Revisito minha infância caminhando pela rua Francisco Otaviano, artéria vital entre o Arpoador e Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro. Tudo ali continua nostálgico: o forte de Copacabana, o visual, as pedras, as árvores, o mar e o edifício onde nasci – da maternidade, fui direto com meus pais para o número 60 dessa rua. O visual do imóvel é o mesmo, com suas características antigas e o gramado impecável. Identifico a janela no quarto andar, onde me esgueirava quando pequeno. Como é prazeroso nostalgizar e voltar aos lugares onde a vida foi desfrutada com muita intensidade. Uma onda de contentamento invade meu espírito. Sinto-me revitalizado, resgatando as raízes e a vida nesse cantinho de Copacabana. Minhas memórias se aquietam. Tenho um compromisso em frente ao edifício. O local é a mitológica e pioneira Galeria River, meca das primeiras lojas de surf, skate e esportes de ação no Rio e no Brasil. Ela já existia no comecinho dos anos 70, quando gente como Caetano Veloso, Gal Costa, Elis Regina e Jorge Ben Jor frequentava a primeira loja alternativa de lá, a AnikiBobó, famosa pelas calças coloridas boca de sino e pelos cintões. Ao lado dela, estavam um açougue, uma lavanderia, uma casa lotérica e outros estabelecimentos do gênero. Na virada dos 70 para os 80, com o fortalecimento da cena do surf na cidade, as lojas do ramo começaram a dominar a galeria. Hoje, ela é quase um minishopping com diversas lojas de identidade semelhante, focadas no público jovem. Sua localização é nevrálgica, dando continuidade ao calçadão que liga o Leme ao Leblon. Seres humanos de todas as quebradas do Rio e do planeta passam por ali. O zum-zum-zum é intergaláctico. A fauna das criaturas é um caldeirão de etnias. Procuro na galeria um dos estúdios de tatuagem mais antigos do Brasil, há 35 anos instalado na Galeria River: é o legendário Caio Tattoo. Na frente da fachada da loja, um enorme painel brinda os clientes e curiosos com fotografias de Caio ao lado dos mais notórios tatuadores do mundo. Vejo, por exemplo, uma foto de Caio colado com o mestre dos mestres, Horiyoshi, ainda na puberdade. A antessala da loja está lotada de clientes. O clima é de contentamento, curiosidade, desejo. Todos querem ser tatuados. Num canto, observo nosso anfitrião explicar com detalhes os cuidados higiênicos que o recém-tatuado tem que ter com sua pele. Caio se aproxima e iniciamos nossa conversatina. Seu corpo ostenta trabalhos de Filip Leu, Tin Tin, Maurício Teodoro e outros monstros. Ele olha minha pele e cirurgicamente identifica trabalhos de Maurício, Marco Leone e exclama: “Caramba, você tem um Horiyoshi!”. Mostro para ele minha primeira tattoo, realizada pelo ancestral Fred. Caio levanta a manga e revela um desenho do mesmo Fred, feito no início dos 80. Estou em casa. O fluxo da loja não para. Gente entrando, marcando hora e sendo tatuada. Os negócios, ao que parece, seguem de vento em popa. Sou conduzido por Caio a uma pequena loja, que mais parece os clássicos vestíbulos do Red Light District de Amsterdã. Só falta sair uma beldade fazendo striptease. O local é o casulo onde Caio trabalha e guarda uma infinidade de álbuns de fotografias. Nossa conversa é permeada por lembranças dos primórdios da tatuagem artística no Brasil. À medida que vou viajando no maravilhoso arquivo, Caio vai contando histórias e causos. Ele afirma que essas e outras personalidades foram responsáveis por tirar a tatuagem da marginalidade. Além da familiaridade e camaradagem espontânea em nossa entrevista, percebo que ele parece com alguém. Sim, Salabim! Ele é a cara e o cavanhaque do movie star Al Pacino! Caio nasceu em 1951, em São Paulo, mas mudou com 10 anos para o Rio. Ele não se faz de rogado e conta com profunda emoção o início de sua saga: “Os pioneiros no Rio foram eu, o Thyes e o Boris. A tatuagem começou na minha vida em 75, mas o despertar foi em 73, quando percebi algumas pessoas tatuadas na praia. Um sujeito chamado Sabiá apareceu com um trabalho colorido e disse que havia feito com o Lucky, em Santos. Fiquei determinado. Minha cabeça não parava de borbulhar de vontade e me despachei para lá”. Fast-food A viagem mostrou-se uma epopeia. Tatuagem naquela época só existia no cais do porto, era coisa da marginália e de marinheiros. Hoje em dia, virou um modismo efervescente. “Tem mais loja de tatuagem do que farmácia”, diz Caio, para em seguida voltar ao túnel do tempo: “O surfista e ‘menino do rio’ José Artur Machado, o Petit, foi um dos garotos de boa aparência que deflagraram a tatuagem, com seu dragão tatuado no braço por Lucky Tattoo, imortalizado por Caetano Veloso. Depois, alguns surfistas surgiam com tatuagens de panteras, cogumelos, flores e outros símbolos da contracultura. Eu precisava de uma máquina. Arrumei um barbeador e adaptei, tipo MacGyver. Dois anos depois, um amigo foi para Nova York e trouxe minha primeira maquineta”. No começo o grosso da clientela eram os marinheiros, tanto os brasileiros quanto Caio é um ícone da contracultura tupiniquim. Convive como um camaleão com a galera de todas as gerações do surf, de esportes de ação, música, artes marciais e capoeira. Durante muitos anos, foi parceiro do mestre de capoeira Camisa e é sensei nessa arte. Suas duas profissões foram tratadas com preconceito durante muito tempo. Agora, são o suprassumo do estilo de vida e sonho de muita gente. Para registrar nosso encontro, pedi para ser tatuado. Escolhi um pequeno símbolo que diz respeito ao meu pai.Caio Tattoo realizou o sonho de viver de tatuagem numa época em que sua arte era coisa de marginal. Rabiscou Monique Evans, Rita Lee e, agora, Arthur Veríssimo também, que foi até o Rio conhecer o cara e relembrar sua infância, passada bem em frente ao estúdio de Caio
Vejo imagens de Lucky Tattoo, de Santos, provavelmente o primeiro cara a levar a tatuagem a sério no Brasil, e de vários outros pioneiros do Rio e de São Paulo. Encontro registros da Tattoo You, de Marco Leone, no bairro paulistano da Vila Madalena, por onde passaram tatuadores como Chichio, Fred Gregersen (filho de Lucky), Luiz Segatto, Hercoly, Genziana e tantos outros. Há ainda uma belíssima Monique Evans e o casal Rita Lee e Roberto de Carvalho sendo tatuados por Caio.
os estrangeiros. Hoje, dá de tudo em sua loja. “Banalizou. Todos os acessórios estão disponíveis na internet. A loja de tatuagem mais parece rede de fast-food”, solta. Sinto a nostalgia pegando fundo na alma do mestre Caio, tal qual acontecera comigo ao reviver minha juventude carioca. Ele reafirma que no passado existia a magia da peregrinação, de ir até o estúdio distante do tatuador: “Os tempos são outros. No século passado, existiam respeito e hierarquia entre os antigos tatuadores, assim como os códigios de ética dos samurais. Hoje em dia, tatuador virou artista, designer, estilista, joalheiro... esqueceram o ofício. Muitos se acham Leonardo da Vinci, Vik Muniz”.
Marcado na pele
De olhos bem fechados
As fotografias têm o poder de imortalizar momentos. Algumas se tornam ícones pela poética, outras, pelo jogo de cena. Mas são raros os casos em que elas têm essas qualidades e também conseguem sintetizar um momento histórico. É quando o fotógrafo deixa de relatar um fato e se torna um cronista, indo além do que os olhos veem. Os olhos, aliás, são coadjuvantes nesta matéria (não fosse o fato de que é preciso deles para ler). A proposta é que boa parte das fotografias aqui descritas e comentadas possam ser acessadas na memória apenas pelas palavras, tal o poder delas no imaginário. Diferentemente de cenas repetidas à exaustão na televisão e facilmente acessíveis pelo YouTube, a ideia também é resgatar cenas do Brasil que nos lembrem o quão recente nosso país é. O brasileiro tem memória, sim. Para escolher essas imagens, tão fortes e frescas em nossas memórias que mostrá-las se torna dispensável, reunimos um júri formado por Iatã Cannabrava, fotógrafo e coordenador do Festival Internacional de Fotografia de Paraty – Paraty em Foco; Sergio Burgi, coordenador da área de fotografia do IMS – Instituto Moreira Salles (um dos maiores acervos do gênero no país); Eder Chiodetto, fotojornalista, curador e integrante do conselho consultivo do MAM-SP; e Boris Kossoy, fotógrafo e teórico conhecido como primeiro historiador da fotografia no Brasil. Veja a lista abaixo e tente imaginar a imagem. Depois veja na galeria as fotos. Foto 1) No mar, Leila Diniz grávida de chapéu - “Um retrato ousado, que rompeu com o comportamento da época, ajudando a transformar a figura e o papel da mulher, traduzindo o feminismo para o nosso contexto.” Eder Chiodetto Foto 2) Avó e neto diante de uma já erguida Oca, em um Parque do Ibirapuera ainda em construção - “Captura um momento que antecede o caos que são paulo se tornou, mas já indicando o caminho da metrópole” Iatã Cannabrava Foto 3) A vista da entrada da Baía de Guanabara com o Pão de Açúcar ao fundo, no anoitecer do já distante século 19 - “Ajudou a criar a imagem de cartão-postal do Rio de Janeiro, além de trazer o contraste entre a exuberância da natureza e o processo de urbanização da cidade.” Sergio Burgi Foto 4) Cabeças decepadas de cangaceiros, entre elas a de Lampião, são exibidas em uma escada como se estivessem em um altar - “Essa foto dá a dimensão de quão alucinado era o período do cangaço. A carga de informação dela não é só de violência, mas de alucinação também, em um momento em que havia um fervor não apenas religioso.” Iatã Cannabrava Foto 5) Uma fila de engravatados aguarda para cumprimentar militares que estão sobre um tapete persa em Brasília, durante a ditadura. Todos estão sem cabeça na foto - “Um retrato do comportamento padronizado da política nacional, nesse beija-mão cheio de cerimônias sem sentido. É essa a crítica que o fotógrafo faz ao retirar do enquadramento as cabeças, inclusive a do presidente Geisel.” Eder Chiodetto Foto 6) O presidente Jânio Quadros condecora Che Guevara, então Ministro das Indústrias de Cuba - “Imagem que provocou a cisão política do Brasil e que ecoa até hoje, ajudando a explicar os comportamentos da esquerda e da direita no país.” Boris Kossoy Foto 7) Mais uma de Jânio: um presidente hesitante com os pés tortos, seu passo cruzado - “Sendo Jânio Quadros o único presidente que renunciou ao cargo, a imagem captura um momento de confusão na vida política do país e parece antever o que estava para acontecer.” Eder Chiodetto Foto 8) Um índio toca a hélice de um avião, dando a impressão de que a está conhecendo — ou então empurrando a aeronave / “Representa um momento crucial do país, registrando o contato de duas civilizações e confrontando a população indígena com o avanço industrial sobre o Brasil profundo.” Sergio Burgi Foto 9) Vista do alto, a cavalaria avança sobre o povo na Igreja da Candelária no dia da missa em homenagem ao estudante morto pela polícia / “Sintetiza todo o sentimento de repressão no período da ditadura, não só do ano de 1968 como de todo o regime militar.” Boris Kossoy Foto 10) Pessoas andam sobre a laje da cobertura do Congresso Nacional no dia da inauguração de Brasília / “Uma imagem revisitada nas manifestações deste ano, quando as pessoas subiram no topo do Congresso, só que à noite. Serve de comentário sobre o povo no poder, além de ser um registro histórico.” Sergio Burgi
Orchard Beach
O Bronx, um dos cinco distritos que compõem a cidade de Nova York, é considerado um dos lugares mais heterogêneos dos Estados Unidos. Foi um dos berços da salsa e do hip-hop, bem como de diversas outras culturas underground. Mesmo assim, ele ainda é visto como terra de ninguém por muitos nova-iorquinos. A maioria se recusa a aventurar-se por essa porção de terra a nordeste da cidade – talvez por questões geográficas, talvez por medo da reputação barra-pesada que seu nome evoca. Desde sempre, o Bronx acolhe famílias de imigrantes oriundas de todos os cantos do mundo. Mas sua imagem é definida principalmente pelo caos que tomou suas ruas entre o final dos anos 60 e o começo dos 80, quando depredações, incêndios, vício em drogas e todo tipo de negligência social eram praxe. Para as famílias que resolveram chamar esse cenário destruído de lar, Orchard Beach, a única praia em todo o distrito, era e continua sendo um abençoado refúgio do confinamento imposto pela selva de concreto. Construído nos anos 1930 pelo urbanista Robert Moses, o lugar carrega o estigma de “a pior praia de Nova York”, sendo comumente chamado de Horseshit Beach (Praia de Bosta) ou Riviera de Porto Rico, por causa dos muitos frequentadores latinos. Eu comecei a fotografar as pessoas de Orchard Beach durante o verão de 2005, assim que me mudei para Nova York. Logo percebi que a má fama deste oásis era completamente injustificada. Não tive outra alternativa a não ser me envolver com essa comunidade de famílias trabalhadoras, repleta de personagens megacoloridos. As fotografias deste ensaio celebram o orgulho e a dignidade dos que se estiram na areia não tão branca e mergulham na água nem sempre limpa de Orchard Beach. Imagino que a primeira coisa que capture o olhar do leitor seja o estilo extravagante dos modelos. Para mim, é tudo parte de uma busca profunda por identidade e sensação de pertencimento – indivíduos carregando cicatrizes, marcas e vestígios de suas trajetórias pessoais, que muitas vezes refletem a própria história complexa do local onde cresceram. Através do olhar dos retratados, vemos uma comunidade que se mantém de pé apesar de todo o preconceito que sofre da opinião popular. Os seis anos que passei fotografando Orchard Beach me deram não apenas tempo e espaço para refletir sobre a importância de coisas como família e comunidade, mas também um sentimento de irmandade e propósito na vida.
Bem na foto?
Talvez tenha acontecido com você. Ao escolher a chuleta para o churrasco de domingo, olhou sorrateiramente para os lados desconfiando de que Tony Ramos apareceria a qualquer momento no supermercado para lançar a pergunta: “É Friboi?”. Mais do que os internautas que compartilharam dezenas de memes – do fofo ao macabro – inspirados no bordão, quem sorri são os acionistas do grupo JBS, detentor da marca Friboi. As vendas subiram 20% desde que os filmes com o ator começaram a ir ao ar em junho deste ano, gerando lucro de R$ 300 milhões para a empresa. A busca era por um porta-voz que conferisse credibilidade ao produto e fizesse o consumidor incorporar um novo hábito: pedir um corte de carne pela marca. Na pesquisa pelo nome ideal feita pela agência Lew’Lara\TBWA, criadora da campanha, surgiram personalidades como Regina Duarte e Ana Maria Braga. Tony venceu disparado. “Ele não faz muita propaganda, inspira confiança, nunca cedeu ao glamour da indústria de celebridades, tem uma vida estável, é casado há anos com a mesma mulher e quem o conhece sabe que não vai dar seu nome a um produto duvidoso”, diz Márcio Oliveira, presidente da agência. Não é novidade ver gente famosa ajudando a vender papel higiênico, sabonete, cereal ou iogurte. Mas parecemos viver uma inflação de rostos conhecidos nas mais diversas frentes – um fenômeno mundial. As razões ficam evidentes em pesquisas como a Persona, elaborada desde 2011 pelo escritório de consultoria em marketing Ilumeo. Ela aponta que o consumidor se dispõe a pagar até 19% a mais por produtos e serviços anunciados por celebridades e que as campanhas que pegam carona em sua fama costumam resultar em um acréscimo de 15% no recall – a lembrança da marca após a veiculação dos anúncios. Uma pergunta que não cala é: por quê? Faz sentido que, em um mundo cada vez mais bem informado – e, em certa medida, mais crítico –, as celebridades ainda tenham tamanho poder de influenciar o nosso consumo? O que nos faz preferir a pasta de dentes anunciada por um pop star? Uma das pistas trazidas pelo historiador britânico Fred Inglis, professor de estudos culturais da Universidade de Sheffield, em Breve história da celebridade (Versal Editores, 2012), aponta sentimentos tão prosaicos quanto a inveja. “O glamour é o objeto da inveja em carne e osso”, diz o autor. “A psicose da publicidade é circular e sem trégua: move-se do desejo para a inveja, e desta para a compra, para a decepção, para a raiva ou resignação e de volta para o desejo”, explica. Em sua obra, Inglis esmiúça a cultura da fama nos últimos 250 anos, traçando o perfil de personalidades como o escritor inglês Lord Byron e a atriz francesa Sarah Bernhardt (que construíram sua imagem mesclando arte, mítica pessoal e mexericos, modelo de celebridade que temos até hoje) e também de esportistas, milionários, astros de cinema, políticos, âncoras de telejornal e ditadores. O autor situa a época de ouro de Hollywood – as décadas de 1930 a 1970 – como o momento em que a notoriedade passa a valer como moeda de troca no mundo da propaganda. “Onde está a celebridade, sempre está o dinheiro.” As vendas da Friboi subiram 20% desde que os filmes com Tony Ramos apareceram na TV Filósofo e doutor em comunicação, José Luiz Aidar Prado, coordenador do Grupo de Pesquisas em Mídia Impressa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, não diria que a celebridade define hábitos de consumo. “Mas é figura central de um grande dispositivo de comunicação voltado à convocação dos consumidores para escolher certos modelos de vida e de busca de sucesso, ligados à carreira, ao êxito pessoal, à saúde e à beleza”, diz ele em entrevista à Trip. Prado ressalta ainda que o capitalismo é mais que um sistema econômico: é um sistema cultural que vende a cada grupo estilos de viver. Daí vem a força da celebridade como exemplo de vida e consumo. “A crítica a esse grande dispositivo é que ele torna visível uma forma de vida concentrada no dinheiro, em modos reduzidos e individualistas de sucesso.” Está gravado no cérebro de nossas avós: “Nove entre dez estrelas de cinema usam Lux”, marca de sabonetes que estampou Marlene Dietrich, Elizabeth Taylor, Sophia Loren e a mais fulgurante de todas, Marilyn Monroe, em sua série histórica de anúncios. Assim como uma das frases mais famosas de Marilyn – “Uso apenas duas gotas de Chanel nº 5 para dormir” – ecoa até hoje na mente da consumidora que se imagina nua, loura e pecaminosa entre lençóis. Com essa declaração, a atriz pode ser considerada precursora da “tuitada patrocinada” bem-sucedida. O especialista em marketing Terence A. Shimp, professor da americana Darla Moore School of Business, desenvolveu um modelo teórico para analisar a eficácia de uma celebridade nas decisões de compra do consumidor, largamente utilizado por empresas. São cinco pontos básicos ponderados: credibilidade (confio no que ele faz), conhecimento (ele só fala do que realmente entende), poder de atração (ele chama a atenção para o que vende), respeito (tenho consideração por suas opiniões) e similaridade (me identifico com ele). Na pesquisa Celebridades, Marcas e Consumo, publicada pela editora Abril em 2012, o padrão de Shimp foi usado como base para a análise de 50 famosos brasileiros. O público consultado, exclusivamente feminino, apontou o poder de atração e o respeito como atributos mais recorrentes, numa lista encabeçada por Luciano Huck, Ivete Sangalo, Tony Ramos, Reynaldo Gianecchini, Glória Pires, Xuxa e Silvio Santos. Trinta e cinco por cento das entrevistadas se declararam “seguidoras” das celebridades, disseram que “amam e confiam nelas” e pretendem “não ter sua confiança traída”. A clareza e a qualidade da mensagem, aliadas à imagem que o famoso transmite (e, para usar o jargão publicitário, aos atributos alinhados aos da marca) é que farão a palha de aço vender como pipoca na porta do circo. É o que o publicitário e cientista social Diego Senise, sócio da Ilumeo, chama de “congruência”. Seu escritório faz um acompanhamento semestral de mais de cem nomes da TV, da música e do esporte, monitorados a partir de entrevistas com 10 mil pessoas em dez estados para identificar atributos vendedores em nosso star system. Num resultado divulgado em 2011 (a empresa não revela dados mais recentes), Tony Ramos e Bernardinho figuravam entre os mais confiáveis. Camila Pitanga também aparecia nessa lista e em outra, a das “modernas”, com Sabrina Sato e Cleo Pires. Deborah Secco e Juliana Paes entravam no rol das “sedutoras”. Raí conseguiu driblar o campo minado da superexposição. Optou por poucos e bons contratos Se um anunciante acerta na escolha do porta-voz para o seu produto, a resposta chega em cifrões. “Contra números não há argumentos”, diz o consultor Edson Giusti, diretor da empresa de gestão de imagem Giusti Comunicação. Mas adverte que é comum notar, tanto por parte de marcas como de celebridades, o comportamento que classifica como “histérico”: anunciantes aproveitam-se de famosos emergentes sem o lastro de uma carreira sólida para tentar vender mais, e famosos de ocasião surfam nos minutos de fama para estrelar uma baciada de campanhas. O recomendável, afirma, é ser cuidadoso e construir uma imagem a longo prazo. “Wagner Moura é um exemplo. Escolhe as campanhas que faz com o mesmo cuidado que elege bons papéis. Os artistas precisam pensar da mesma maneira que uma marca respeitada, pois marcas e pessoas buscam, mais do que nunca, um significado”, diz. Raí, um dos nomes que mais apareceram na publicidade brasileira ao longo de 2013, segundo estatística da empresa Controle da Concorrência (veja quadro), preocupou-se em driblar o campo minado da superexposição. Quando encerrou a carreira no esporte, em 2000, surgiram propostas para que associasse sua imagem a uma miríade de produtos e eventos. Seguiu o caminho da sensatez, montando um escritório para cuidar de seus projetos e unindo-se a Paulo Velasco, formado em administração de empresas. Abrindo mão da tentação do contrato fácil, optou por escolher poucos e bons. A filosofia da empresa Raí+Velasco (que também administra as imagens do ex-goleiro Zetti e da jogadora de basquete Magic Paula) mostrou-se eficaz: hoje um contrato publicitário do ex-jogador é negociado por valores dez vezes maiores do que quando sua estrela brilhava no São Paulo ou no Paris Saint-Germain. “Aconselhamos nossos artistas a selecionar com cuidado os convites, mas a palavra final é sempre deles”, diz Mariana Lobo, diretora da agência de talentos carioca Twogether, que tem Bruno Gagliasso, Cleo Pires e Luana Piovani entre seus clientes. Ela conta que, por causa do sucesso da série De pernas pro ar, a atriz Ingrid Guimarães recebeu propostas de anunciar toda sorte de implementos sexuais, incluindo calcinhas comestíveis. “Concordamos que não valia a pena vincular sua imagem a esse tipo de produto, apesar de ter tudo a ver com sua personagem no cinema.” Certas marcas, entretanto, estão na lista que toda celebridade gostaria de chamar de sua. A Havaianas é um dos exemplos mais notáveis. “Por meio dos agentes, recebemos inúmeras sugestões de artistas para participar dos nossos filmes”, diz Rui Porto, consultor de comunicação e mídia da Alpargatas. A escolha de quem terá esse privilégio (os agentes reconhecem que um filme de Havaianas é capaz de dar um up na carreira de qualquer famoso) nunca parte de um nome, mas de um roteiro. “A estrela da campanha é sempre a marca. Depois é feita a pesquisa e definimos quem combina com cada situação. Raramente ouvimos um não”, explica Porto. Desde os anos 90, quando as sandálias de borracha passaram por repaginação de cor, estilo e conceito, deixando de ser “chinelo de pobre” para se transformar em acessório fashion, até o mês passado, foram produzidos 201 filmes, todos com famosos (sem contar as campanhas estreladas por Chico Anysio e sua turma nos anos 70). As historinhas, que colocam o famoso em alguma roubada, são vividas por gente que, segundo Porto, personaliza irreverência e descontração. “Desmistificamos a celebridade.” Em tempos de redes sociais, anunciantes e agências podem monitorar o tempo todo o comportamento das celebridades, e aferem seu poder de fazer amigos e influenciar pessoas. Mandar bem no Twitter, no Facebook ou no Instagram também norteia a escolha de um famoso para uma campanha hoje. A agente Fernanda Ribas, da FR Produções, que cuida da carreira de artistas como Vladimir Brichta, Alexandre Borges e Clarice Falcão, reconhece que um bom desempenho nas redes pode ajudar a gerar mais lucros. “Alguns clientes solicitam esses dados porque é mídia imediata. Em muitos casos, os contratos estabelecem que a marca seja citada pelos próprios artistas em seus posts.” Anunciantes e agências monitoram as celebridades nas redes sociais para ver seu poder de fogo Pesquisas qualitativas também verificam a influência de celebridades sobre o pensamento do consumidor e do cidadão. Um estudo da Ilumeo perguntou aos entrevistados de que personalidades gostariam de ouvir opiniões sobre a recente onda de manifestações no país. Atrás de Lula e Dilma, Silvio Santos aparece em terceiro lugar. Jô Soares, Xuxa, William Bonner, Neymar, Pedro Bial, FHC, Marília Gabriela, Luciano Huck e Ratinho foram outros muito citados. Uma das principais justificativas apontadas pelo público na pesquisa foi: “Eles trariam pontos de vista diferentes para ajudar a formar minha opinião”. Não se sabe o que Silvio Santos poderia dizer que trouxesse alguma luz às questões complexas que a sociedade como um todo está discutindo. Mas a pesquisa é um sinal de que, mesmo em um mundo em ebulição, que vai às ruas para reivindicar seus direitos, a opinião de uma figura famosa será sempre considerada. E, em muitos casos – como parece ser o de Tony Ramos ou do próprio Silvio –, tal celebridade será vista como acima do bem e do mal. E isso vende. *Fonte: Controle da Concorrência
O que os garotos propagandas têm?
Bons moços Reynaldo Gianecchini personifica o sujeito confiável e batalhador. A campanha do Banco do Brasil feita na época do tratamento contra o câncer reforçou a imagem de coragem e luta.
Descoladas Sabrina Sato, Cleo Pires, Grazi Massafera e Juliana Paes lançam moda e tendências. Mesclam sensualidade e beleza com uma imagem positiva para ambos os sexos.
Populares Funkeiros como Naldo e Anitta têm apelo jovem e popular. Ele dança no festival de ofertas do supermercado e ela aparece sensual em propaganda de camisinhas.
Humoristas Fábio Porchat, Lúcio Mauro Filho, Gregório Duvivier e Bruno Mazzeo estrelam um sem-número de campanhas: biscoitos, etanol, refrigerantes, telefonia celular. Há quem critique os humoristas por falta de critério, mas são nomes que vendem.
Reabilitado Fábio Assunção é exemplo de celebridade que levantou, sacudiu a poeira e teve a credibilidade recuperada. No auge do envolvimento com drogas, a Nextel manteve seu passe e direcionou a campanha com base na sua história de superação.
Fênomeno Ronaldo não perde a majestade mesmo depois de escândalos sexuais e piadas sobre sua forma física. “Está no nível dos ídolos como Pelé”, diz Fábio Wajngarten, da Controle da Concorrência.
Musa Gisele Bündchen é garantia de audiência em qualquer campanha. Camila Pitanga, segundo Edson Giusti, é a mais perfeita tradução da classe C: “É a nova brasileira, bonita, elegante e com credibilidade”.
CAMPEÕES DE AUDIÊNCIA*
As celebridades que mais apareceram em publicidade na TV aberta de 1o de janeiro a 15 de setembro de 2013
Ranking
Famoso
Inserções
1º
Reynaldo Gianecchini
7.294
2º
Gisele Bündchen
4.774
3º
Neymar
4.513
4º
Ronaldo Fenômeno
4.257
5º
Regina Casé
3.837
6º
Patricia Abravanel
3.508
7º
Bruno de Luca
3.051
8º
Claudia Leitte
2.540
9º
Raí
2.217
9º
Beyoncé
2.217
10º
Adriane Galisteu
2.153
Exército de um homem só
Escrevo este texto dentro de um quarto apertado, em plena guerra civil síria, motivado apenas pela esperança de enxergar um futuro. Sou fotógrafo, brasileiro, e estou em Aleppo, a maior cidade do país, aonde vim fotografar não a morte, mas a esperança que nasce dos escombros — também vendo fotos e vídeos desse conflito para jornais nacionais e internacionais. Quando decidi me jogar no mundo e perseguir as histórias dos refugiados, sabia que iria enfrentar grandes obstáculos (materiais, pessoais e psicológicos), mas tenho passado momentos extremos que me fazem descobrir novas possibilidades em tudo: na dor, na felicidade e também no medo. Por muitos anos quis dar um significado importante à minha vida. Tinha muitos sonhos, mas não sabia qual o caminho a trilhar. Hoje percebo que todas as rotas que segui se conectaram, me trazendo para este lugar: das montanhas geladas do Irã ao calor de Bagdá, passei por Egito, Turquia, Palestina até me encontrar em meio aos refugiados. Há três anos, depois de juntar uma grana, concebi o projeto Kitchen4life com o propósito de mostrar a realidade das vítimas da guerra, das crianças que perderam tudo, expressando a minha dor em ver alguém sem absolutamente nada. Talvez seja uma forma de exorcizar meus demônios. Sabia que minha caminhada seria solitária, pois dificilmente alguém iria querer deixar o conforto da rotina para se jogar no desconhecido, em busca da verdade de outras pessoas. Deixei minha família, minha filha de 4 anos está crescendo sem um pai presente, tudo porque estou engajado nessa causa. Mas quero ajudar pessoas que perderam tudo, que abandonaram suas casas para viver em uma tenda em outro país, cercadas por grades, vivendo uma liberdade corrompida. Aqui na Síria, a tristeza nos leva a pensar na vida, pois os refugiados vivem um dia de cada vez Sim, os refugiados vivem uma falsa liberdade, mas o que seria deles se não fosse isso? O campo de Al Zaatari, localizado em uma pequena cidade chamada Mafraq, no norte da Jordânia, abriga 200 mil sírios que aguardam o fim do conflito para retornar ao que restou de sua terra, pois suas casas, bem, elas não existem mais. Os refugiados são apenas famílias destroçadas que deixaram corpos de filhos pelo caminho; são crianças que vivem do presente, sem saber qual futuro as espera. Ali encontrei a realidade mais explícita já vista por mim e, ao conversar com as pessoas, percebi que elas me tinham como um portador de suas verdades e que meu verdadeiro dever era o de transmitir a dor que sentem. Aqui em Aleppo, a tristeza sempre nos leva a pensar na vida, pois os refugiados vivem um dia de cada vez. A esperança é considerada um sonho, no mesmo sentido que muitos no Brasil sonham em ter uma Ferrari. Ao mesmo tempo, as pessoas sofrem por ter ficado na Síria, sofrem por terem ido a um campo de refugiados, sofrem por viver. Outras não sofrem mais, pois morreram. Essa guerra já vitimou mais de 100 mil pessoas. Ainda assim, meu objetivo nunca foi mostrar os mortos, ainda que o mundo foque a destruição. Eu foco a esperança, a f lor que surge nos escombros, a vida que nasce da guerra. Fotografo lugares que foram esquecidos pelo Ocidente, que estão fora da mídia, lugares que nunca imaginei que existissem. Sou minha única companhia, mas meu maior medo hoje é gostar da solidão DOSE DE SOLIDÃO O mais interessante de uma jornada solitária é que você não tem que dar satisfação a ninguém, você trilha seu rumo e sofre as consequências. Na maior parte do tempo, sou minha única companhia, meu único amigo. Somos capazes de descobrir preciosidades dentro de nós quando estamos nessa situação. Sempre vou aconselhar às pessoas uma dose de solidão, pois, se não nos conhecermos, como poderemos conviver? Enquanto formos egoístas, estaremos fadados ao nosso próprio abismo. Meu maior medo hoje, porém, é gostar da solidão. Enquanto escrevo este texto, uma bomba estoura a cada 10 minutos. São 3 horas da madrugada, é impossível dormir. O barulho delas faz as paredes tremerem e entra em meu corpo. É por isso que as pessoas aqui passam a amar mais a vida, pois amam enquanto podem. As bombas são como ponteiros de um relógio: a cada estrondo, as horas passam e a morte se aproxima. Vai lá www.gabrielchaim.com // www.kitchen4life.orgO fotógrafo Gabriel Chaim já passou por Dubai e Istambul registrando os melhores restaurantes, mas a vida nos campos de refugiados no oriente médio desviou sua rota gastronômica. Agora, ele está na Síria, no meio do fogo cruzado da guerra civil, sozinho na busca por esperança.
Wingsuit
A paisagem é riscada por um ponto em alta velocidade. Durante o voo, asas tiram fino de um paredão rochoso e rasantes são desferidos a poucos metros das copas das árvores e do chão. O objeto voador poderia ser confundido com uma ave de rapina, mas a cena é protagonizada por outro tipo de animal, um que, a princípio, não é dotado da habilidade de voar: um homem trajando um wingsuit, nome do traje especial com asas embaixo dos braços e entre as pernas. As primeiras versões dos wingsuits surgiram na década de 1930 e, nos anos que se seguiram, dezenas de pessoas basicamente deram suas vidas para aprimorar o equipamento (entre 1930 e 1965, 71 das 75 pessoas que usaram o traje morreram em testes). As versões mais modernas e estáveis surgiram na década de 1990, pelas mãos da lenda do paraquedismo Patrick de Gayardon, francês que levou o esporte a um novo patamar – entre suas acrobacias mais célebres está a de saltar de um avião e voltar a ele sem abrir o paraquedas. Gayardon morreu em 1998, testando, justamente, um wingsuit. Desde então, a técnica dos praticantes e a tecnologia dos trajes levaram à criação de uma modalidade ainda mais desafiadora, o voo de proximidade (proximity flying), na qual o atleta passa a poucos metros de pontes, árvores e montanhas. Alguns poucos se arriscam em uma versão mais extrema, chamada de terrain flying, ao ficarem a centímetros do chão. A margem que separa os atletas de um acidente fatal é tão pequena que é difícil para uma pessoa comum não taxá-los de “malucos viciados em adrenalina”. Fernando Gonçalves, 34 anos, é um dos mais experientes pilotos brasileiros de wingsuit e dos poucos a se arriscar nas vertentes mais extremas. “Me incomoda um pouco ser taxado de louco. Existe uma ciência por trás desses voos”, diz ele. “Além do mais, treino todo dia. Fazemos todos os estudos, os cálculos, a leitura da montanha, do tempo, do clima e dos ventos. Eu dedico minha vida inteira a isso.” Entretanto, mesmo com toda a técnica e dedicação, o esporte continua a fazer um número aterrorizante de vítimas. Apenas em 2013 foram mais de 20 mortes – cinco delas em um período de apenas sete dias do mês de agosto. A que ganhou repercussão mundial foi a do paraquedista britânico Mark Sutton, que ficou famoso ao servir de dublê para o ator Daniel Craig, o atual 007, na abertura dos Jogos Olímpicos de Londres. Entre os brasileiros, o alpinista e base jumper Fernando Motta sofreu um acidente fatal em Utah, nos Estados Unidos, ao tentar um voo de aproximação. Se voar muito próximo ao Sol foi o que condenou Ícaro na mitologia grega, para Nicola Martinez, parceiro de Fernando Motta em diversas escaladas e saltos, o ímpeto de voar cada vez mais rente às paredes e, especialmente, ao chão é a principal causa dessas mortes: “O terrain flying é o culpado por quase todas as mortes que aconteceram este ano no wingsuit. Está na hora de a gente dar um passo pra trás e reavaliar os limites desse esporte”. O próprio Nicola tomou essa distância há alguns anos, depois do acidente que vitimou sua mulher, Allisyn. “Ela teve um impacto contra a parede com o paraquedas já aberto. Foi um momento muito difícil da minha vida, que me fez repensar meus valores. Eu levo o wingsuit como um hobby, uma filosofia de vida. É para viajar, conhecer novas culturas, fazer amigos, mas o perigo compensa até certo ponto. Eu quero sempre aterrissar de forma segura e, no fim, tomar uma cerveja e dar risadas com a turma assistindo aos vídeos”, diz. O registro em vídeo, aliás, é outro ponto levantado por Nicola como uma possível causa para o elevado número de acidentes recentes. “Essa geração YouTube tá puxando o limite de forma inconsequente, saltando sem experiência e sem ter o completo controle dos trajes. Os praticantes estão queimando etapas importantes”, afirma. Fernando concorda: “Os vídeos que a gente posta são irados, né? Colando nas paredes, dando rasantes perto das árvores. Vendo no vídeo parece fácil, mas e as dezenas de voos que foram abortados? Esses ninguém vê”. Se as estatísticas parecem tão desfavoráveis, por que as pessoas continuam se arriscando? “É um silêncio, uma concentração e uma conexão com a natureza inacreditáveis”, conta Fernando. “Passar próximo de uma árvore, de uma pedra ou do chão te dá uma referência de velocidade, de plano... É difícil de explicar. É o homem voando.” Ainda que exista a pressão de patrocinadores, o narcisismo digital e a vontade de chegar cada vez mais próximo dos obstáculos, entre outros fatores que levam atletas a desrespeitarem os próprios limites, os dois fazem coro: “É uma atividade que não dá margem para erros”. Mesmo com toda a técnica dos praticantes, em 2013 foram mais de 20 mortes Ignacio Aronovich/Acervo Trip SEM LIMITES - Sabia (acima) foi o primeiro brasileiro a usar um traje de Wingsuit. Para ele, ninguém está forçando a barra - os atletas estão apenas se aprimorando no esporte “Pessoas arriscam suas vidas por vários motivos, não necessariamente para atingir um novo patamar no esporte, por exemplo. Saltei de wingsuit de milhares de lugares diferentes e, depois de 14 anos de prática, continuo na ativa, voando sempre que possível. Como tudo na vida, existem atletas bons, excelentes e medianos, além de vários ‘pregos’ com dinheiro e sem categoria, vocação ou domínio. Assim como os equipamentos, os atletas estão evoluindo. Agora, acidentes acontecem: calouros morrem porque não sabem onde estão e bons pilotos morrem porque abusam.” Luiz Sabiá/Acervo Trip PERTO DEMAIS - Luís Roberto Formiga (acima) já experimentou todo tipo de salto que se possa imaginar. Aqui, ele dá sua opinião sobre o proximity flying “Eu participei da história do wingsuit desde o começo, acho até que a primeira roupa feita no Brasil foi minha. A ideia sempre foi permanecer mais tempo no ar e poder voar que nem um pássaro. Naquela época, a gente nem pensava em algo como o proximity flying. É claro que pra quem vê de fora parece loucura, mas o desenvolvimento das roupas e dos procedimentos permite que o cara faça um voo completamente radical e relativamente seguro – não é uma atividade suicida, mas um esporte de alta performance. O problema é que as roupas ficaram muito acessíveis, o que pode ser perigoso demais. O limite entre morrer e sobreviver a um voo de proximity é muito tênue. Graças a essa facilidade, tem muita gente negligente, sem conhecimento e preparação necessária se jogando e se matando. Do outro lado, tem um pessoal experiente, com toda a capacidade e conhecimento, que está obcecado pelo aumento da performance, em passar mais perto e mais rápido dos obstáculos pelo prazer de desafiar os limites. É aí que acontece um acidente.” O Wingsuit deu asas ao homem. Mas práticas extremas provocaram mais de 20 mortes no esporte apenas este ano. Qual é o limite para esses voadores solitários?
Farinha do mesmo saco
– Bicho, sou seu irmão. Foi assim que Jacques contou para Marcelo que eles eram filhos do mesmo pai. Marcelo não estranhou, não pediu exame de DNA. Disse apenas... “Eu sei”, apesar de a hipótese de ter um irmão perdido por aí nunca ter passado pela sua cabeça antes. “Na hora, o coração saiu do meu corpo e entrou no dele. A sensação foi essa, como se houvesse uma ponte entre os dois corações. Falei: ‘Deixa eu te abraçar, te cheirar, te sentir’. Foi o momento mais feliz da minha vida”, lembra Marcelo, emocionado. Não é todo dia que se vê um sujeito assim baixar a guarda e abrir o coração. Afinal, estamos falando de Marcelo Biju, definido pelos amigos como “o cara mais casca-grossa de todos”, que nas várias temporadas que passou no Havaí pegou ondas do tamanho de pequenos prédios só na remada e aprendeu com os locais a caçar javalis. Que é um dos raros brasileiros a ser respeitado – e até querido – pelos Black Trunks, grupo de surfistas que preservam, muitas vezes na base do tapa, o localismo em certas praias havaianas. Que carrega tatuada na barriga a setença “Death to the enemies” (Morte aos inimigos) e nas costas “Only the dead will see the end of war” (Apenas os mortos verão o fim da guerra). Mas que, faz pouco tempo, exibe também um “Jacques” em letra cursiva gravado no lado direito do peito. O homenageado, por sua vez, pediu para escreverem “Death or glory” (Morte ou glória) na lateral do abdome – a frase foi dita por Marcelo enquanto ele se olhava no espelho numa cena da série Sangue, suor e javali, protagonizada pelo próprio recentemente no canal Off. Jacques assistiu ao episódio na época, e sabia que o personagem principal era seu irmão do Rio de Janeiro que ele ainda não conhecia. Ali Jacques descobriu mais coisas sobre Marcelo, já que antes tudo que sabia era seu nome. E viu também, pela primeira vez, diversas imagens do pai. Enquanto isso, Marcelo sequer desconfiava que tinha outro irmão além de Roberta. Não faltam semelhanças e coincidências em suas biografias, algo que talvez a genética ou apenas o acaso consiga explicar Antes de o programa ir ao ar, Jacques já tinha visto Marcelo pessoalmente algumas vezes e até trocou algumas palavras com ele. No Fashion Rio de 2009, os dois foram apresentados por amigos em comum. “Ele foi tão gente boa comigo, ofereceu de ficar na casa dele no Rio e tal, que achei que ele já sabia de tudo”, diz Jacques. Mas foi apenas em março último, em um jantar no meio da semana em um restaurante, que ele ganhou coragem e soltou: “Bicho, sou seu irmão”. A história de Marcelo Biju e Jacques Dequeker (os dois preferem não revelar as idades) é tão fantástica que parece ficção, plot de um filme de Almodóvar. Mas é verídica e, diferentemente do último capítulo de uma novela global, foi se desenrolando aos poucos. Jacques tinha apenas 13 anos quando sua mãe jogou a bomba: seu pai verdadeiro não era aquele cara que morreu quando ele ainda era criança, mas sim um tal de Luiz Leopoldo Noronha, mais conhecido como Bijupirá, um exímio mergulhador e caçador submarino que morava no Rio de Janeiro com a esposa e dois outros filhos – Marcelo e Roberta. Na casa dos Dequeker, que moraram em Porto Alegre (onde Jacques nasceu), Guarujá e São Paulo, viviam, além dele, mais sete crianças (Pier, Andrea, Ronaldo, Alexandre, Cassiano, Roberta e Marcos), cuidados pelo seu segundo padrasto e pela mãe – Jacques é o único filho da breve relação dela, “uma francesa de 70 anos inteiraça”, com Bijupirá. Não é de se espantar, portanto, que o pré-adolescente não tenha se empolgado com a notícia de que tinha mais dois irmãos para dividir a atenção e um terceiro pai para vigiar seus passos. “Fora isso”, acrescenta, “eu era muito orgulhoso. Achava que o pai é que tinha que ir atrás do filho.” "Na hora [da revelação], o coração saiu do meu corpo e entrou no dele. (...) Falei: 'Deixa eu te abraçar, te cheirar, te sentir'", lembra Marcelo Em vez de se despencar até o Rio de Janeiro e conhecer a nova família, o jovem preferiu tocar a vida e focar no seu maior sonho: ser jogador de futebol. Chegou a ser um dos ponta-esquerdas do time profissional do Internacional, mas saiu num corte na equipe. Com um amigo, embarcou então para a Califórnia para viver a vida sobre as ondas e ralar em subempregos. Quase virou pescador de caranguejos gigantes no Alasca, mas resolveu voltar para o Brasil. “Eu tinha 26 anos. Era vagabundo, fodido e mal pago”, define. Mas não por muito tempo. Ao regressar, o mesmo amigo que o acompanhou na aventura californiana descolou para Jacques um bico para ser assistente de seu pai, o fotógrafo Pedro Flores. Jacques gostava de desenhar, chegou a fazer alguns anos de faculdade de arquitetura. Mas de fotografia não sabia lhufas. Mesmo assim, pegou o trampo. Dois anos depois, já estava fazendo assistência para big shots do ramo, como Paulo Vainer. E, aos 30 anos, em agosto de 2000, finalmente debutou na carreira solo, clicando a supermodelo Shirley Mallmann para a capa da revista Vogue. "Meu pai é meu herói. Dói saber que o Jacques não conheceu ele. Os dois são muitos parecidos, é assustador", lamenta Marcelo Coruja, a mãe resolveu ligar para Bijupirá e revelar que o lance dos dois, ocorrido em Búzios (RJ) décadas atrás, tinha rendido um fruto: seu nome era Jacques, ele usava o sobrenome da mãe e estava no expediente de uma das principais publicações de moda do mundo. A boa notícia veio na pior hora para Bijupirá. Dono de uma apneia de deixar qualquer um sem ar, ele descia mais de 30 metros em direção ao fundo do mar para resgatar outros mergulhadores. Mas assim que saía da água acendia um cigarro. Descobriu, ao mesmo tempo, que tinha um filho que não conhecia e que um câncer havia se instalado em seu pulmão. Bijupirá resolveu ficar na sua. Morreu em 2002, sem conhecer o outro homem que deu ao mundo. “Meu pai é meu herói. Dói saber que o Jacques não conheceu ele. Os dois são muito parecidos, é assustador”, lamenta Marcelo. Sempre agarrado ao pai, ele herdou o apelido de Bijupirá, o peixe que está sempre acompanhando outro peixe. Quando soube da morte do pai, Jacques resolveu que era hora de ir atrás de Marcelo. Mas com calma, para dar tempo de a cabeça se acostumar com a ideia. Depois dos poucos encontros fortuitos que tiveram, sem ele nunca revelar a Marcelo que os dois tinham o mesmo sangue correndo nas veias, Jacques pediu para um amigo dos dois marcar um jantar. “Pensei: foda-se, agora eu vou falar. O máximo que vai acontecer é eu dar na cara dele”, conta. Papo vai, papo vem, Marcelo começou a narrar algumas histórias do pai. Foi a deixa para Jacques soltar o jab: “Bicho…”. O golpe nem de longe derrubou Marcelo. Pelo contrário, lhe deu novo ânimo. Há quase sete anos sem surfar, por conta de uma contusão no ombro, ele não vê a hora de subir numa prancha novamente. “Senti uma alegria que não dá para explicar. Sempre faltou um irmão na minha vida. Por isso tratava meus amigos como irmãos, mas os que eram fiéis de verdade morreram ou me decepcionaram”, desabafa. "Agora tudo que quero é cuidar dele, dar o amor que meu pai não deu." Na prática, são apenas oito meses de irmandade. Mas, para quem olha de fora, parece que os dois se conhecem desde sempre. Não faltam semelhanças e coincidências em suas biografias, algo que talvez O shape, troncudo e tatuado, é quase igual. A cara de mau, que se esvai tão logo o papo engrena e a intimidade cresce, também. Ambos têm – ou pelo menos tinham – fama de brigões. “Prefiro dizer que a gente é justiceiro. O meu pai, ou melhor, nosso pai, também era assim, sempre defendia os mais fracos”, explica Marcelo, que já treinou boxe e é discípulo da família Gracie no jiu-jítsu. Jacques tem um currículo parecido: entrou no boxe aos 19 “para ver se acalmava um pouco”, pratica muay thai e, desde que conheceu o irmão, é do jiu-jítsu também. Filho e irmão de peixe, peixe é. Apesar de ter entrado mais tarde no cardume, não restam dúvidas de que Jacques é um autêntico Biju. Pegou muita onda na vida (“Mas muito menores que as do Marcelo”) e é um hábil – e corajoso – mergulhador, vide sua famosa série de fotografias de tubarão. "Nossa ligação é muito forte. Sei exatamente o que ele está pensando. Osu o único que entende esse louco aí", manda Jacques Agora, tudo que os dois querem é se divertir com as paixões em comum, compartilhar um com o outro suas histórias de vida e… ser irmãos, enfim. “Queremos fazer um documentário sobre isso tudo, pegar onda no Havaí”, anuncia Jacques. “Lutar, mergulhar com tubarão”, emenda Marcelo. Desde março, os dois se falam dia sim, dia também, no telefone. Jacques mora em São Paulo, mas sempre que dá vai ao Rio visitar Marcelo e já tem até a chave do seu apartamento. “Nossa ligação é muito forte. Sei exatamente o que ele está pensando. Sou o único que entende esse louco aí”, manda Jacques, tirando uma com a cara de Marcelo. Sabe como é, coisa de irmão.
a genética ou apenas o acaso consiga explicar.
Viagem Interior
Bob Wolfenson Charles Cosac_ Saí de casa muito cedo, aos 15 anos, e nessa idade morar só para mim ainda não dizia respeito à solidão, mas sim ao fato de eu estar distante de minha família, para onde jamais retornaria. Como isso faz mais de três décadas, talvez nunca tenha pensado no assunto, pois morar só, na minha vida, não foi uma escolha deliberada, foi o destino misturado ao hábito e ao meu temperamento. Não me ocorre uma segunda opção para um homem que não constituiu família, tampouco busca companhia. Ainda que desde sempre tenha havido relacionamentos a distância, morar só também implica a condição de solteirice. Solteirões normalmente residem sozinhos. Há certa vulnerabilidade no ser só, da qual, quando jovem, sentia-me refém. A solidão também tem um sentido de desocupação e disponibilidade. O ser só recebe ligações de madrugada, pois não há bebê a ser acordado; visitas ou hóspedes súbitos, pois há espaço; até sinceros acadêmicos que não têm onde se hospedar durante suas pesquisas in situ. Ademais, São Paulo nesse aspecto é muito parecida com Londres, Paris e Nova York: há sempre alguém chegando, alguém partindo, algo acontecendo na cidade que atrai um turbilhão de visitantes e afins. Embora tenha me sentido refém, devo aqui dizer que isso não passou de sentimento. Jamais me permiti ser acometido por alguma dessas situações. Com isso, também chamo a atenção de que há grande diferença entre morar só em São Paulo ou, por exemplo, em Niterói (RJ). Mesmo que contemple essas situações, mesmo que meu corpo habite só há tantas décadas, pensando retrospectivamente, ainda quando residia com meus pais, tios, em internatos, alojamentos universitários, quartos em casas de família, com amigos etc., eu sempre tive a certeza de estar só, uma noção fortíssima do ser-indivíduo que talvez tenha nascido comigo. Portanto todos esses lugares, todos esses endereços de nada significaram. Acredito que meu corpo seja meu lar e minha alma, minha lareira. *Charles Cosac, 50 anos, é presidente da editora Cosac Naify, em São Paulo. Arquivo Pessoal/AKPE Lama Michel Rinpoche_ Eu fico bastante tempo sozinho quando estou em estudos no Tibete. Mas, no Brasil, só fico sem companhia quando vou dormir. No restante do tempo, estou à disposição das pessoas – para encontros particulares, em grupo, em ensinamentos e reuniões. O que é estar só? Uma coisa é estar isolado fisicamente das pessoas; outra é estar numa cidade em meio a milhões de pessoas, mas sem ter contato profundo com ninguém. O período mais longo que fiquei fisicamente sozinho foram 50 dias no Nepal, onde fiz um retiro de meditação. Foi uma experiência maravilhosa. Eu meditava 12 horas por dia e o resto do tempo lia. Eu não via e nem falava com ninguém. A comida era deixada num quarto separado. O problema de tentar se concentrar em algo é que a mente fica pulando de um objeto a outro, porque há uma quantidade de estímulos muito grande. O objetivo do retiro é estar livre de estímulos desnecessários. Se você faz um retiro apenas para se isolar do mundo, pode entrar em depressão. Mas, se tem um objetivo claro de autoconhecimento, não. Muitas vezes a necessidade de estar em companhia decorre de precisarmos de alguém para afirmar nossa identidade. Damos mais importância ao que o outro vai dizer do que àquilo que nós mesmos pensamos. A pessoa coloca um post no Facebook ou uma foto no Instagram e fica na expectativa de quantos vão gostar e fazer comentários. O que é isso? Uma necessidade de reconhecimento. O problema com essas tecnologias é que a gente se conecta com o mundo e se desconecta de nós mesmos, porque a mente está sempre em busca da opinião do outro. Isso aumenta a dificuldade de estar presente, no momento presente, no lugar onde eu estou. Não é porque a pessoa está em companhia que ela necessariamente está bem. Ela pode estar acompanhada e sentir solidão. Você percebe pelo olhar, pela forma como se comporta. Uma das razões de existir uma visão negativa de quem é visto só é que há uma idealização do relacionamento entre duas pessoas. Mas estar com alguém não é nem a solução nem a causa do sofrimento. Quantas vezes não vemos casais numa mesa de restaurante sem trocar uma palavra, apenas com os olhares vazios voltados para as telas de celular? O importante não é estar sozinho ou com alguém. Quando conseguimos ficar em equilíbrio com nós mesmos, estamos bem – não importa se estamos sós ou com companhia. Por isso, convido cada um a observar a si mesmo e perguntar: eu tenho dificuldade de ficar sozinho? Se sim, que tal dedicar um pouco de tempo para ficar só, sem medo? Estar sempre em companhia muitas vezes acaba sendo apenas uma forma de fugir de si mesmo. *Lama Michel Rinpoche, 32 anos, é mestre budista da tradição tibetana. Nascido em São Paulo, mora na Itália e passa três meses do ano no Tibete. Estará no Brasil de 11 a 22 de dezembro. Seu site é: centrodedharma.com.br. Arquivo Pessoal Amyr Klink_ Desde que iniciei as minhas viagens de barco, em 1984 – quando fiz a primeira travessia solitária do Atlântico sul a remo, indo da costa da África até a do Brasil –, eu nunca me senti só durante a navegação, sempre estive ocupado. Esse não é um mundo para quem é frágil emocionalmente. O cara que não basta a si mesmo não tem competência para a navegação solitária simplesmente porque não dá muito tempo de sofrer de saudades da família ou da namorada. Minha viagem mais longa foi de 642 dias, no continente antártico e uma escala no ártico, entre 1990 e 1991. Para uma expedição como essa é preciso ter uma máquina que você conheça profundamente e ela tem que ser formidável. É uma demanda extrema em cima de um indivíduo que precisa ter muito autocontrole e equilíbrio. O navegador solitário não dispõe de muito tempo para ficar filosofando. Ele se envolve tecnicamente com a empreitada. É a mesma reflexão de um cara pilotando um carro de Fórmula 1: você tem que cuidar da estratégia, ficar de olho na meteorologia e prestar atenção no seu equipamento. Qualquer um sabe velejar ou aprende, mas na navegação solitária é necessário ter competência técnica aliada à psicológica. O preparo não é só o desprendimento para se atirar sozinho três meses no mar. É preciso ter controle emocional e habilidade técnica para consertar aquilo que quebra. O navegador depende do seu próprio conhecimento e das próprias habilidades para sobreviver. O exercício de ficar sozinho é muito intenso, nesse caso, porque a embarcação demanda de você o tempo todo. Quando você controla sozinho uma máquina, está cuidando da sua vida. A pressão é pelos problemas que acontecem pelo caminho. É cuidar para que nada quebre e, se quebrar, para saber consertar. Se a vela está com uma vibração, você nem consegue dormir de tanta preocupação. É uma navegação que treina você a ter controle em meio ao caos. Ao fim de uma jornada como essa, a sensação é magnífica. Sinto um alívio imenso. Mas é uma pressão que vicia: não demora muito e logo vem a vontade de sentir aquela adrenalina de novo. *Amyr Klink, 58 anos, é navegador com travessias solitárias realizadas entre América, África, Antártida, Ártico e volta ao mundo. Arquivo Pessoal Maurizélia de Brito Silva_ Há 23 anos trabalho na reserva biológica do Atol das Rocas, uma área oceânica protegida a 148 quilômetros do arquipélago de Fernando de Noronha (PE) e a 270 quilômetros de Natal (RN). Permaneço sete meses por ano executando atividades voltadas ao patrulhamento, à pesquisa científica e à educação, visando a proteção integral do único atol no oceano Atlântico sul. O fato de estar em um lugar isolado não me faz um ser solitário, pois, além da presença de pesquisadores, tenho sempre milhares de animais terrestres e marinhos que não permitem essa solidão. São quatro pessoas por expedição, que dura 27 dias, e existe uma vida social intensa porque há uma única moradia, onde ficam o refeitório, o dormitório e o acesso à internet por satélite. Ter comunicação com o mundo externo reduziu um pouco o lado selvagem do Atol das Rocas, mas fez com que a segurança e o bem-estar das equipes aumentassem e minimizassem as intrigas e as crises existenciais. Claro que estar no meio de uma natureza tão viva faz com que os dias sejam agradáveis, principalmente porque amo captar imagens, o que, para mim, serve de terapia e amparo emocional. Se o lugar fosse feio, poderia ser diferente! Já me sinto adaptada às dificuldades como não ter fonte de água potável, a água enviada do continente ser apenas para beber e cozinhar, tudo ser lavado no mar, não ter um banheiro e viver debaixo de alta insolação. O maior desafio não é o de superar as peculiaridades locais, e sim o de trabalhar a espiritualidade e as particularidades emocionais. Tudo se intensifica no confinamento, e não poder resolver determinados fatos externos pode abalar as estruturas. Cabe a cada um se policiar e aprender a peneirar o que realmente é importante e viável para a ocasião. É o que uso como estratégia de adaptação e de sobrevivência para não sofrer tanto de saudades da minha companheira, a bióloga Thais de Godoy, com quem sou casada há 11 anos, da minha família, dos bichos de estimação, dos amigos e de lugares em que às vezes gostaria de estar. Mas essa é a minha vida e eu não saberia viver diferente. *Maurizélia de Brito Silva, 47 anos, é chefe da Reserva Marinha do Atol das Rocas. Billabong/Divulgação Maya Gabeira_ A natureza do meu trabalho exige que eu fique sozinha boa parte do tempo. O surf é um esporte individual, que nos faz passar horas no mar. Quando vou surfar sozinha é um pouco solitário, e confesso preferir quando surfo com amigos, primeiro pela companhia e, segundo, por estimular a evolução no esporte. As viagens também muitas vezes são um pouco solitárias, devido aos lugares onde encontramos as melhores ondas. Quanto mais difícil o acesso, menos gente e maior a probabilidade de acharmos uma onda sem crowd. Então, muitas das vezes passamos muito tempo em praias isoladas, com culturas bem diferentes. Para mim, particularmente, sinto uma solidão devido ao pequeno número de surfistas mulheres que pegam ondas grandes. Acabo viajando sempre com homens, o que me deixa sempre numa posição “diferente”. O que também dificulta é a quantidade de viagens que faço ao longo do ano e o fato de me dividir em três residências: Los Angeles, Brasil e Havaí. Isso já é algo muito peculiar, e dificilmente tenho pessoas com quem posso conviver a maior parte do tempo. A vantagem para mim é que posso utilizar o meu tempo da melhor forma possível quando estou sozinha. Acabo focando muito os meus treinos, o que ajuda nas conquistas como atleta. Às vezes sinto que o isolamento pode ser muito benéfico para a rotina de treinos, mas tem que haver um equilíbrio. Não posso chegar a um nível de desgaste em que perco a motivação e me sinto muito isolada e sozinha. Busco equilibrar períodos de treinamento e viagens com períodos em que passo mais tempo com a família e os amigos, para reenergizar. Acho isso importantíssimo e fundamental para o sucesso. Mas acredito que, na verdade, estar sozinho não é se sentir solitário. Mesmo quando estou sozinha mantenho contato com as pessoas mais importantes na minha vida. Elas me acompanham por Skype e e-mail, o que me tranquiliza e me motiva para seguir o meu caminho e atingir os meus objetivos. *Maya Gabeira, 26 anos, é surfista. Por cinco vezes ficou em primeiro lugar no Billabong XXL, principal premiação mundial de ondas gigantes. Em 28/10, quebrou o tornozelo ao pegar onda em Portugal, mas se recupera bem. Arquivo Pessoal Filipe Masetti_ Há sempre algo desconfortável a respeito de pensar que se está só. Durante os últimos 16 meses, desde que eu saí da cidade de Calgary, no Canadá, passei muito tempo viajando sozinho, com meus pensamentos e o som do vento soprando. Eu e meus cavalos ficamos muitos dias sem ver nenhum ser humano. Foi muita solidão. Mas estar sozinho na estrada é algo terapêutico para mim, é minha maneira de estar em contato comigo mesmo. A experiência permite algo que normalmente nunca temos tempo de fazer: uma longa conversa consigo mesmo. Sei que essa ideia parece meio louca, mas é extremamente recompensante. Depois de alguns dias conversando somente com os meus cavalos, eu comecei um diálogo interno. Você é feliz, Filipe? O que está acontecendo com sua vida agora? Como você gostaria que fosse seu futuro? Foram algumas das questões que fiz enquanto atravessava as montanhas rochosas. As respostas às vezes são difíceis e só vêm com o tempo, mas, quando tempo é tudo o que você tem, elas acabam emergindo. Passar por longos períodos de solidão me fez desejar a conexão com outras pessoas, me fez descobrir que a vida não significa nada sem alguém para dividi-la. Quando eu estava atravessando uma montanha no sul do Wyoming só, eu cheguei numa cidadezinha desesperado para falar com alguém. Como por milagre apareceu na minha frente a casa de um senhor idoso que morava sozinho. Nos dois dias seguintes, fui tratado como seu neto e ouvi todas as suas histórias como se ele fosse o meu avô. Nós dois precisávamos um do outro. Eu nunca vou esquecer desse encontro. *Filipe Masetti, 26 anos, é um jornalista brasileiro que saiu do Canadá a cavalo para cruzar a América rumo ao interior de São Paulo. A viagem, que teve início em julho de 2012, percorrerá 16 mil quilômetros. Batizada de Journey America, a aventura pode ser acompanhada em: www.outwildtv.com/expeditions/journey-america Depoimentos a Lia Hama, Felipe Maia e Camila AlamUm editor de livros, um mestre budista, um navegador, uma guardiã de reserva marinha, uma big rider e um aventureiro contam por que passar muito tempo sozinho pode, SIM, trazer felicidade
Pressão Alta
Eles trabalham quatro meses por ano, ganham bonificações dez vezes maiores que o salário e se aposentam em 25 anos, Trampo dos sonhos? Não exatamente. A rotina de romper com as barreiras do próprio corpo cobra um alto preço dos mergulhadores saturados Enclausurado a mais de 200 metros de profundidade, o mergulhador Sandro Zozo percebe que a pressão do ar dentro do sino começa a diminuir. Então, a água invade o local. Válvulas são abertas na tentativa de conter a enchente, mas nada parece funcionar. Ele trava um diálogo desesperado com um funcionário na plataforma. Sua voz está modulada ao tom Pato Donald devido à inspiração de hélio (presente na mistura gasosa que torna possível respirar em tal ambiente). Logo, o mergulhador se vê com a água no pescoço, e o único jeito de sobreviver é usar o cilindro de oxigênio. A inundação só é interrompida quando todo o sino está alagado. Quem faz mergulho saturado (o nome é porque, em profundidades assim, o organismo do mergulhador fica saturado: chega ao limite da absorção dos gases que existem na mistura respiratória) costuma não ter uma segunda chance após um acidente desses, o que garante à profissão o grau de insalubridade máximo. Depois do acidente, Zozo, 38 anos, viu a pressão psicológica aumentar mais que a pressão atmosférica debaixo d’água. “Tive pesadelos e flashbacks do que aconteceu”, diz o mergulhador, posteriormente diagnosticado com ansiedade e estresse pós-traumático. Até então, ele acumulava oito anos de experiência e cerca de 30 confinamentos em câmaras hiperbáricas como a daquele mergulho. Dentro delas, Zozo e os demais operários do mar ficam por quase um mês. São grupos de quatro a oito pessoas, espremidas em um espaço cilíndrico de 2,5 metros de diâmetro. Eles comem (praticamente em pé), dormem e trabalham isolados do mundo. Com uma espécie de elevador, o sino, eles chegam a profundidades extremas onde ficam por até 6 horas realizando a manutenção de tubulações e redes extratoras de petróleo. O dinheiro vai embora com tatuagens, viagens, festas e mulheres - e o mergulho torna-se um vício perigoso Na hora de voltar para o mundo real, muitas vezes, o peso do oceano é substituído pelo peso do confinamento. Entre fotos da família e solidão cotidiana, é comum ouvir choros nos camarotes. “Todo mundo que satura sonha que está fora da câmara”, diz Zozo. A parceria acaba sendo necessária à sobrevivência. Enquanto chora, o mergulhador recorda da vez em que seu compadre e parceiro de câmara socorreu sua esposa grávida após o rompimento da bolsa. “Ele chegou antes de mim em terra e disse para não me falarem nada até eu voltar à superfície”, lembra ele. Para muitos, o alto preço do quase cárcere vale a recompensa. A cada saturação de 28 dias, o mergulhador ganha cerca de R$ 32 mil, praticamente dez vezes seu salário mensal – mas, por lei, só é permitido fazer quatro mergulhos desse tipo por ano. Em pouco tempo no emprego, Zozo comprou um apartamento mobiliado, trocou de carro e passou a frequentar restaurantes caros. Alguns colegas não mantêm o prumo. O dinheiro vai embora com tatuagens, viagens, festas e mulheres – e o mergulho torna-se um vício perigoso. “Tem cara de 50 anos que faz saturação e não tem uma casa”, diz ele. FÔLEGO DE SOBRA Apesar dos excessos de outros mergulhadores do gênero, Adalberto Barbosa da Silva está há muito tempo na linha. Com 67 anos, se diz o mais velho mergulhador saturado em atividade no Brasil. Desde 1978, ADB, como é chamado pelos companheiros, deixa a família em terra e parte para o confinamento. O mergulhador teria direito a aposentadoria especial após 25 anos de serviço, pelo grau de insalubridade da função. Em vez disso, deu entrada na previdência social com 30 anos de carteira e continuou a mergulhar. “Só assim para conseguir manter um padrão de vida de classe média alta”, afirma. Barbosa já chegou à marca de 316 metros de profundidade, uma das mais extremas já alcançadas no mundo. “Hoje em dia eu não sinto nada diferente nos mergulhos: não fico com ansiedade ou com alguma coisa no peito”, diz. Quando começou na profissão, o único contato com o mundo era via rádio. Atualmente, há câmaras equipadas com televisão e computador com internet. A tecnologia das ferramentas de trabalho também evoluiu, mas os problemas de saúde nos sinos e nas câmaras de mergulho persistem. Por conta da alta pressão, o ar atmosférico é substituído por soluções chamadas Heliox ou Trimix, nas quais o nitrogênio é trocado por hélio – ao mesmo tempo, herói e vilão da saturação. UM MAR DE PROBLEMAS Sem o hélio, os mergulhadores seriam embriagados em um processo denominado narcose (em que o nitrogênio é absorvido pelos tecidos do corpo e passa a retardar os impulsos nervosos). A absorção do gás substituto do nitrogênio, no entanto, deixa a voz mais aguda e o paladar menos apurado. As refeições, entregues periodicamente através de uma pequena antecâmara, ganham gosto metálico. “Você leva sua Segundo ele, a situação ruim seria pior sem o sistema de confinamento. A câmara evita as doenças descompressivas. Causadas pelo escape de gases das células, elas podem levar à morte. “Quando você volta muito rápido à superfície, a pressão é diminuída e o gás forma bolhas no corpo”, explica ele, comparando a reação a uma garrafa de refrigerante quando aberta. Dos 28 dias confinados, cerca de dez deles são dedicados a dessaturação (o retorno à pressão superficial), segundo Vivacqua. O médico já sentiu no próprio corpo a pressão a que os operários saturados são submetidos. Um mergulhador quebrou a perna durante uma operação de manutenção e, como não podia sair da câmara, teve de ser socorrido por Vivacqua do lado de dentro. “Saturei e montei um mini-Centro de Tratamento Intensivo na câmara”, diz o médico, responsável por avaliações constantes dos mergulhadores da Bacia de Campos (Rio de Janeiro). Ele reconhece que atualmente as doenças por descompressão são raras, superadas pelos problemas psicológicos. “Não é qualquer um que aguenta esse confinamento, o cara tem que ter uma cabeça muito boa”, diz. "Não é qualquer um que aguenta esse confinamento, o cara tem que ter uma cabeça muito boa", diz o médico Renato Vivacqua, especialista em mergulho saturado Todos os mergulhadores saturados atendidos por Vivacqua são contratados da Fugro, empresa que, atualmente, está sozinha na realização dessa atividade no Brasil, sendo terceirizada pela Petrobras. “Qualquer setor com só uma empresa no mercado cai em qualidade de serviço e funcionários”, afirma Nélio César de Almeida, membro do conselho fiscal do Sintasa, sindicato da categoria, e mergulhador experiente que abandonou a atividade com dores na coluna. Máquinas são utilizadas em algumas atividades ou em profundidades maiores que 300 metros, mas ainda não substituem o humano. “O robô faz o feijão com arroz”, diz Sandro Zozo. Após o acidente em 2012, ele não consegue mais entrar em um sino de mergulho. Tudo o que quer é mudar de função dentro da Fugro (discussão que está na justiça). Trip entrou em contato com a empresa, mas ela não se manifestou até o fechamento desta edição. Abalado, Zozo não topa nem colocar a máscara na cabeça para a sessão de fotos desta matéria. Ainda carrega a pressão de quem escapou da morte no fundo do mar. FORMAÇÃO NÃO SATURADA Faltam cursos de especialização tanto para os mergulhadores quanto para os médicos que cuidam deles “Deus é brasileiro e hiperbaricista.” Renato Rocha-Jorge (foto à dir.) toma a frase emprestada de um amigo para definir o mergulho no país. Ele é um dos sócios da Divers University, um dos poucos centros que ofereciam curso de mergulho saturado no Brasil. Atualmente, a formação na área é ministrada apenas pela Marinha no Centro de Instrução e Adestramento Almirante Áttila Monteiro Aché (Ciama). Ainda que restrita, a formação está aquém de padrões europeus, segundo Rocha-Jorge. “O mergulho brasileiro é amador”, diz ele. A norma reguladora da atividade, a NR-15, está defasada em 30 anos, enquanto o seu equivalente das Forças Armadas, a Normam, nem sempre é utilizado nos navios. A medicina específica também sofre. “Nem todo médico sabe tratar um mergulhador”, afirma Irene Demetrescu, instrutora da DAN, associação internacional dedicada à segurança de mergulhos recreativos. “A medicina hiperbárica não é tratada como especialidade, mas, sim, como área de atuação”, diz.
pimenta de casa e um quer ter a pimenta mais forte que a do outro”, conta Zozo. Além disso, o hélio dificulta a regulagem térmica do ambiente, tornando comum discussões sobre a temperatura. Como adicional, a umidade nas câmaras facilita o ataque de bactérias e fungos à pele, às unhas e aos ouvidos, como afirma o doutor Ricardo Vivacqua, um dos maiores especialistas em medicina hiperbárica do país.
Deu um caldo
Autointitulado “o maior festival sertanejo do mundo”, o Caldas Country é acusado de deixar um rastro de destruição em Caldas novas. Nosso repórter foi até lá e conta a real Jordi Burch Caldas Novas praticamente cochilava na madrugada do feriadão de 15 de novembro. Uma boate aberta, pouca gente nos bares, alguns vultos andando com garrafas de vodca na mão. Enfim, tudo num clima de monastério tibetano, comparado com as cenas de uma turba insana pirando nos tetos de frotas de caminhonetes 4x4 que havíamos visto na internet antes. Pelas ruas, alguns carros da polícia já marcavam presença. A edição de 2012 do Festival Caldas Country havia deixado uma mácula no universo sertanejo com tiros, brigas, ruas entupidas de motoristas ensandecidos, equipamentos de som ensurdecedores e um carro incendiado (pelo próprio dono). Imagens como a de um casal transando em público e de festeiros pulando em cima de um trailer da polícia correram o Brasil. Sites sensacionalistas falaram em 12 óbitos – segundo a polícia, houve três mortes: duas por arma de fogo e uma por acidente de carro. Diante do caos, o Ministério Público chegou a pedir o cancelamento da oitava edição do festival. No ano dos protestos que incendiaram o Brasil todo, as autoridades estaduais e municipais anunciaram que colocariam 3 mil policiais nas ruas, usariam câmeras e destacariam um helicóptero para coibir o vandalismo e a libertinagem. Mesmo assim, o temor de uma nova erupção hedonístico-sertaneja no coração do Brasil era visível. E lá fomos nós, eu e Jordi, nosso fotógrafo português. Dois cowboys de primeira cavalgada, tentando desbravar o universo sertanejo. O flat em que a organização do evento abrigou os jornalistas ficava a uns 40 minutos da arena de espetáculos. Estávamos, portanto, longe do epicentro da bagunça. As primeiras informações que nos chegavam eram de que a polícia estava proibindo qualquer tipo de poluição sonora na cidade. O prefeito, Evandro Magal, postava no Facebook que “carros rebaixados e com sonzão [sic]” seriam apreendidos. “A tranquilidade vai reinar na cidade da família!”, prometia Magal. De manhã, percebo que a vida social do flat gira em torno da piscina. Fazendo jus à fama da cidade (a quem cabe o título de “a maior estância hidrotermal do mundo”), a água é realmente quente e o Sol, pouco piedoso. Essa combinação de calor por baixo e por cima parece deliciar os banhistas. Alguns passam mais de 8 horas imersos. Algumas horas depois, quando chegamos à imponente arena do espetáculo, o clima era de tranquilidade, exceto pelo furor dos cambistas que temem não conseguir vender seus ingressos – no fim do evento, a organização do Caldas Country divulgaria um público pagante de 25 mil pessoas por dia, contra 41 mil em média, do ano passado. É bastante gente, mas fica a dúvida se o slogan do evento – “O maior festival sertanejo do mundo” – procede. Ainda na entrada, enquanto farejamos confusões, somos abordados por um casal simpático de Sorocaba. Jordi Burch Querem posar para fotos. São os primeiros de muitos, que quase sempre perguntam: é para qual site? “Tô achando isso aqui muito desanimado”, reclama a loira Larissa. “Como assim proibiram carro com som alto? Oi? Achei que fosse uma festa.” Quando a festa enfim começa, com o esquenta promovido pelo apresentador Cuiabano Lima, o mestre de cerimônias da noite (com seu bordão que falava em calcinhas subindo e cuecas voando), o público ainda é pequeno e pouco animado. Mas, num piscar de olhos, a pista principal e os camarotes já viraram um formigueiro de gente dançando, se esbarrando e andando com copos na mão. Na frente do palco, o som é tão forte que produz uma pequena lufada de vento. Curiosamente, o Caldas Country só tem camarotes – nada de pistas ou plateia. Ali, os mais modestos ficavam no camarote Extra Vip (a área apenas “Vip” foi extinta neste ano) e os mais “diferenciados”, no Prime. O passe para os dois dias no primeiro saía por R$ 280 (homens) e R$ 250 (mulheres) e dava direito a vodca, cerveja, água e refrigerante liberados. O Prime, cujo último lote foi vendido por R$ 1.200 para homens e R$ 950 para mulheres, contava ainda com energético, uísque e comilança liberada. No bufê encontramos, entre caldos, salgadinhos, frios, pseudosushis e massas, os paraenses Lourival e Wantuil – infelizmente, eles não são uma dupla sertaneja. No momento, trabalham com “madeira, terra, você sabe, essas coisas lá do Pará”, diz Lourival, aparentando certa prudência. Eles deixaram as mulheres em casa e, para todos os efeitos, “viajaram para pescar”. Para quem espera encontrar fazendeiros e agroboys, o público é extremamente diversificado. De acordo com a organização, Brasília é a cidade que mais envia festeiros, num total de 8 mil ingressos, seguida por Goiânia e BH. O Rio de Janeiro, até agora com pouca tradição no gênero, teve surpreendentes mil ingressos. Conversamos com um comerciante de Rondônia, um enfermeiro/acordeonista de Fortaleza, um fazendeiro gaúcho, um policial de Uberlândia, uma professora de química de Duque de Caxias, um dono de loja de tintas de São Mateus (ES), empresários da terraplanagem paulistas e uma estudante de educação física e miss fitness de Unaí (MG). Batemos papo com Anderson, um cara que trabalha no banheiro masculino. Ele chegou há um mês em Caldas Novas, junto com uma legião de neo-candangos que vieram erguer a grande arena do espetáculo. Anderson garante que conseguiu escapar por um instante e pegar sete mulheres na área reservada, na frente do palco. Quero saber o segredo dele: “Tem segredo não, fio. É só agarrar”. A essa altura, no camarote, o pessoal já está meio transfigurado. A maior parte das meninas da festa parece meio padronizada, com minissaias, cabelo liso e decote. Vejo um grupo de caras com chapéus de cowboys e o adesivo “Os mió do Brasil” colado no peito. São uma espécie de caravana de empresários fãs de sertanejo. A maior parte é de São Paulo e veio junto numa comitiva de off-road. Na pista, o público se espreme e canta os edificantes versos de Cuiabano Lima: “Essa bunda não é sua/ Esse peito não é seu/ Isso tudo foi feito/ Com o dinheiro meu”. Quando Ivete Sangalo, enfim, entra no palco (não é de hoje que sertanejo e axé andam de mãos dadas), todos vão à loucura. Segundo dia Jordi Burch Chegamos ao segundo dia de festival. No camarote Prime, encontramos Cleber das Chagas, ou Clebim, um ph.D. em baladas sertanejas. Cria de Vitória, ele tem 29 anos, mede “1,58 e meio” e parece muito mais novo por conta de problemas de crescimento na infância. No mundo da noitada, onde músculos valem beijos e autoestima, Clebim usa da sagacidade como arma. Seu jeito de dançar é carismático, contorcendo-se, fazendo expressões engraçadas. Um cara com estilo próprio numa lavoura de grãos padronizados. Promoter de festas em Vitória, Clebim acaba de se mudar para Goiânia: “Vim tentar ganhar a vida no sertanejo”. Para ele e outros produtores, o Caldas Country mais do que diversão é uma chance para fazer contatos: “Cheguei aqui ontem, só com a mala e um pouco de grana, hoje, já tenho duas casas pra dormir, uma outra para comer e uma promessa de trabalho”, conta. Damos umas voltas com ele e um grupo de capixabas que encontrou. Caras do litoral que se identificam com a cultura sertaneja, algo improvável dez anos atrás. Esbarramos com um dos grupos mais tresloucados da festa. Uma dúzia de garotões, alguns de camisa polo de bacana, outros de chapéu de cowboy, botas “Bruno Montovani”, blusa xadrez pra dentro da calça e cintão. “São os agrônomos”, explica Clebim. A essa altura, no palco, Chitãozinho e Xororó, os decanos do festival, fazem um show arrebatador. Os caras estão na estrada desde 1970 e, mesmo sem os mullets, ainda são capazes de botar uma garotada que nem sempre manja suas músicas pra pular. Encontro com eles no backstage. Quero saber o que mudou na cena desde quando eles despontaram. Chitãozinho responde: “A música sertaneja era segmentada, não chegava nas metrópoles. Hoje, é o maior mercado da música nacional, porque é uma música romântica e dançante. E o pessoal quer se divertir”. O cantor parece ter razão. Uma pesquisa recém-divulgada pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) constatou que a música sertaneja é preferida por 58% dos ouvintes de rádio no país. O sertanejo se tornou mainstream, coincidentemente, ao longo da década da explosão do agronegócio no país. Talvez seja natural que um setor econômico tão poderoso tenha o seu correlato na indústria cultural. Pense em uma grande plantação de soja – um dos carros-chefes do agronegócio. É um campo que se estende uniforme até a linha do horizonte. Isso se chama monocultura. É o que temos de mais contrário à ideia de diversidade. Será que o mercado sertanejo pode ser tão expansivo e padronizador quanto o agronegócio? Depois da entrevista, nos juntamos à multidão de Extra Vips que se acotovelava na plateia. Depois de dois dias, com 29 show initerruptos – com a presença de estelas do gênero como Gusttavo Lima, Jorge e Mateus e Cristiano Araújo –, o público parecia cansado e alterado. Dali a pouco, o trio elétrico de Claudia Leitte encerraria os espetáculos do Caldas Country 2013. Um caminhão gigantesco fazendo voltas em torno da pista, e o povo doido girando junto. Os mais fissurados ainda iriam para o after de música eletrônica. Findado o festival, as autoridades apresentaram os números: cerca de 7 milabordagens, 84 pessoas detidas, 222 veículos retidos e 53 motoristas autuados. Dois policiais brigaram, um deles saiu bem machucado. Fora isso, não foram registradas ocorrências graves. Deixamos Caldas Novas pela manhã. Uma parte dos cerca de 100 mil turistas que, de acordo com os cálculos da prefeitura, estiveram ali para o feriadão já caía na estrada. Na saída da cidade, tudo calmo novamente. Pela janela do ônibus, vejo, enfim, um ato transgressor: uma menina que se refresca de roupas dentro de um chafariz.
Negro é lindo
Quinta-feira à noite. Na sala de um edifício comercial do bairro da Liberdade, região central de São Paulo, um grupo de amigos se reúne em torno de uma mesa com salgadinhos e refrigerantes. Na pauta do encontro, o resgate das memórias de uma época gloriosa, que há muito tempo ficou para trás. São os remanescentes do Aristocrata, um clube fundado nos anos 60 pela elite negra paulistana. No seu auge, na década de 70, a associação contava com 3.600 sócios e tinha sede na capital e um clube de campo na zona sul da cidade. Suas festas e bailes de gala atraíam até 5 mil pessoas, incluindo artistas como Cartola e Wilson Simonal, políticos como Jânio Quadros e celebridades gringas como Sarah Vaughan e Muhammad Ali. “Este é o mais luxuoso clube negro do Brasil”, estampava a revista Manchete na época. Mais de meio século depois, no entanto, restam apenas 12 membros do conselho do clube, que sonham com a volta dos velhos tempos. Fundado em 1961, num período em que negros eram barrados nas piscinas e nos bailes de clubes como Tietê, Espéria e Pinheiros, o Aristocrata é um marco na história da sociedade brasileira. “Naquele tempo, nós só podíamos ir a esses locais de brancos para jogar futebol. Não podíamos fazer parte dos quadros associativos. Pela lei, não podia haver discriminação, mas sempre inventavam alguma desculpa. Chegaram a alegar que o cloro usado na piscina fazia mal à pele negra. Por isso, nós decidimos fundar o nosso próprio clube”, contou à Trip Luiz Carlos dos Santos, 77 anos, atual presidente da executiva do Aristocrata. Alguns brancos frequentavam o lugar, apesar de o público ser predominantemente negro. “Havia três brancos entre os 50 fundadores. Eram descendentes de árabes, também vítimas de preconceito”, diz Luiz. Diferentemente de outras associações negras que existiam no país, o Aristocrata foi fundado por uma classe média ascendente. O nome pomposo – Aristocrata – foi escolhido como uma referência a essa situação de elite. “Não eram sambistas. Tinha advogados, professores, enfermeiros, médicos. Era a elite entre os negros”, explica o ativista Genésio de Arruda no documentário Aristocrata Clube (2004), um dos raros registros sobre essa instituição pouco conhecida até hoje. “O Aristocrata surgiu para ser um lugar de lazer e, ao mesmo tempo, um fórum de debate, assim como ocorre no clube Sírio-Libanês ou no A Hebraica”, conta no filme o ex-deputado federal Adalberto Camargo, já falecido. “Toda essa história ficou perdida no tempo. Nossa ideia foi resgatar a memória afetiva dessas pessoas”, explica Jasmin Pinho, diretora do documentário, que traz relatos de três gerações do clube. COISA DE AMERICANO Não são poucas as histórias a serem resgatadas da memória do Aristocrata. “Quem me levou ali pela primeira vez foi o meu ídolo Agostinho dos Santos, cantor muito famoso na época. Chamou minha atenção o fato de só tocarem Frank Sinatra. Aí eu falei: ‘Pô, Agostinho, não vão tocar o seu disco? Até parece que a gente está nos Estados Unidos!’”, conta o cantor Jair Rodrigues, que também jogava pelada no clube de campo do Aristocrata, na estrada do Bororé, no bairro do Grajaú. O terreno de 60 mil metros quadrados foi comprado em 24 parcelas pelos associados, que construíram piscinas e quadras de futebol, vôlei e basquete. Além dos jogos, o local sediava churrascos, festas da cerveja e desfiles de biquíni. Os bailes aconteciam na sede do Aristocrata, no número 118 da rua Álvaro de Carvalho, no centro de São Paulo, ou em salões alugados do Club Homs ou do Rotary. Recém-chegado de Minas Gerais, Milton Nascimento, um cantor então desconhecido, ficou impressionado com a elegância daqueles “pretos, todos bem-vestidos” (veja depoimento na página 85). Conta-se que até os garotos do Jackson 5 foram a uma reunião. “Eu era muito nova, mas me lembro deles na casa do Raul dos Santos, presidente do clube na época. A gente ia lá aos domingos”, diz a produtora Haydee Alexandre. ORGULHO NEGRO Quando vinham ao Brasil, celebridades negras internacionais, como Johnny Mathis e Josephine Baker, eram levadas ao Aristocrata por Agostinho dos Santos. Quem servia de intérprete era o fotógrafo Paulo Roberto, mais conhecido como Paulo Inglês, um dos poucos a dominar o idioma estrangeiro. Às vezes, os convidados esticavam a noite em boates, caso do lendário campeão de boxe Muhammad Ali. “Eu o levei para o La Licorne, uma espécie de Café Photo da época. Imediatamente formou-se uma roda de damas da noite em volta dele”, conta, dando risadas, o fotógrafo de 74 anos. O Aristocrata ajudou a construir o orgulho negro dentro da comunidade. “O histórico que a gente tinha é do lado pejorativo do negro – do sem formação, sem cultura. Os nossos pais nos deram a chave, abriram a porta para que nós chegássemos ao mundo lá fora com muita dignidade”, diz, no documentário sobre o clube, Haydee Alexandre, 56 anos, que é filha de Alexandre dos Santos, um dos fundadores. “O Aristocrata moldou a minha personalidade, sem vergonha de entrar em um lugar, sem medo de ser barrada ou não saber me portar. Tudo isso eu aprendi lá”, acrescenta Haydee, que debutou num baile do clube aos 15 anos. “LEVEI MUHAMMAD ALI AO LA LICORNE. FORMOU-SE UMA RODA DE DAMAS DA NOITE EM VOLTA DELE” A decadência ocorreu a partir dos anos 90, quando outras associações esportivas também fecharam. “As pessoas começaram a ter casa de praia ou sítio. Os sócios deixaram de pagar mensalidade e aumentou a inadimplência”, explica Paulo Correa, 60 anos, tesoureiro do Aristocrata. O desinteresse da segunda geração também contribuiu para o esvaziamento. “As novas gerações tinham outros espaços de lazer. Elas não passaram pelas dificuldades que nós passamos, não sentiam a necessidade de ter um espaço próprio”, conta o septuagenário Luiz Carlos. Com as dificuldades financeiras, a sede no centro foi fechada há três anos. Já o clube de campo no Grajaú foi desapropriado pela prefeitura. Parte do terreno foi invadida e hoje abriga uma favela. A sala alugada no bairro da Liberdade é o endereço provisório do Aristocrata, onde às quintas-feiras se reúnem os 12 conselheiros. Com o dinheiro da desapropriação, eles pretendem se mudar em breve. “Nossa meta é comprar uma nova sede e abrir o clube para mais sócios – negros, brancos, de qualquer cor. Queremos retomar as feijoadas aos sábados e os antigos bailes com traje social completo”, diz o professor universitário aposentado Valdemar Venâncio, 75 anos, presidente do conselho. Enquanto os novos tempos não chegam, o grupo se diverte, lembrando da época áurea de um lugar que foi tão importante em suas vidas. O CANTOR MILTON NASCIMENTO, 71 ANOS, FALOU À TRIP SOBRE A ÉPOCA EM QUE FREQUENTOU O CLUBE EM SÃO PAULO “ARISTOCRATA ERA UM FOCO DE RESISTÊNCIA” Cheguei a São Paulo em 1966 para participar de um festival da TV Excelsior, em que defendi “Cidade vazia”, música de Baden Powell e Lula Freire. Decidi ficar na cidade e passei por pensões na região da Boca do Lixo. Foi uma das temporadas mais difíceis da minha carreira, pois, para cada vaga de músico nos bares, existiam 50 músicos que se candidatavam. Foi tanto sofrimento que digo que passei 20 anos em dois. Cheguei a ficar uma semana sem comer. Foi nesse cenário que encontrei Agostinho dos Santos, um dos cantores mais famosos do Brasil na época. Eu estava tocando num bar quando ele disse: “Bicho, quem é você?”. Falei meu nome e ele começou a me levar aos lugares. Um desses ficou marcado pra sempre na minha lembrança: o Aristocrata Clube. Naquele tempo, os pretos jamais poderiam frequentar um clube com áreas de lazer e sofisticados bailes. Eu mesmo, na minha cidade, Três Pontas [MG], só fui entrar no principal clube após minha consagração com “Travessia”, em 1967. Por isso o meu espanto quando Agostinho me levou ao Aristocrata. Quando vi aqueles pretos bem-vestidos – as mulheres, lindas, de longo e os homens de passeio completo –, quase não acreditei. Era um foco de resistência de um jeito que eu jamais tinha imaginado. Já que não era permitido aos pretos o direito de frequentar os clubes da elite branca – a não ser como garçom e faxineiro –, agora tínhamos nosso próprio espaço. Imagine 2 mil convidados, quase todos pretos, num baile de gala numa região bem localizada de São Paulo. Tenho certeza de que a classe dominante deve ter feito planos para acabar com o Aristocrata, mas eles não contavam que parte dos frequentadores era preta de alta posição social. Foi a nossa revanche. Quando se falava de um clube só de pretos, os preconceituosos pensavam: “Só deve ter cachaça, gente feia e mal-educada”. Era o contrário: pessoas muito bem-educadas, bem-vestidas, de refinamento musical. Poucos lugares tiveram nível cultural tão elevado. O Aristocrata foi importantíssimo num momento difícil da nossa história, quando enfrentávamos uma segregação terrível por parte da elite e, para completar, tínhamos que enfrentar opressão severa por parte da ditadura. É um lugar que deixou saudades.
Sylvester Stallone
Você conhece Rocky Balboa, Rambo, Cobra. Mas nunca viu Sylvester Stallone na pele de... Sylvester Stallone, um cara que já foi lanterninha, ator de pornô soft e tão duro que teve que vender o cachorro. Aos 67 anos, o ídolo revela o que pensa e sente por baixo de todos os músculos Estamos no teatro Palladium, em Londres, para uma das três entrevistas coletivas que tivemos com Sylvester Stallone. Sim, ele mesmo, o ator e criador de Rambo, Cobra e Rocky Balboa. O cara que, ao dar vida a este último personagem pela primeira vez em 1976, despertou, mesmo que sem querer, uma onda global de culto ao corpo e aos músculos, de glamourização dos ringues e, por fim, da conquista dos sonhos através da persistência e de muita, muita luta. Nem todo mundo sabe, mas Sly, como é carinhosamente chamado por seus fãs, estreou no cinema estrelando o pornô soft Garanhão italiano, em 1970. E sua mãe, Jackie, ganha a vida adivinhando o futuro das pessoas lendo não suas mãos, mas suas bundas (leia matéria na Trip: http://goo.gl/Po8D14). Entretanto, nada disso importa agora – pelo menos para ele. Stallone está de passagem na terra da rainha para promover seu último filme, Ajuste de contas, onde atua ao lado de Robert De Niro. Ele veste um terno e, apesar de distante da forma física de outrora, está bem para os seus 67 anos - botox à parte. Durante a conversa, rememorou episódios trágicos de sua biografia. Antes de dar seus jabs como Rocky nas telonas, por exemplo, diz que teve de vender o cachorro porque não tinha mais como sustentá-lo. Ele, no entanto, gastou mais tempo para explicar como fez para superar esse e outros reveses e como cada um deles moldou quem ele é hoje do que com lamúrias. Sylvester Stallone, quem diria, daria um bom autor de autoajuda. A seguir, o ídolo conta como e por que se apaixonou por malhação, da inimizade com Arnold Schwarzenegger, como quase morreu filmando Rambo, das egotrips que surfou e muito mais. Cuidado com o corpo “Meus pais tinham se divorciado e malhar foi a motivação que eu precisava naquela época. Um dia, saindo do cinema, passei por um ferro-velho e peguei uns pedaços de carros. Em casa, com os pesos que a minha mãe tinha, juntei tudo e criei algumas anilhas. Mudou a minha vida.” Boletim vermelho “Passei por 13 escolas em 12 anos e depois fui banido do sistema escolar. Fui para a Suíça e comecei a fazer teatro no colégio. Eles gostaram e me aconselharam a seguir.” Lanterninha “Quando eu estava no colégio, por quatro anos, trabalhei como lanterninha. Fazia testes durante o dia e trabalhava como lanterninha à noite. Ganhava U$ 38 por semana, mas eu estudava os filmes. Assisti a Easy Rider 60 vezes. Estava lá todas as noites, levava um gravador, gravava algumas das cenas e ouvia em casa várias vezes. Depois tentava reescrever a cena como um exercício. Escrevi 33 peças. Todas horríveis. Os protagonistas choravam, caíam e murmuravam na mesma cena.” Heróis “O personagem fictício mais icônico para mim foi de um ator que provavelmente ninguém conhece: Steve Reeves, de Hércules. Ele foi provavelmente o modelo de homem mais perfeito que já vi, foi quem me fez ficar interessado em atuação e musculação. Depois foi o Kirk Douglas. O trabalho que ele fazia no filme The Vikings eu achava incrível. Ele se deformava naquela época, era muito ousado.” Rambo “O filme foi literalmente amaldiçoado. Havia 17 diferentes roteiros. Alguns eram muito bons. Mas ninguém queria fazer. Tinha passado pelas mãos de Robert Redford, Burt Reynolds, Robert De Niro, Al Pacino... a lista é grande. O primeiro filme mostra um Rambo que não era inteligente, apenas um sobrevivente. Já no segundo ele fazia tudo: ficava debaixo da água, atirava, usava arco e flecha. Ele era como um super-herói. O terceiro foi incrivelmente brutal. Nós estávamos no deserto o tempo todo, por isso eu fiquei tão vermelho, até hoje. Eu me queimei tanto que nunca voltei a ser como era. Era explosão atrás de explosão, e não havia efeitos de computador. As quedas de cavalo eram reais. Eu nunca estive em um filme mais perigoso que aquele.” "Me tornei insuportável. Olho algumas das entrevistas que fiz e dá vontade de me dar um soco na cara" Rocky “O filme nasceu de uma frustração. Eu acho que talvez nós nunca veremos as melhores performances de grandes atores, por conta da grande rejeição que existe nessa indústria. Muitos desistem ou se perdem. Eu passava por isso e quis colocar toda essa frustração de não ser reconhecido como ator no corpo de um lutador... Pois é isto que fazemos: nós lutamos contra os acasos, todos os dias. Uma noite eu vi uma luta na TV, entre Chuck Wepner e Muhammad Ali. Ele estava sendo mostrado como um preguiçoso, sem valor, mas nocauteou Ali no 14º round. Quando vi aquilo, pensei imediatamente: ‘Essa é a minha história’. Fui para casa e comecei a escrever como um maníaco dia e noite. E criei a ideia do Rocky. Um dia, quando fui recusado em um teste para ator, mencionei que também escrevia, e eles se interessaram. Eles leram o roteiro e resolveram fazer o filme. Mas não me queriam no papel principal. Era mais de US$ 1 milhão hoje em dia, mas eu não aceitei. E olha que tinha acabado de vender meu cachorro simplesmente porque não tinha dinheiro para sustentar ele. Depois vendi por US$ 60 mil, mas comigo como Rocky.” Egotrip “O Rocky III é autobiográfico. Eu tinha me tornado muito egoísta, vaidoso. E foi isso que aconteceu com o Rocky. Eu abusei do poder. Era uma autoridade em tudo. Se você tivesse uma doença, eu diria a você qual era a cura. Eu me tornei insuportável. Olho agora algumas das entrevistas que fiz naquela época e me dá vontade de voltar no tempo e me dar um soco na cara.” Arnold Schwarzenegger “Nós basicamente nos odiávamos, mas de uma maneira boa. Você precisa de um adversário que o faz levantar de manhã e dar tudo de si.” Robert De Niro “O De Niro era um ator muito mais corajoso que eu. Enquanto Rocky estava em cartaz, no cinema em frente estava Taxi Driver, em que Bobby tinha aquele corte de cabelo, nariz cheio de sangue... Você precisa de coragem para fazer aquilo. Eu admiro que ele queira sempre seguir adiante. Foi ótimo trabalhar com ele nesse último filme, Ajuste de contas, porque ele é completamente o oposto de quem eu sou. Ele é modesto, calmo, reservado, e eu aprendi muito com ele.”
Pelo Retrovisor
O neon do recém-reaberto Riviera, um dos lugares de ar retrô que fazem sucesso na noite de São Paulo Medo do futuro? Reação à overdose de referências, num presente em que todas as modas convivem? Ou saudade de um tempo (talvez um tanto idealizado) em que tudo parecia mais simples? Na música, na moda, na arquitetura, na gastronomia, na vida, o passado é o novo preto “As pessoas buscam outros valores porque se cansaram do frenesi dos centros urbanos” Aline Souza, jornalista João Carlos Bottcher, restaurador de bicicletas paulista que atua em Santa Catarina, é um nostálgico assumido. “O que é moderno não me atrai muito”, diz o fã de Led Zeppelin e Ray Conniff que há alguns anos vive de recuperar modelos vintage de bikes para uma larga clientela interessada em reviver momentos felizes. Bottcher estudou história e preparava-se para seguir carreira de professor quando reformou sua primeira bicicleta, uma Caloi Sportíssima dos anos 70. Amigos e conhecidos começaram a requisitar seus serviços e a brincadeira de fundo de quintal foi virando profissão. Como ele, seus clientes têm um pé no passado. “Muitos são colecionadores, mas boa parte é de pessoas mais jovens que querem pedalar a bicicleta que foi do avô, do pai, ou um modelo idêntico”, conta. Para além do desejo de resgatar estéticas de um tempo que hoje enxergamos como mais glamouroso, transgressor ou bonito, movimentos contemporâneos têm sugerido um tipo bem específico de nostalgia: a saudade de um passado em que se vivia de forma aparentemente mais simples, ao menos no que diz respeito às formas e à velocidade da vida. Para a jornalista Claudia Visoni, ativista paulistana do grupo Hortelões Urbanos – que propõe a criação de espaços de cultivo em espaços públicos da cidade, como praças, parques e canteiros –, não é exatamente o desejo de voltar ao passado que move grupos como esse, mas a busca de resgatar algo que ficou para trás. Não somos passadistas”, diz, enquanto reflete sobre as motivações do movimento. “Nós nos afastamos Danças que animavam a festa no século passado, como o hully gully (acima), podem ser aprendidas no Youtube. demais da concretude da vida. Hoje compramos tudo: roupa, comida, até experiências prontas. O papel que nos sobra é o de consumidor. Mas o homem é um fazedor. Capinar uma horta coloca tudo no lugar, nos apazigua do ponto de vista emocional e espiritual. Preenche esse buraco, esse banzo que não sabemos dizer de onde vem.” O contato com a natureza e seus ciclos – ver uma planta brotar, crescer, murchar, cair – nos conectaria com a história de nossas vidas: a infância, a juventude, o viço, a esperança, a decadência, o fim. “Acho sintomática essa volta ao passado. A revolução dos costumes jogou muita coisa fora. Além do que não prestava, jogou também raízes que são muito importantes para nós. É como a criança adotada que, por mais que seja amada por sua família, precisa saber de onde veio, quer reconstruir sua história”, completa a jornalista. João e Claudia são expoentes de uma tendência facilmente observada no mundo contemporâneo: de formas que variam muito, o passado está na moda. Seja alimentando o modismo duradouro que há alguns anos populariza termos como retrô e vintage – originalmente, esta última palavra designa a melhor porção de uma produção clássica de moda, e não qualquer coisa antiga –, seja na onda nostálgica que faz grupos e gente avulsa reviverem estilos e ideias do passado. Muitos por assumida saudade de um tempo que consideram melhor; outros porque se identificam mais com estilos consagrados do que com os contemporâneos; outros, ainda, para resgatar valores que pareciam em baixa nas últimas duas ou três décadas. "O presente do pop está povoado pelo passado" Simon Reynolds, jornalista inglês As manifestações são as mais variadas. No Rio de Janeiro, um restaurante – sintomaticamente batizado Volta – serve pratos que foram famosos nos anos 60 e 70, como coquetel de camarão com molho rosé e arroz de forno, enquanto turmas promovem encontros para dançar lindy hop, estilo acrobático importado da era do swing. Em São Paulo, os anos 50 dão o tom à decoração e ao clima de diversos lugares da moda, do recém-reaberto Riviera ao Cine Joia, enquanto grupos como os Hortelões Urbanos tentam recriar a paz do tempo em que se cultivava a própria comida. No Facebook, uma página brasileira atrai 600 mil seguidores desencavando cacarecos que foram populares no passado e caíram no esquecimento: o Guaraná Caçulinha, a ficha telefônica, a fita cassete. Na TV, novelas como Água viva e Dancing days, dos anos 70 e 80, voltam ao ar e viram assunto. No rádio ou nos clubes, não há hit pop internacional que não faça referência a períodos mais efervescentes da cultura pop: psicodelia, punk, hip-hop, techno. Se parte dessa onda retrô pode ser atribuída ao vaivém normal da moda – comprimentos, padrões e manias de décadas passadas sempre voltaram para nos assombrar (ou divertir) –, o que caracteriza o passadismo atual? E o que está por trás de tanto saudosismo? A explicação mais óbvia é que buscar referências nostálgicas nunca foi tão fácil. Na era da internet, não há o que não se ache: a história da moda, da crinolina à Mary Quant, no Pinterest ou no Google; as bandas obscuras do krautrock alemão, nos blogs que compartilham sons esquisitos; os passos do hully gully e do boogaloo ensinados no YouTube. Até a foto que você acaba de fazer no viaduto do Chá ganha um jeitinho amarelado com algum filtro romântico do Instagram. Mas há quem ache que a explicação está longe de se esgotar por aí. “As pessoas vão em busca de outros valores porque estão cansadas do frenesi dos grandes centros urbanos”, arrisca a jornalista Aline Souza, que organiza a Tweed Ride carioca, versão local para a moda (que se propagou desde a Inglaterra) dos passeios ciclísticos realizados por grupos trajando roupas de época. “Elas procuram um certo glamour que havia em outros tempos.” É em busca disso que seus amigos se reúnem para passear de bicicleta vestindo roupas de tweed, como se estivessem no século 19, por recantos nostálgicos do Rio, apreciados no passado para passeios, como a Quinta da Boa Vista e a Ilha de Paquetá. Ninguém entende um mod Arquivo Pessoal A zona leste paulistana viu crescer, nos últimos dez anos, um revival do estilo mod inglês dos anos 60, com cabelo cuia, jaquetas e lambretas. “Beatles e The Who são referências importantes, mas pesquisamos timbres de bandas de garagem dos anos 60, ouvimos muita Tropicália, ficamos fascinados pelos afro-sambas de Baden Powell e de Vinicius de Moraes e por Lanny Gordin”, conta Pedro Bizelli, do quarteto mod Os Skywalkers. “Não acredito que sejamos nostálgicos. Essa busca pelos timbres antigos nos fez descobrir coisas realmente novas para nós”, diz. Arquivo Pessoal/Rayssa Coe Dancing queen A cantora Mari Moraes tocava numa banda de baile com Diego Sena, Jheff Saints e Patricia Andrade quando teve a ideia de criar o ABBA History, com covers do grupo sueco, maior sucesso de seus sets. De cara, lotaram um teatro de 800 lugares em Porto Alegre. Hoje tocam no Brasil inteiro para cinquentões saudosos. Até aí, nada de muito novo: bandas cover não são exatamente um fenômeno desta década. O que impressiona é a quantidade de adolescentes nos shows. Há fãs ardorosos, como o menino de 15 anos que tem tudo do ABBA (que fez sua última aparição na formação original em 1982) e ajudou na pesquisa de figurinos. Para Mari, a explicação mais plausível é que “a música do passado era melhor”. “A beleza das letras e a riqueza de melodias ficaram de lado na música moderna. Os artistas do passado cantavam com garra e emoção”. "No novo milênio, olhar para o futuro deixou de ser uma experiência positiva" Dario Caldas, Sociólogo Você é linda Se pudesse, Eve Almeida, 24 anos, viveria na Swinging London dos anos 60. Desde adolescente, é apaixonada por Beatles, The Who, Rolling Stones, David Bowie, Linda Eastman, Marianne Faithfull e Twiggy. Foi de tubinho, botas e franjinha existencialista que conheceu num show o marido, o músico Reinaldo Almeida, que encarna Paul McCartney na banda cover ZoomBeatles. “O gosto pela moda do passado ajudou a gente a se entender”, explica. “Acho que é nostalgia, saudade de uma época que não vivi” Divulgação/TV Globo Dancing days, de 1978, é a próxima candidata a cult entre as novelas reprisadas pelo canal Viva, que se dedica a revisitar o passado da Rede Globo; antes, vieram Vale tudo e Água viva, no ar até abril Em muitos casos, a motivação é mais estética. Sócio da Barbearia 9 de Julho, salão com decoração anos 50 que cuida de cabelos e barbas à moda antiga, e que já tem seis unidades em São Paulo, Anderson Napoles conta que, aos 15 anos, não via graça na música que vinha do rádio, achava o grunge dos anos 90 de virar o estômago e odiou o techno “na primeira batida”. Só encontrou sua turma quando as duas irmãs começaram a namorar rockers, que viraram seus ídolos. Cultivou um topete e encontrou em Elvis Presley, Eddie Cochran e Gene Vincent seu veneno antimonotonia. Teve a ideia do negócio próspero com o sócio Tiago Cecco. A primeira barbearia, aberta na rua Augusta, atraiu moderninhos e hipsters e, mais tarde, mauricinhos e executivos, com decoração charmosa e serviço à moda antiga – os clientes adoram especialmente as toalhas quentes que envolvem o rosto para abrir os poros, antes de fazer a barba. A iniciativa tem tudo a ver com o fato de Anderson ter adotado o estilo rocker como modo de vida. Assim como a escolha da parceira romântica, a estilista Larissa Montagner, que ele conheceu em uma festa rockabilly e com quem casou em Las Vegas, com pastor fantasiado de Elvis. Dona de uma grife especializada em vestir pinups e rockers, e ela mesma adepta do look saia rodada, cintura marcada, pérolas, laços, anáguas e babados, Larissa tenta resumir a mania que pauta a vida dos dois. Não é que falte qualidade estética ao presente, acredita. “Simplesmente nos identificamos mais com o estilo dos anos 50.” Em seu livro Retromania, o jornalista inglês Simon Reynolds analisa o fenômeno nostálgico em um campo em que ele é particularmente forte: a música dos anos 2000. Para Reynolds, os primeiros dez anos do novo século são a redecade, a década do revival, do relançamento, do remake. Viu a soul music renascer (na perfeita tradução de Amy Winehouse), bandas aposentadas se reunirem, álbuns históricos serem relançados em luxuosas caixas com CDs e vinis, velhos roqueiros escrevendo memórias, filmes e musicais Para cientistas ingleses, a nostalgia conforta Reynolds coloca uma boa dose da culpa pelo fenômeno na internet – o compartilhamento de arquivos e a Eduardo Knapp/Folhapress Símbolo de um modernismo menos sisudo, que misturava elementos nouveau e déco, o Cinderela, de João Artacho Jurado, é um dos edifícios dos anos 1950 mais cobiçados de São Paulo enciclopédia do YouTube fomentaram como nunca a nostalgia. Mas também aponta o dedo para o fetiche passadista da geração hipster. “Em vez de serem pioneiros e inovadores, eles pegaram o papel de curadores e arquivistas”, escreve. Concluindo o estudo, lança uma pergunta interessante: “A nostalgia impede a cultura de ir adiante ou somos nostálgicos porque nossa cultura não consegue mais ir para a frente?”. A ideia de um vazio estético é recorrente, quando se trata de tentar explicar o passadismo do novo século. Nessa visão, prevalece a sensação de que não há mais o que inventar na costura, na música, no cinema, nas artes plásticas, no design, na arquitetura. Para o sociólogo Dario Caldas, diretor do Instituto de Pesquisa de Tendências Observatório de Sinais, essa falência, que chama de “esvaziamento de caminhos”, é uma leitura possível. A arquitetura foi responsável por detonar nos anos 80 o pós-modernismo, bastante caracterizado por essa volta ao passado. E a moda, no final do século 20, foi precursora da colcha de retalhos que vemos hoje. “É o historicismo como método de recriar, reinterpretar e reler as décadas passadas”, acredita. Para ele, o fenômeno tem muito de consumista, como sugere Reynolds, e um quê conservador. “Talvez o que se perca seja o caráter transgressor. Para transgredir, é preciso ter ideias”, diz Caldas. Mais relevante, acredita o sociólogo, é ler nesse passadismo um certo temor ao futuro. Se um tempo tão focado no presente como o nosso, em que tudo é registrado e compartilhado em tempo real pela rede, abre janelas para o passado, é justamente porque o que está em crise é o futuro: “Do começo do milênio para cá, olhar para o futuro deixou de ser uma experiência positiva. O mundo é perigoso, inseguro, não sabemos se vamos ter emprego e ainda por cima chegamos à conclusão de que destruímos o planeta”, diz. Bruno Lisboa A jornalista Aline Souza, que organiza a Tweed Ride carioca Essa visão pode ter um paralelo interessante na ciência, que vem descobrindo efeitos positivos em um sentimento que sempre foi considerado nocivo à psicologia e à alma humanas: a nostalgia. Os estudos de um grupo da Universidade de Southampton, na Inglaterra, têm mostrado que cultivar boas lembranças não produz apenas conforto emocional – sensação de felicidade, autoestima aumentada –, como também conforto físico. Testes realizados pelos cientistas britânicos sugerem que pessoas induzidas a relembrar momentos gostosos – o doce preparado pela avó, a música da adolescência, uma viagem feliz em família – têm maior resistência ao frio, porque sua temperatura corporal tende a subir (junto com o astral). Conclusão: a nostalgia ajuda muita gente a lidar com as vicissitudes da vida. Como sua avó “Produtos que contam a história de uma comunidade são cada vez mais apreciados pelos consumidores”, diz Luciana Stein, da Trendwatching, empresa que estuda e monitora tendências de consumo. No Brasil, um caso emblemático é o da Casa Granado, empresa de perfumaria fundada no Rio de Janeiro em 1870. A partir de 2004, a marca começou a resgatar fórmulas e embalagens antigas e a criar linhas com ares vintage. O sucesso revela nos consumidores um componente nostálgico: são adolescentes que acham o look antigo charmoso ou idosas que acreditam ser “do seu tempo” um sabonete lançado mês passado.
Segundo ele, o pop sempre personificou o presente, o agora; e é aí, justamente, que mora a mudança. “O presente é o domínio do jovem e o jovem, em princípio, não tem razão para ser nostálgico, até porque não conta com um catálogo extenso de recordações preciosas”, escreve. O pulsar do agora, porém, foi perdendo a força: “O presente do pop é cada vez mais povoado pelo passado”, afirma.revivendo grandes
De volta para o futuro?
De bode com as competições e o mercado, um grupo cada vez maior se veste, surfa e pensa como se fazia nos anos 70. A maioria nem era nascida na época – mas acredita que olhar para trás é a melhor forma de fazer o surf (e a vida) ir para a frente Um moleque de cabelos e barba mal aparados e óculos escuros redondinhos chega à Praia da Joatinga, no Rio de Janeiro, pilotando uma caminhonete F100 modelo 78. Na caçamba, duas pranchas de bordas gordas: uma monoquilha 6’6 e uma biquilha 5’9. No corpo, uma bermuda mais curta e puída, um palmo acima dos joelhos, quase um short. Em uma primeira batida de olho, Peu Mello, 32 anos, poderia ter saído da turma de Pepê, Daniel Friedman e Ricardo Bocão, alguns dos garotos que desbravaram o Arpoador e o Píer de Ipanema no Rio de Janeiro dos anos 70. Podia ser mais um “vagabundo”, como eram tachados os frequentadores das Dunas do Barato, faixa de areia em frente ao Píer, por onde circulavam, envoltos pela marofa canábica, os músicos Caetano Veloso, Gal Costa e artistas como Hélio Oiticica e Regina Casé. O artista plástico barbudo do Joá, porém, é parte de um grupo de freesurfers, que, em pleno 2014, resolveu olhar para trás em busca do futuro do surf. “Não me identifico com o surf de competição e não tenho interesse em manobras mirabolantes. O mundo já está acelerado demais. Usar pranchas retrô faz com que eu tenha que estar ainda mais em sintonia com o mar para que eu consiga saber exatamente onde pisar e fluir na onda”, acredita Peu. "Não tenho interesse em manobras mirabolantes. O mundo já está acelerado demais", acredita Peu Mello O surfista profissional Dennis Tihara, que começou no esporte na década de 90, época dominada pelas pranchas de três quilhas e por um superatleta de competição, o 11 vezes campeão mundial Kelly Slater, concorda: “A maneira como os caras surfavam nos anos 70 era mágica. Não tinha essa de entrar na água só para dar aéreo ou rabetada, eles tinham muito mais estilo, fluidez. Surfavam com amor”, diz ele, que admira surfistas atuais como os longboarders Alex Knost e Joel Tudor, mas se inspira mesmo em Gerry Lopez. “Gerry revolucionou o esporte surfando com sua famosa prancha de uma quilha do raio vermelho. Se desse para voltar no tempo era com ele que eu queria surfar”, diz Dennis. O apreço dessa turma pela década de 70 não transparece apenas em seus modelos de pranchas e manobras aquáticas. Quando assistiu ao filme Hair, de 1979, John Magrath, 26, ficou encantado com os personagens “largados, sem destino, sem apegos”. Gostou da forma como eles se vestiam e invejou o fato de experimentarem tudo o que sentiam vontade. “Aquela bagunça dos anos 70 representava bem essa vontade de amor incondicional, de espontaneidade e de integração entre as diversas tribos. Sinto que isso está sendo esquecido. Por que não resgatar tudo isso agora?”, indaga o rapaz, que mora em Búzios e não trabalha. Gastrônomo e ex-surfista profissional, o santista Andrew Serrano, 28, passou a surfar influenciado pelo estilo old school do pai. “Parei de competir aos 19 anos porque não estava mais feliz com o surf nesse formato e comecei a usar umas pranchas monoquilhas e biquilhas do meu pai. Quando estou no mar com elas, posso até sentir a energia daquela época”, diz direto do Havaí, um de seus lugares preferidos para o surf clássico, assim como o norte peruano. Além da identificação com o espírito da época, a turma não nega uma queda pela estética retrô. Além das 15 pranchas que guarda na garagem, Peu coleciona câmeras fotográficas analógicas, duas filmadoras Super-8 e 16 mm, uma máquina de escrever, carro, roupas e até malas da época. “O mais importante é a liberdade, a despretensão e a vontade de descobrir novos lugares para surfar. Chloé Calmon, 19, surfa de longboard desde os 12 e, atualmente, é surfista profissional. “O surf hoje virou um mercado e não posso me dar ao luxo de viver exatamente como os caras que passavam o dia jogados no Arpoador, usando drogas e ouvindo Pink Floyd. Tenho rotina de atleta, o surf é meu emprego.” Ela conta, no entanto, que, enquanto a maioria dos surfistas tende a perseguir as manobras radicais, ela se interessa pelo estilo clássico, das pranchas às roupas de borracha modelo short john e maiôs mais comportados. “Pedi ao meu shaper, o Filipe Hage, que fizesse uma prancha menor, mas com estilo retrô. Hoje uso uma single fin [monoquilha] 5’10. As pranchas originais da época eram muito pesadas e não tinham cordinha, não sei nem como as mulheres aguentavam carregar.” Peu coleciona câmeras fotográficas analógicas, duas filmadoras super-8 e 16mm, uma máquina de escrever, carro, roupas e até malas da época Outro entusiasta do surf do passado, o profissional catarinense Fernando Fanta, 30, explica que seu interesse por pranchas menos voltadas à performance surgiu de tanto ver o equipamento de seus tios na casa dos avós, na Guarda do Embaú. “Minha manobra favorita hoje é a rasgada usando totalmente as bordas da prancha. Meus objetivos no mar mudaram. Atualmente vejo essa linha como o jeito certo de aproveitar o que o surf tem de melhor”, postula. Fanta, como muitos dos retratados aqui, apareceu com destaque na ótima série 70 e tal, exibida no canal Off e dirigida por Rafaela Melin. A série repercutiu muito junto aos mais velhos e à audiência jovem, tentando entender e explicar o que havia de mágico no surf, nas praias e nos pioneiros daquela época. Monoquilha e ar-condicionado Segundo Fanta, o modus operandi dos nossos tempos, com excesso de informação e apelo de mercado, ultrapassou todos os limites, e as pessoas se deram conta de um futuro vulnerável: “Estamos tentando frear o processo para resgatar a essência do esporte e todas aquelas sensações que são a base não apenas daquela época, mas do surfista em si”. Shaper desde 1972, o carioca Victor Vasconcelos diz que olhar para trás é importante para resgatar a história, em especial o descompromisso do esporte, aquele momento introspectivo de uma queda solitária às 5 da manhã, que talvez tenha se perdido na última década. Mas, ao mesmo tempo, a evolução de técnicas e materiais não deve ser desmerecida. “Duvido que os garotos de hoje iam gostar de derreter vela para fazer parafina”, provoca. A seu ver, o cara que despreza um aéreo do Gabriel Medina com a desculpa de que não é retrô está é morrendo de inveja. “Não é porque o cara surfa de alaia que ele não pode valorizar a evolução do esporte.” "Estamos tentando frear o processo para resgatar a essência do esporte e todas aquelas sensações que são a base" Remando contra a maré dos garotos saudosistas, há quem diga que todo esse amor pela década de 70 não passa de modismo. “Quem diz que curte os anos 70 com o papinho de que não gosta de competitividade não sabe o que está falando. Foi nessa década que surgiram os primeiros campeonatos mundiais. O pau comia no mar”, manda Julio Adler, jornalista especializado em surf e ex-surfista profissional. Julio diverte-se com a paixão dessa turma pelas pranchas de madeira: “Madeira era coisa de imaginário uga-uga de havaiano, que surfava com toco. O poliuretano chegou ao Brasil ainda nos anos 60 e todo mundo ficou louco, ninguém mais queria saber de madeira nos anos 70, não. A turma da praia gostava era de novidade”. "Quem diz que curte os anos 70 com papinho de que não gosta de competitividade não sabe o que está falando", diz Julio Adler O shaper paulistano Gregório Motta, 32, diz que a busca pelo espírito libertário e experimental da época reflete em sua produção. Segundo ele, nos últimos dois anos os pedidos por modelos de mono e biquilhas aumentaram cerca de 70%. “O pessoal não chega aqui e diz: ‘Eu quero uma prancha estilo anos 70’. É mais do que isso. Eles falam que querem fazer uma queda mais tranquila, com mais remada, ficar longe do crowd. Esse interesse pela década de 70 é a forma que o surfista de raiz encontrou para se afastar do modismo do surf. Mas até isso está virando moda”, diz. “Já existe o playboy que vai pra praia de BMW com uma monoquilha lindona no rack e deixa lixo na areia. Está aí a diferença: você pode pegar onda ou você pode ser surfista”, completa o shaper. O velho é o novo novo Alex Knost, ícone do surf old school apesar de ter apenas 29 anos, conversa com a Trip diretamente do Havaí Você se tornou um ícone da nova geração do surf com um estilo de pegar onda que remete aos anos 70, uma época que você não viveu. Como isso começou?Nasci em Costa Mesa, na Califórnia. Nunca gostei de andar com pessoas da minha idade. Via os filmes de surf do meu pai, andava com os amigos dele, usava camisas velhas do meu avô. Eu só queria me divertir sobre as ondas. Você diz que largou os campeonatos em busca de um surf mais livre, longe do mercado, mas ainda assim representa uma marca. Tenho muita sorte de ganhar dinheiro fazendo o que gosto, sendo eu mesmo, surfando como acho melhor. Mas devo admitir que até hoje ainda sofro quando tenho que colar o adesivo de um patrocinador na minha prancha. Sim, estou no mercado, mas isso não significa que se não houvesse o dinheiro eu estaria fazendo outra coisa. Você é considerado um ícone de estilo. Algumas pessoas o chamam de hipster. Isso ofende você? Tem gente que prefere agredir os outros a fazer algo construtivo. Não concordo, mas respeito a opinião alheia. Gosto de roupas, acho esse universo divertido, mas não dou tanta importância assim ao assunto como dizem por aí. Você passou alguns anos com o cabelo pintado de preto e com um corte ousado. Sofreu preconceito no mar? Sim. Eu mesmo pintei para esconder minha cara de surfista da Califórnia, meu cabelo amarelo. As pessoas deveriam me julgar pelo que eu sou, pelo meu surf, não pelo que faço com o meu cabelo. Mas já desisti e estou parecendo o Iggy Pop outra vez. [Risos.] Muitos surfistas profissionais de hoje não bebem, não fumam, não saem à noite. Como você consegue ser surfista e vocalista de banda de rock? Eu como coisas saudáveis. Não precisamos de muita comida para sobreviver, então eu basicamente como um pouco de salada – prefiro as orgânicas – e tomo café. Durante as turnês eu também costumo tomar cerveja e fumar um cigarro. Nada precisa ser tão rígido.
Mas sou muito fã da estética daquela década. Os caras faziam pranchas de madeira em casa. Era tudo menos industrial”, aponta.
Revival Hippie
Seis dias de utopia em uma fazenda afastada na cidade de Rio Negrinho, em Santa Catarina. Seis dias de uma realidade que há algumas décadas deixamos de lado, nos entregando para uma era de consumismo desenfreado e atropelando a nossa própria essência O festival Psicodália, que aconteceu durante o Carnaval, é quase um refúgio para quem sente a necessidade - ou a curiosidade - de viver com o que basta. As barracas como morada nos questionam quando começamos a precisar do mais elaborado pra ter conforto. A comida, feita com simplicidade em um fogão comunitário à lenha, vem sempre acompanhada de muita música. Que, inclusive, parece combustível para a felicidade de quem vivencia a festa da carne longe de trios elétricos, blocos e desfiles. Lá não tem só rock'n'roll. Tem samba, tem roda de viola, tem teatro, cinema, oficinas culturais diversas e até tirolesa. Tem bebê sem dente na boca, criança, jovem, adulto e idoso. Tem todo mundo junto na mesma sintonia. É fácil lembrar de Woodstock, festival que aconteceu durante três dias nos Estados Unidos, também em uma fazenda na cidade rural de Bethel, no ano de 1969 e que ganhou fama mundial. Na ocasião, as atrações passearam entre Janis Joplin, Melanie, Jefferson Airplane, Jimi Hendrix, The Who e Creedence. Enquanto por aqui, vimos no palco do Psicodália nomes que já faziam seu som nessa época no Brasil, como Tom Zé, Di Melo - com sua famosa Kilário, de 1975 -, Moraes Moreira, Almir Sater, Made in Brazil e também a enigmática Gong, banda de rock progressivo que nasceu em 1967 na França. Ao lado dessas atrações, uma mistura de sonoridades e idades na programação, como a paulistana Metá Metá e seus batuques africanos, a psicodélica Pedra Branca e muitas outras bandas independentes. Esse encontro de gerações no palco, na plateia e em toda a vivência do festival abre o questionamento: temos saudade daquilo que não vivemos? Revivendo o passado? Moraes Moreira tocou, na íntegra, o renomado e espetacular "Acabou Chorare", segundo álbum dos Novos Baianos - lançado em 1972. Logo na passagem de som, um coro uníssono cantava Mistério do Planeta a plenos pulmões, antecipando a grande cantoria do show que estava reservada para a noite. O cantor desabafou o arrepio, assim como seu filho que toca com a banda, Davi Moraes. Sobre reviver esse estilo de vida, muito comum no movimento hippie dos anos 70, ele dispara sem rodeios que isso nunca morreu e "nem tem inveja de quem morre". Durante o show, inclusive, disse ter vontade de reviver o ácido que tomava na época. "Sempre esteve viva essa semente que foi plantada nos anos 70, e ela continua vingando até hoje em vários lugares. Quem está querendo isso não são os saudosos nem os nostálgicos, é a juventude, e, quando a juventude faz essa releitura, tudo se renova. Não é reviver o passado, é jogar para o futuro.", argumenta o cantor, que está em turnê de 40 anos dos Novos Baianos e diz que a maioria do público é composta de jovens. "Não é reviver o passado, é jogar para o futuro", Moraes Moreira Plá completa "Essa galera vem aqui e consegue sair um pouco do mundo cinzento da máquina, abrir mais os portais da consciência. Não é que estamos tentando reviver, é uma busca de um novo tempo. Depois que passou o ano 2000, eu sinto que estão percebendo que o movimento dos anos 60 e 70, da psicodelia e do rock'n'roll, foi algo muito positivo e importante. É uma tentativa de desprendimento e verificação de que há outra possibilidade de vida que não a de ficar submisso ao emprego. Uma tentativa de maior liberdade, de viver uma vida paralelamente a essa coisa instituída e sair desse modelo de mundo falido." Revolução O comportamento das pessoas parecia de fato um pouco distante do que estamos acostumados a ver em grandes metrópoles. O horário de pico era a hora de subir para os shows, "bom dia" vinha de todos os lados. Até mesmo as filas dos refeitórios e das duchas eram alegres. Um macarrão instantâneo na Massachussets e um misto-quente na Rango Starr eram algumas das opções entre as lanchonetes que funcionavam 24h por dia com preços justíssimos. Quem tinha o copo próprio do festival - que custava cinco reais - pagava só o equivalente ao refil do chopp e ainda podia devolvê-lo, caso tivesse intacto, no último dia e pegar o dinheiro de volta. A base da Polícia Militar estava ali, tranquila em meio à paisagem verde, às Kombis com pinturas psicodélicas e aos sorrisos e rostos coloridos de quem passava. O líder da Gong, Daevid Allen, de 76 anos, protagonizou um show hipnotizante, daqueles difíceis de manter o equilíbrio. Entre uma música e outra, fez seu grito ecoar na garganta das mais de quatro mil pessoas que estavam vivenciando esse Carnaval: It is time for a revolution. Todos esses dias com o pé na terra foram mais que o suficiente para perceber que sim, é tempo de uma revolução. Uma revolução que não está só em tomar banho no lago da Fazenda Evaristo entre pelados, peludos, vestidos, crianças e adultos. Mas, sim, naquela voz chamando pela busca da verdadeira essência de viver valorizando o simples, o que basta.
Caminhando pela fazenda, também dava para escutar a música do cantor, compositor e filósofo hippie Plá, que ao ser questionado sobre sua idade, diz já ter se passado muito tempo porque, para ele, cada ano valia por 30, por viver intensamente e sem calendários, estendendo-se no tempo e no espaço. Com 54 discos lançados artesanalmente, participou de todas as edições do Psicodália. "Aqui vem gente de todo o lado. Todos inseridos na sociedade e descontentes com isso.", reflete.
Trip #230 traz o especial 'Brasil: vai ficar ou tá a fim de ir embora?'
Nossas duas capas de março. Nas bancas a partir de hoje, quarta-feira, dia 12 de março A edição de março da Trip traz o especial Brasil: vai ficar ou tá a fim de ir embora? Criolo, Maya Gabeira, Ronaldo Fraga, Carlos Burle, Gilda Midani, Iggor Cavalera, Carlos Nader, Francisco Bosco, Dudu Bertholini, Carlos Saldanha e mais de 100 pessoas refletem sobre cair fora, ficar por aqui, viver em trânsito e sobre um dos momentos mais estranhos da história recente do país. Páginas Negras: Karim Aïnouz Nas Páginas Negras, entrevista com o Karim Aïnouz. Por que um dos maiores nomes do cinema nacional foi viver em Berlim? Luciana Pádua relaxa (linda e nua) em Paraty E nossa Trip Girl vem direto do interior de São Paulo. Luciana Pádua nasceu há 26 anos em Suzano, mas por lá não ficou muito. Já morou na periferia de Buenos Aires e, agora, pode ser encontrada em Paraty, onde vive fazendo massagem na praia. A Trip está nas bancas a partir desta quarta-feira, 12 de março. * Para os assinantes as revistas já estão sendo entregues. Se você não receber, por favor, entre em contato com a Central do Assinante (segunda a sexta das 9h às 18h): São Paulo: (11) 3512-9465 // Rio de Janeiro: (21) 4063-8433 // BH: (31) 4063-8482.
Suspreto
Arquivo Pessoal
“Eu não podia me sentir um cidadão como outro qualquer na zona sul do Rio. Precisava do aval de uma senhora, esta sim, acima de qualquer suspeita”
"SUSPRETO"
Helio de La Peña, 54 anos, humorista e integrante do Casseta & Planeta
“Ei, negão! Você mesmo!” Faz tempo, mas não deu pra esquecer. E olha que minha memória não é lá essas coisas! O ano é 1989. O grupo Casseta & Planeta apresentava no Teatro Ipanema o show Eu vou tirar você desse lugar, com músicas e esquetes de nossa autoria. Naquele sábado a casa estava cheia.
No fim do espetáculo, me dirijo ao meu carro na praça Nossa Senhora da Paz, quando encontro a mãe do meu amigo e colega de palco Beto Silva. Ela tinha ido nos assistir. Paramos e conversamos rapidamente. Nos despedimos, cada um foi pro seu lado. Eu, porém, não cheguei a dar dez passos. Logo fui grosseiramente interpelado por um policial militar.
“Ei, negão! É, você mesmo!”
Parei. O policial me olhou de cima a baixo e foi direto ao assunto.
“Agora pode devolver o que você pegou da madame.”
“Eu?? Não peguei nada, só tava conversando com uma amiga.”
“Que conversa é essa de amiga, rapá! Tá me achando com cara de otário? Passa logo a parada, anda. Foi o quê? Relógio, carteira?”
“Ela é mãe de um amigo meu, só isso!”
“Me dá essa mochila!”
Puxou a mochila das minhas mãos e a abriu ostensivamente, revistando o conteúdo. Eu insistia que não era ladrão, que ele estava cometendo um engano grave. O sujeito não me dava ouvidos. A distância, dona Ida percebeu que algo estava acontecendo. Voltou. “O que está havendo, Helio?”
Expliquei e ela confirmou que me conhecia e que evidentemente nada de anormal tinha ocorrido, apenas a breve conversa. O policial ainda me olhou desconfiado, tipo “dessa vez tu escapou”, devolveu meus pertences e se afastou. Fiquei ali envergonhado pela situação constrangedora. Não reagi, não me revoltei, só queria ser abduzido instantaneamente. Queria deixar de ser o assunto. Mas o tema me acompanharia, a história seria repetida, comentada, repudiada, e não poderia ser apagada.
Era uma realidade: eu não podia me sentir um cidadão como outro qualquer na zona sul do Rio. Precisava do aval de uma senhora, esta sim, acima de qualquer suspeita, para me defender de uma acusação absurda. Depois que minha cara ficou conhecida por conta do programa do Casseta & planeta, urgente!, casos como esses desapareceram. Mas, naquele momento, eu ainda não passava de mais um “suspreto”.
Existe preconceito de cor no Brasil ainda?
Reprodução Realidade de 1967 Uma reportagem da icônica revista Realidade mostrava, em 1967, como um negro e um branco eram tratados ao passar pelas mesmas situações. Cinco décadas depois, a Trip se inspira na experiência para investigar: Será que alguma coisa mudou? "Vivi toda a infância e adolescência ouvindo e aprendendo que o negro era um homem inferior. Na escola, em casa, na rua, meus pais, os professores e meus amigos sempre atribuíam aos negros maus sentimentos e atitudes negativas. Usavam os negros para coagir as crianças a não fazer travessuras. Ouvi muitas vezes a ameaça: ‘Olha que eu chamo o preto pra te levar!’.” Assim começa uma das reportagens mais marcantes da Realidade, a revista que foi extinta em 1976, mas é cultuada até hoje como uma das melhores que o jornalismo brasileiro produziu. Publicado em outubro de 1967 – em uma edição que traçava paralelos entre os conflitos raciais que borbulhavam nos Estados Unidos e a relação do povo brasileiro com esse assunto – o texto de Narciso Kalili e Odacir de Mattos mostrava a que vinha logo no título: “Existe preconceito de cor no Brasil”. A reportagem era uma experiência de fôlego: Kalili, branco, e Mattos, negro (ambos já falecidos), junto com dois fotógrafos, Luigi Mamprim e Geraldo Mori, passaram por seis cidades brasileiras registrando como dois homens de cor de pele diferentes eram tratados nas mais variadas situações do cotidiano – procurar quarto de hotel, alugar apartamento, buscar escola para os filhos, ser atendido em hospital, comer em restaurantes, ir a boates... ou simplesmente andar abraçado com uma parceira de outra cor (Narciso com uma modelo negra, Odacir com uma branca). Os relatos não têm o rigor de uma experiência científica. É apenas experiência humana Em quase todos os testes, o tratamento dado a Mattos foi diferente. O hotel não tinha vagas – mas elas milagrosamente surgiam quando o cliente era Kalili –, o apartamento mudava de preço, a escola ficava inacessível e assim por diante. Só quando estavam com as falsas namoradas é que as reações foram semelhantes para ambos: muito espanto e desaprovação. Inspirada na reportagem, a Trip simulou a experiência, em menor escala: Jeferson De, cineasta, 42 anos, negro, e Endrigo Chiri, 34, jornalista, branco, foram convidados a passar um dia vivendo situações parecidas em São Paulo. Como o próprio autor do texto original frisava, os relatos daqueles dias não tinham o rigor de uma pesquisa científica. “É apenas experiência humana.” Nossa versão também não tem a pretensão de provar coisa alguma. Mas traz a sensação de que, quase 50 anos depois, não mudamos tanto assim. Antes de começar, Jeferson avisou: o que queríamos testar, ele já vivia todos os dias. Nascido no Vale do Paraíba, o diretor de filmes como Bróder (2010) e Celulares (em fase de produção) acredita que grande parte de nossa mal resolvida “abolição” ainda hoje esconde muitas tensões. “Confesso que não é fácil reviver dores e frustrações. Tento me tranquilizar pensando na frase ‘... a cor da pele, foda-se!’, como diz o vocalista Falcão, d’O Rappa, em ‘O homem amarelo’. O experimento da Trip excluiu a questão dos casais inter-raciais, mas ela faz parte da vida de Jeferson, casado com Cristiane, que é branca. “Em vários ambientes isso ainda é estranho. Assim como o fato de uma mulher branca ter um filho negro”, diz. O rolezinho de nossos protagonistas teve como cenário lugares onde uma pessoa negra em geral só é encontrada, como diz Jeferson, de três formas: para servir, pedir ou ameaçar. Ele e Endrigo estavam lá para observar. A dupla de hoje não encontrou a agressividade escancarada da dupla que saiu pelo Brasil em 1967. As impressões de ambos estão nos relatos a seguir.
Brasil, país escravocrata
Marcelo Carnaval/Agência O Globo
O Brasil é um país escravocrata, continua sendo. O imaginário profundo é escravocrata. Você vê o caso do menino amarrado no poste [no bairro do Flamengo, por uma milícia de classe média que o suspeitava assaltante] e que respondeu de uma maneira absolutamente trágica quando foi pego: “mas, meu senhor, eu não estava fazendo nada”. Só essa expressão, “meu senhor”... O trágico foi essa expressão. Continuamos num mundo de senhores. Porque o outro era branco. [...] Ou seja, trata-se de um país conservador, reacionário, em que os pobres colaboram com a sua opressão. Não todos, mas existe isso. A escravidão venceu no Brasil, nunca foi abolida. Sou muito pessimista em relação ao Brasil, digo francamente. Em relação ao passado e ao futuro. Em relação ao passado no sentido de que é um país que jamais se libertou do ethos, do imaginário profundo da escravidão, em que o sonho de todo escravo é ser senhor de escravos, o sonho de todo oprimido é ser o opressor.
O trecho foi retirado de uma entrevista que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro concedeu ao jornal português Público em 16 de março deste ano.
Eduardo Viveiros de Castro, 63 anos, antropólogo e professor do Museu Nacional, no Rio de Janeiro – sonha com uma revolta popular no Brasil
Elevador Social
Arquivo Pessoal
“Sucesso e dinheiro não embranquecem ninguém. Como dizia minha bisavó: ‘Passou de seis e meia é boa noite’”
Um negro que tem sucesso na profissão sofre mais preconceito? Desde que minha irmã e eu éramos crianças, meu pai deixou bem claro que o preconceito nos atinge e se instala na medida em que permitimos e que a identidade racial não determina nada em nossas vidas, além da cor da pele e do tipo de cabelo. Portanto, todo mundo é igual e com os mesmos direitos e deveres diante da sociedade. Ele era totalmente avesso a discursos de orgulho racial e exaltações étnicas, que encarava como coisa de gente bronqueada. Desde sempre eu aprendi a me defender do preconceito e não acatei as imposições dos pequenos poderes do cotidiano. Por exemplo, sou do tempo da entrada de serviço e, mais de uma vez, ouvi de porteiro de prédio pra pegar o elevador de serviço. Mas olhava bem pra cara dele e subia pelo social. Sem dúvida, fui atraído pelo jornalismo pela diversidade dos envolvidos, dos assuntos às pessoas. E, não, não acho que um negro que consegue ter sucesso na profissão sofra menos ou mais preconceito, desde que ele se paute pelos resultados de seu trabalho e não para provar alguma coisa a alguém ou se tornar algo que não é. Sucesso e dinheiro não embranquecem ninguém. Como dizia minha bisavó: “Passou de seis e meia é boa noite”. Um negro bem-sucedido na sua profissão, na minha opinião, deve ficar mais atento à inveja, que é pior do que qualquer preconceito.”
Mario Mendes, 54 anos, jornalista, dirigiu revistas da Trip Editora e hoje é editor na revista Veja