para judeus como para cristãos. Segundo a Bíblia, Salomão, rei de Israel e filho de Davi, mandou erguer o templo para que ele fosse a morada de Deus e abrigasse a Arca da Aliança, com os Dez Mandamentos. Quando os babilônios tomaram a cidade no século 6 a.C., o templo virou cinzas. Um segundo templo construído no lugar foi destruído pelos romanos em 70 d.C. O que restou dele é o Muro das Lamentações, daí o seu caráter sagrado. Judeus ortodoxos acreditam que um terceiro templo será construído onde hoje fica a Cúpula da Rocha, local de culto dos muçulmanos. Segundo a crença judaica, a construção acontecerá com a chegada do Messias.

Banho no Rio Jordão

Ao lado do Muro das Lamentações carioca, fica outro lugar inspirado na Terra Santa, igualmente construído pela Universal: o Centro Cultural de Jerusalém. A atração principal é uma maquete de 736 metros quadrados que pretende levar o visitante a “uma viagem no tempo” e mostrar a cidade na época do segundo templo. No vídeo de propaganda da instituição, o apresentador da TV Record Wagner Montes faz o convite: “Você, que não conhece, venha conhecer. Não é uma maquete, não é um cenário, não é uma cidade cenográfica. É Jerusalém dentro do Rio de Janeiro”.

A guia do centro Thassia Magalhães explica que o público é bastante eclético. “A maioria dos visitantes são fiéis de igrejas evangélicas, mas há judeus e católicos. Recebemos muitos pesquisadores”, comenta. Quando a reportagem da Trip esteve no local, havia um grupo de estudantes da Universidade Federal Fluminense. “Dou um curso de história do cristianismo. Viemos observar a arquitetura da época”, disse Manuel Rolph Cabeceiras, professor da Universidade Federal Fluminense, em Niterói. No mesmo complexo, há uma piscina rodeada por palmeiras, onde são feitos batismos na água que, segundo a instituição, vem diretamente do rio Jordão. Também há uma loja que vende suvenires, como menorás, Torás e estátuas de Moisés, símbolos da religião judaica.

Kibutz Urbano

Não são apenas monumentos de Israel que são “importados” para o Brasil. A experiência de uma forma de organização coletiva do país serviu de modelo para a criação de um kibutz urbano no bairro de São Mateus, zona leste de São Paulo. O grupo, que existiu em três endereços diferentes de 2002 a 2007, chegou a reunir 20 pessoas, que dividiam os salários e as despesas igualmente e seguiam as tradições do judaísmo.

O idealizador é Marcos Moreira da Silva, 45 anos, um comerciante negro e ex-pastor da Assembleia de Deus. Moreira se identifica como descendente de cristãos-novos, judeus forçados a se converter ao cristianismo na época da Inquisição e que migraram para o Nordeste brasileiro no século 16. Nos anos 90, ele adotou o nome de Mordechai Moré e, mais tarde, criou a sinagoga Beit Israel e uma federação com 1.500 descendentes de cristãos-novos espalhados pelo Brasil. Há dois anos, fez o chamado “processo de retorno”, uma série de estudos e práticas da religião, com o objetivo de ser reconhecido pelos outros judeus.

O kibutz em São Mateus foi desativado depois que o proprietário reclamou que o imóvel estava sendo sublocado. Mordechai agora pretende criar kibutzim agrícolas no Paraná e no Mato Grosso do Sul. “Os dois projetos devem ficar prontos no final do ano que vem”, afirma. A sinagoga na zona leste de São Paulo reúne atualmente 150 famílias. “A escolha de São Mateus não foi à toa. É um local com alta concentração de ‘judeus em potencial’, pois é um dos principais redutos nordestinos da cidade”, explica Carlos Andrade Gutierrez, do núcleo de antropologia urbana da USP, que fez uma pesquisa sobre o grupo. Segundo o antropólogo, boa parte dos seguidores de Mordechai são provenientes de igrejas evangélicas.

O Messias não chegou

E qual é a relação entre evangélicos e judaísmo? “O Antigo Testamento vale para os dois. Mas os cristãos reconhecem Jesus Cristo, e os judeus, não. Nossa crença é a de que o Messias nunca veio”, explica o rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista (CIP). A igreja do bispo Edir Macedo afirma ter “profundo respeito e admiração” pelo judaísmo. “Respeitamos a fé judaica, pois ela serve de base para nossa fé cristã”, declarou a Igreja Universal, por meio de sua assessoria de imprensa.

Em Israel, as reações sobre a tentativa de replicar a Terra Santa no Brasil são diversas. “Alguns políticos acham isso bom, pois pode trazer novos aliados ao Estado de Israel; outros estão chocados, como se isso fosse um pecado; outros não se importam com esses projetos e veem neles apenas novas igrejas faraônicas”, conta Benjamin Seroussi, um dos curadores do projeto Nova Jerusalém, que reúne artistas israelenses e brasileiros para discutir essas questões (veja matéria no site). O rabino Schlesinger é do time dos que não veem problema: “Os evangélicos visitam Israel, admiram os rituais judaicos e até estudam hebraico. Eu me sinto lisonjeado ao saber que a nossa tradição é admirada. É complicado julgar a fé do outro porque, aos nossos olhos, ela sempre parece esquisita, e esse é o primeiro passo para a intolerância. Eu procuro respeitar”.

Sonho erótico

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Paulo Machado é administrador de empresas, ex-mórmon e... um dos donos da Nefertitti, “a maior casa liberal do país”. Mas sacanagem, para ele, só entre quatro paredes: “Sou careta”

Quando era jovem, Paulo Alexandre Machado acreditava que sexo antes do casamento era abominável aos olhos do Senhor. E não só isso. Homossexualidade, cigarro, álcool, TV aos domingos, café... muita coisa era pecado para ele e seus irmãos, frequentadores da Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias. Como é costume entre os mórmons, aos 18 anos, Paulo saiu de casa numa missão de dois anos para pregar a palavra da salvação, espalhando o evangelho pelos estados do Nordeste. De volta a São Paulo, casou-se com uma irmã de fé. Aos 21, perdeu a virgindade na noite de núpcias.

Hoje com 53 anos, Paulo abandonou a religião, mas prossegue em sua missão de levar alegria aos corações de homens e mulheres – agora num estilo, digamos, mais mundano. O ex-mórmon tornou-se empresário da noite, trocando a pregação pela pegação e a glória divina pelos gloryholes. Em 2003, abriu a casa noturna Nefertitti (nome de uma rainha egípcia, que significa “a mais bela”), popularizando o conceito de balada liberal, onde “tudo é permitido e nada é obrigatório”. Em dez anos, a casa passou por quatro endereços e ajudou a ampliar o espaço da sacanagem na noite paulistana, retirando o erotismo do gueto escuro dos puteiros e das casas de suingue para as luzes das pistas de dança.

Quem entra antes da meia-noite na Nefertitti, hoje localizada no Brooklin, bairro de classe média alta de São Paulo, é capaz de pensar que caiu numa balada igual a qualquer outra. São 1.200 metros quadrados, uma pista de dança, um bar com um longo balcão e sofás. Homens e mulheres, a maioria na faixa dos 25 aos 35 anos, dançam som comercial.

A cena começa a parecer diferente quando o público abre espaço para os shows eróticos, que acontecem junto ao pole dance instalado no meio da pista. São performances light: mulheres tiram toda a roupa, homens, não, e se tocam de leve entre si. Depois do show, o público volta a dançar, agora mais empolgado, e faz suas próprias performances. Algumas das frequentadoras se arriscam a rodopiar no poste, levantando saias e abaixando blusas. Outras sobem no balcão do bar, onde há seis postes estrategicamente localizados, e tiram a roupa ali mesmo. A DJ Léo Conceição, mais conhecida como DJ Topless e pauta da Trip em outras oportunidades, mantém os peitos dentro da blusa quando discoteca na Nefertitti. “Nem tem graça tirar a roupa aqui com esse monte de gente pelada”, diz.

É o máximo que o clima pode esquentar na área da balada, pelas regras da casa. Fazer sexo ali é proibido, e apenas as mulheres podem tirar a roupa. “O corpo da mulher é maravilhoso. O corpo do homem é feio para caralho”, explica Paulo. “Isso tem a ver com o conceito do erotismo. No paraíso, o Adão é quem foi tentado pela Eva”, continua, relembrando suas origens mórmons.

Um passo à direita e a cena muda. Chegamos ao labirinto, feito de salas e corredores pouco iluminados. Quem quiser pode transar ali, seja em salas fechadas, seja nas salas equipadas com buracos nas paredes – os gloryholes, com seu duplo uso para os voyeurs, que podem usá-los para espiar o que rola ali dentro ou, se forem mais participativos, enfiar por ali alguma parte do corpo para interagir com o casal. Quem preferir fazer sexo sem portas fechadas pode utilizar a sala de cinema pornô ou os próprios corredores do labirinto. 

Casa de ferreiro...

É uma sacanagem feita muito mais de clima do que de carne. Segundo Paulo, só 20% dos frequentadores da Nefertitti costumam ir ao labirinto – e, desses, a maioria vai só para observar. A balada liberal vende muito mais o sonho do sexo do que o sexo em si. Uma curiosidade: o povo que menos transa é o dos funkeiros. Na noite de funk, apenas 5% dos frequentadores chega ao labirinto. “A mulher do funk quer se exibir, mais do que fazer sexo.”

São diferentes jeitos de curtir que se cruzam na noite. Pode ser a paquerinha quase adolescente, da moça de 20 e poucos anos que pede à amiga gordinha para dizer ao carinha “minha amiga gostou de você”, e pode ser o encontro de uma dezena de casais tradicionais de suingue, que escolhem a Nefertitti como uma casa, entre outras, para seus encontros regulares de trocas de casais.

“Nosso core business não é o sexo, é o erotismo”, define Paulo. Quem espera dele uma coletânea de relatos picantes vai se decepcionar. Formado em administração de empresas pelo Mackenzie, ele gosta mesmo é de falar de business plan, mercado potencial, público-alvo... É um homem de negócios, que criou a Nefertitti simplesmente por ter visto ali uma boa oportunidade para ganhar dinheiro. Jura que nunca participou de suingue ou surubas. “Brinco com minhas fantasias e meus desejos com minha esposa entre quatro paredes”, afirma Paulo, pai de três filhos e avô de duas netas, hoje em seu terceiro casamento.

Paulo fez carreira com uma empresa de logística de material promocional, que mantém até hoje. Na virada da década passada, passou a pesquisar possibilidades para abrir uma casa noturna. Mas sabia que, para dar certo, tinha que ser algo novo no mercado. Teve seu estalo quando, em 1998, viajou com a segunda esposa, Luciana Godoi, para a Copa do Mundo da França, e um amigo os chamou para conhecer uma casa de suingue de alto padrão. Ao lado de Luciana, Paulo passou a pesquisar referências para uma balada liberal, visitando casas em Miami ou Cancún que tinham shows de gogo girls, Clube das Mulheres, puteiros da rua Augusta e casas de suingue. “Quando fui no suingue, ficamos escondidos num cantinho atrás de uma pilastra”, diz.

 

"Eu estou nesse mundo, mas não pertenço a ele. Esse é o segredo que faz o negócio ir para a frente"

 

Jogou todas as referências num liquidificador e criou a Nefertitti, em 2003. Deu certo. “Virou uma referência nacional. Recebo em média cinco propostas por ano para abrir franquias em outros estados. Mas não sei se conseguiria levar para outro lugar a atmosfera que criamos aqui.”

O respeito à liberdade da mulher parece ser levado bem a sério na casa. Elas podem tirar a roupa na pista de dança ou subir peladas no balcão sem receber mãos indesejadas – quem desrespeita a regra é expulso pelos seguranças. A mesma orientação se estende até o escuro dos labirintos, onde a vontade feminina impera. Ao se meter ali, a reportagem viu uma bonita morena, num discreto vestido verde, que não havia dançado nem subido no balcão, sentar-se com o namorado na última fileira do cinema pornô, onde colocou-se à disposição dos homens que se aproximaram. Logo, ela estava masturbando o namorado e um outro homem, enquanto era penetrada por um terceiro e um quarto acariciava suas pernas, esperando uma vaga para se enfiar por ali. De repente, a morena interrompeu os gemidos e sussurrou um “chega”. Dito uma vez, foi o que bastou. O homem que estava dentro dela saiu rapidamente para se masturbar numa cadeira do cinema, enquanto os demais se retiravam dali sem questionar.

Histórias como essa têm pouco a ver com o cotidiano de Paulo. Ele costuma aparecer na Nefertitti no começo da noite e ir embora pouco depois da meia-noite, geralmente acompanhado da atual mulher, Dirlene Alves. “O Paulo é sossegado. Já viu tanta coisa...”, comenta Dih. “Ele gosta de ficar em casa e sair para passear com a nossa schnauzer.” Como os dois se conheceram? “Você vai dar risada”, diz Paulo. “O dono de uma balada liberal encontrou a atual mulher no site de relacionamentos Par perfeito.” E reconhece: “Sou um pouco careta”.

Ao longo dos anos, Paulo recebeu várias propostas sexuais de frequentadores da Nefertitti, mas afirma ter recusado todas, confiante na estratégia de usar a casa apenas para ganhar o pão, deixando que outros comam a carne no labirinto. “Eu estou nesse mundo, mas não pertenço a ele. É esse o segredo que faz o negócio ir para a frente.”

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