Apaixonada pela cidade, uma arquiteta resolveu casar na praça que está ajudando a revitalizar. Laura Sobral, de 30 anos, criou o movimento A Batata Precisa de Você — coletivo que se encontra semanalmente no Largo da Batata, em São Paulo. Eles fazem oficinas culturais como de jardinagem, montagem de mobiliário urbano com material reutilizável, leituraços e discussões sobre a ocupação de espaço público. Em entrevista para a Tpm, ela falou da história do projeto, que nasceu em janeiro de 2014. Assista ao vídeo:
Uma história de amor entre uma arquiteta e uma praça
Odair José, o artista Carlos Adão e um doc sobre o fotógrafo André Midani no Trip TV #40
Rei do brega? Terror das empregadas? Quem, afinal, é Odair José? Passamos a limpo a vida e a carreira do músico que foi perseguido pelos militares por cantar, em plena ditadura, sobre drogas, prostitutas e pílula anticoncepcional. “Hoje eu sou natureba, mas já fui muito louco. Já rachei 1 quilo de cocaína com um amigo”, revela Odair José.
Quando André Midani chama seus amigos para jantar e tirar um som em casa, quem aparece são figuras como Erasmo Carlos, Gilberto Gil, Jorge Ben e Arnaldo Antunes. Um dos maiores executivos da música do país, Midani teve influência em praticamente tudo que foi sucesso nos últimos 60 anos – da bossa nova ao rock nacional. Para entender melhor essa figura nascida na Síria e criada em Paris, conversamos com Andrucha Waddington e Mini Kerti, dupla responsável pela série documental André Midani — Do vinil ao download. Levamos uma das maiores lendas da arte de rua brasileira, o obsessivo Carlos Adão, para visitar a exposição de um dos maiores e mais influentes artistas do século 20, Pablo Picasso. Enquanto o mercado editorial passa por uma grave crise e busca no ambiente on-line refúgio e salvação, encontramos editores autônomos e autores independentes que não abrem mão do papel. E você vai conhecer o High Hills, uma aula de dança para homens e mulheres que não querem descer do salto.
Patrícia Abravanel, mercado da maconha e índios Yanomami no Trip TV #43
A apresentadora Patrícia Abravanel, capa da revista TPM deste mês, fala sobre seu pai, Silvio Santos, e o machismo na TV: "Mulher pra ficar na TV muito tempo tem que ser bem profunda, ter bastante conteúdo", afirma. Outro destaque é a Marcha da Maconha, que acontece neste sábado (23) em São Paulo. Enquanto a legalização não vem, mostramos empreendedores que faturam alto com o mercado da erva — sem infringir a lei. A mais nova sensação do mundo fitness nos EUA, Leslie Richman, visita as praias brasileiras pela primeira vez, num ensolarado ensaio sensual. O multiatleta Luis Roberto Formiga, por sua vez, volta a encarar um voo de asa-delta depois de mais de 20 anos sem praticar. E ainda nesta edição: um alerta urgente direto da Amazônia, registrado pelo documentarista Danilo Arenas, no qual o povo yanomâmi relata sua luta pela vida: "Se os yanomâmis morrerem, as árvores também vão morrer e os rios secarão. Nós choraremos juntos", diz um dos integrantes da tribo.
Alerta Yanomami para o mundo
O documentarista Danilo Arenas foi a Roraima entender a revolta da tribo Yanomami em uma expedição realizada pelo Instituto Sociambiental. Lá, ele fez registros e enviou com exclusividade para o Trip TV o alerta feito por esse povo indígena. Assista no player acima.
Uber, Airbnb, Wikipedia, Netflix vão enterrar táxis, hotéis, livros e TVs?
Pablo Saborido
Uber x Táxis - O número de carros do Uber ultrapassou o dos tradicionais táxis amarelos em Nova York: são 14.088 veículos contra 13.587, segundo a Comissão de Táxi e Limousine da cidade
A cena se repete em quase todos os lugares por onde passa o Uber: milhares de taxistas saem pelas ruas para protestar junto ao poder público contra o popular aplicativo de celular usado para conectar motoristas particulares a passageiros. Segundo os taxistas, o Uber é ilegal, pratica concorrência desleal e representa uma ameaça ao emprego de milhões de trabalhadores. No Brasil, manifestação semelhante ocorreu no início do mês passado nas quatro cidades onde o app está disponível: São Paulo, Rio, Brasília e Belo Horizonte. No dia 28 de abril, a Justiça de São Paulo concedeu uma liminar em favor do sindicato de taxistas do estado, determinando a suspensão das atividades do aplicativo no Brasil sob pena de multa diária de R$ 100 mil. Seis dias depois, a liminar foi revogada após o Uber recorrer na Justiça paulista.
Desde que foi lançado em 2009 em San Francisco, na Califórnia, o Uber se espalhou rapidamente pelo mundo: hoje são realizadas diariamente 1 milhão de viagens em 301 cidades de 56 países. Assim como no Brasil, o serviço provocou forte reação e foi suspenso em lugares como Espanha, Alemanha e França. A chegada ao mercado brasileiro ocorreu há um ano, primeiro no Rio de Janeiro, por conta da Copa do Mundo. Com valor de mercado de US$ 45 bilhões, a empresa é a segunda start-up de tecnologia mais valiosa do planeta, atrás apenas da fabricante chinesa de smartphones Xiaomi, também preparando para breve seu desembarque no Brasil.
Os números arrasa-quarteirão são típicos do que os especialistas em tecnologia e em empreendedorismo chamam de produtos e serviços “disruptivos” – ou seja, que abrem novos mercados e acabam por desestabilizar setores inteiros da economia. “Para ser disruptivo, não basta ser uma melhoria, tem que romper com o padrão existente. É algo que fura a fila. O Uber é disruptivo porque não é táxi, é outra coisa: uma plataforma de tecnologia que conecta motoristas particulares com usuários sem passar pelo intermédio do poder público. É um passo que vai além dos aplicativos usados pelos taxistas, como o Easy Taxi ou o 99Taxis”, explica Luli Radfahrer, professor de comunicação digital da ECA-USP, consultor em inovação digital e colunista de tecnologia do jornal Folha de S.Paulo.
A princípio, qualquer pessoa com carteira de motorista profissional e um carro sedan de luxo na garagem pode se candidatar a ser um motorista parceiro do Uber, fazendo bicos para ter uma renda extra. No Brasil, por enquanto, o único produto oferecido pela plataforma é o UberBLACK, serviço que possibilita aos usuários solicitarem carros do tipo sedan, com motoristas – os modelos mais usuais são Toyota Corolla, Ford Fusion e Volkswagen Jetta.
"Para ser disruptivo, não basta ser uma melhoria, tem que romper com o padrão existente. É algo que fura a fila"
Basta o motorista pagar uma taxa de 20% por corrida para a empresa e preencher os requisitos (é necessário fazer um cadastro no site do Uber e então passar por uma checagem de informações e antecedentes criminais; o candidato precisa também ter um carro modelo sedan de luxo, com banco de couro e ar-condicionado; e os veículos devem ser novos e contar com seguro que cobre o passageiro e o motorista). O motorista Fábio Luiz Marques Santos, 44 anos, que atende pelo Uber desde janeiro, afirma que seus ganhos líquidos – entre as viagens que faz via aplicativo e os bicos que realiza como motorista particular – somam R$ 2 mil por semana. “Trabalhando sete dias por semana, consigo ganhar mais do que na época de carteira assinada”, diz. Antes do Uber, Santos fazia transporte executivo, atendendo artistas, empresários e políticos.
A questão é que em muitos países, como o Brasil, o transporte remunerado de passageiros só pode ser realizado por taxistas, que recebem uma licença do governo para isso. Na cidade de São Paulo, a licença, que era entregue gratuitamente aos primeiros taxistas, deixou de ser fornecida quando o número de carros atingiu patamar considerado limite – há mais de 57 mil motoristas cadastrados na prefeitura paulistana, no entanto a administração só disponibiliza 33 mil alvarás. Isso gerou um mercado paralelo de aluguel e venda de autorizações, que chegam a custar, de acordo com levantamento de 2010, mais de R$ 150 mil em locais como o aeroporto de Congonhas, em São Paulo.
Segundo os taxistas, os motoristas do Uber roubam o trabalho deles, ao oferecer um serviço clandestino e não pagar impostos. “Ninguém pode deter a tecnologia, mas o Uber é ilegal. Para exercer a profissão de taxista é preciso fazer um curso e receber um alvará da prefeitura e o Uber não faz nada disso. Se todo mundo chegar aqui e fizer o que quiser, vira um país sem lei. São Paulo tem a terceira maior frota de táxis do mundo, não tem mais espaço para mais táxis na cidade. Tanto que a prefeitura parou de conceder alvarás”, afirmou à Trip Natalício Bezerra Silva, presidente do Sindicato dos Taxistas Autônomos de São Paulo.
Era da disrupção
Ao longo da história, inovações disruptivas costumavam surgir de tempos em tempos. A diferença está na velocidade e na escala com que ocorrem hoje. “Antes havia uma disrupção a cada 30, 40 anos. O rádio, por exemplo, surgiu no final do século 19; a TV só foi aparecer quatro décadas depois. Hoje, com as novas tecnologias, essas mudanças ocorrem de forma muito mais rápida e numa escala muito grande, desmontando o mundo como a gente conhece. Por isso elas são tão atordoantes”, argumenta Radfahrer.
"Com as novas tecnologias, as mudanças ocorrem de forma muito mais rápida e constante, desmontando o mundo como a gente conhece. Por isso elas são tão atordoantes"
Produtos e serviços disruptivos são cada vez mais comuns, e seus efeitos são avassaladores. Com sua plataforma de buscas, o Google mudou a forma como se vai atrás e se organiza a informação na internet. O Facebook redefiniu a maneira como as pessoas se relacionam dentro e fora da rede. A Wikipedia fez com que as enciclopédias se tornassem artigos raros, assim como o Waze praticamente aposentou os guias de ruas e até os aparelhos de GPS automotivos. O Netflix tornou obsoletas as locadoras de vídeo e abalou os serviços de TV a cabo, ao oferecer filmes e séries que podem ser vistos a qualquer hora, de qualquer lugar, pelo computador, tablet ou celular – entre nós, até o mais emblemático dos homens de mídia tradicional, Silvio Santos, disse, no ar, que usa o serviço. Ao permitir o aluguel de quartos e casas em mais de 190 países, o Airbnb (acrônimo de air bed and breakfast: colchão inflável e café da manhã) vem provocando terremotos nos setores hoteleiro e imobiliário.
Pablo Saborido
Airbnb x Hotéis - Desde a sua fundação em 2008 em San Francisco, na Califórnia, o Airbnb já hospedou em casas e apartamentos mais de 25 milhões de pessoas em 34 mil cidades de 190 países
O inventor do termo “inovação disruptiva” foi Clayton Christensen, professor de administração de Harvard e autor do livro O dilema da inovação, de 1997, que a revista britânica The Economist elegeu como um dos seis livros de negócios mais importantes já escritos. Christensen se inspirou no conceito de destruição criativa do economista austríaco Joseph Schumpeter (1883-1950) para descrever os ciclos dos negócios. Segundo Christensen, mesmo quando as empresas fazem tudo certo – ouvem seus consumidores e investem pesado em tecnologia, por exemplo – elas podem quebrar com o surgimento de inovações disruptivas, que destroem um mercado antigo e criam um novo, como ocorreu com os telefones fixos com a chegada dos celulares. Desde então, Christensen se tornou um autor celebrado no mundo dos negócios do Vale do Silício. “Seja disruptivo e você será salvo” se tornou um mantra entre as start-ups de tecnologia.
Danos Colaterais
Em artigo publicado no ano passado na revista The New Yorker, “The Disruption Machine”, a professora de história da Universidade de Harvard Jill Lepore critica o uso indiscriminado do termo “disruptivo”, diz que o conceito só serve para estudar o passado, e não para antecipar o futuro, e aponta falhas nas previsões de Christensen, como quando ele disse que o iPhone seria um fracasso. Lepore lembra que cada época tem uma teoria sobre ascenção e queda, crescimento e decadência. “O século 18 abraçou a ideia do progresso; o século 19, da evolução; o século 20, do crescimento e da inovação. Nossa era é da disrupção”, diz a historiadora.
"Os efeitos colaterais dos novos modelos de negócios muitas vezes são a falência de empresas tradicionais, a demissão em massa e a precarização do mercado de trabalho"
Apesar de normalmente serem opções melhores do ponto de vista dos usuários, produtos e serviços disruptivos podem guardar em si alguns efeitos colaterais. Falência de empresas tradicionais, demissão em massa e precarização do mercado de trabalho são alguns deles. “Esse é o lado ruim e uma consequência inevitável do processo, já que as empresas no mercado passam a não ter condições de competir com as novas. Antes essas transformações eram graduais, agora são muito rápidas. E nosso cérebro não está programado para tantas mudanças. As empresas, a sociedade e os órgãos de regulação estão tentando reagir a esse processo, só que ele é muito rápido, cada vez mais rápido”, comenta Manoel Lemos, ex-diretor superintendente da unidade de negócios digitais da Editora Abril, atual sócio da Redpoint, empresa que faz investimentos em start-ups de tecnologia, e fundador do fazedores.com, portal focado no movimento maker.
Inovações disruptivas têm impacto nas mais diversas áreas, do mercado financeiro ao setor jurídico, do jornalismo às áreas de educação e saúde. Um relatório interno do jornal The New York Times que vazou no ano passado mostrou, de maneira exemplar, a luta do diário para se adequar ao mundo digital, com a concorrência de empresas como Buzzfeed e Huffington Post. “Disrupção é um padrão presente em muitas indústrias no qual empresas pequenas usam novas tecnologias para oferecer alternativas de produtos mais baratos e inferiores do que os vendidos por atores estabelecidos (pense na Toyota tomando conta de Detroit décadas atrás). Hoje um grupo de start-ups quer provocar uma disrupção em nossa indústria ao atacar seu principal representante, o The New York Times”, afirma o estudo sobre inovação feito pelo tradicional diário americano.
Pablo Saborido
Wikipedia x Enciclopédias - Criada em 2001, a Wikipedia possui 35 milhões de verbetes publicados em 288 línguas. Do total, 4,8 milhões são em inglês
Na área de saúde, especialistas apontam que um produto que deverá abalar o setor é o computador Watson, da IBM, que entrou para a história da inteligência artificial ao derrotar os oponentes humanos no programa de auditório de TV Jeopardy, em 2011. “Ali, o Watson respondia a perguntas sobre conhecimentos gerais. Agora está sendo testado em larga escala em hospitais para responder a questões sobre doenças. Um usuário pergunta: ‘Estou com dor de estômago e minha cabeça está doendo. O que eu tenho?’. O médico tem que processar uma série de informações, que às vezes ele não tem, para responder. Já o Watson, com uma base de dados gigantesca, estará sempre mais atualizado do que o médico”, afirma o futurista Michell Zappa, fundador da Envisioning, consultoria especializada em descobrir tendências na área de tecnologia. Manoel Lemos destaca que com a ajuda do Watson os profissionais da saúde poderão atender um maior número de pessoas, já que muitas etapas do atendimento serão cortadas. “Agora, a relação do médico com o paciente continuará sendo fundamental. Tem coisas que não podem ser substituídas pela tecnologia”, pondera Lemos.
"Mesmo quando as empresas fazem tudo certo, elas podem quebrar com o surgimento de inovações disruptivas, que destroem um mercado antigo e criam um novo"
Como são novidade, serviços disruptivos não possuem uma regulamentação quando chegam ao mercado. É o caso do que está acontecendo com o Uber no Brasil. “Quando o Google e o Facebook chegaram ao país também não havia nada que regulamentasse os direitos e deveres das empresas de internet e dos usuários. Houve então um trabalho conjunto com a abertura de fóruns on-line, em que os usuários colocavam suas necessidades. Foi nesse contexto que surgiu o Marco Civil da Internet [lei que regula o uso da rede no Brasil, aprovada no ano passado]. A gente está trabalhando para construir o Marco Civil da Economia Compartilhada”, diz Guilherme Telles, diretor-geral do Uber em São Paulo, que está em contato com empresas de perfil semelhante, como o Airbnb. Nos EUA, o uso do aplicativo de transporte foi regulamentado em 26 jurisdições e proibido no estado de Nevada.
Pablo Saborido
E-mails x Cartas - O número de cartas enviadas no Brasil chegou ao menor nível em 15 anos. Segundo os Correios, 2,4 bilhões de cartas foram mandadas no ano passado, número 60% menor do que em 2001
Ser ou não ser
O colunista da Trip Ronaldo Lemos, um dos principais responsáveis pela criação do Marco Civil da Internet, afirma ser imprevisível o que vai acontecer com o Uber por aqui. “Vai ser um caso importante de acompanhar, especialmente porque vai dizer muito sobre o ambiente de negócios no Brasil e sobre sua abertura ou não a modelos como este”, afirma o advogado e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.
Sobre a criação de um Marco Civil da Economia Compartilhada, Lemos acha que ainda é cedo para acontecer, já que a atividade ainda é pequena no país. “Agora, se crescer, é provável que haja iniciativas regulatórias. Muitas das empresas querem ser reguladas e pedem por isso. A visão delas é de que é melhor viver com a previsibilidade da regulação do que na incerteza sobre quais são seus direitos e responsabilidades.”
Em meio a tantas mudanças, que ocorrem em ritmo cada vez mais acelerado, o especialista em inovação digital Radfahrer recorre a um autor nascido no século 16. “Sofrer os dardos e flechas de um destino ultrajante ou levantar os braços contra um mar de problemas, se opondo a eles e vencê-los?”, escreve Shakespeare, em seu Hamlet. Segundo Radfahrer, a resposta para um problema colocado pela tecnologia, em geral, é mais tecnologia. “Você pode fugir para o mato, fechar os olhos e fingir ser invisível. Mas isso não vai resolver o problema porque ele é inevitável. Então o que fazer? A resposta é abraçar sem medo essa tecnologia para que ela deixe de ser disruptiva, ajustando-a às nossas necessidades, e não nós a ela”, conclui.
Pablo Saborido
Celulares x Orelhões públicos - A Anatel pretende retirar metade dos orelhões públicos do Brasil. O motivo é a falta de uso deles provocada pela disseminação da utilização de aparelhos celulares no país
Sharon Azulay, dona da marca BlueMan, no Trip TV
Como a prisão perpétua existe na prática no Brasil
Aos 73 anos, o mundo de Francisco Costa Rocha limita-se a poucos passos entre a sua cela, o pátio e a biblioteca que organiza na Casa de Custódia de Taubaté. Encarcerado há 46 anos, Chico Picadinho é o hóspede mais longevo do sistema prisional brasileiro – embora nossa Constituição determine que o tempo de cumprimento de pena privativa de liberdade não pode exceder a 30 anos. Mas o que é a lei num país em que processos contra empreiteiras desfazem-se como castelos de areia e condenações a banqueiros resultam na prisão do delegado responsável, enquanto cidadãos que furtam xampus ou potes de margarina passam anos atrás das grades antes mesmo de serem julgados? Autor de dois crimes que chocaram a sociedade nos anos 70 – a morte e o esquartejamento de duas mulheres, que lhe renderam a assustadora alcunha –, Francisco tinha dois destinos pela frente: ser considerado insano e ir para um manicômio judiciário ou ser julgado como preso comum. A Justiça entendeu que o segundo caso é que valia para ele. Condenado, cumpriu pena integralmente em regime fechado. Em junho de 1998, seu alvará de soltura chegou a ser expedido, quando Francisco sofreu uma "interdição civil" que o considerou incapaz de responder por seus atos. Continuou preso, na mesma penitenciária de Taubaté, onde não recebe o tratamento psiquiátrico exigido pela... lei. O caso já virou queixa contra o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Naquele final da década de 90, a soltura – e posterior assassinato numa briga de bar – de outro conhecido criminoso brasileiro, João Acácio Pereira da Costa, o Bandido da Luz Vermelha, após 30 anos de cadeia, reforçou os argumentos dos que defendem prisão a qualquer custo para indivíduos com os quais não se sabe direito o que fazer. O direito, esse que se dane. Outro que paga a conta do "clamor popular" em torno de seu nome é Pedro Rodrigues Filho, o Pedrinho Matador. Considerado o maior serial killer brasileiro, réu confesso de cem assassinatos, ele passou 30 anos atrás das grades até ser libertado, em 2007. Reencontrou a irmã que vive no interior paulista, trabalhou em um sítio por três anos e não voltou a cometer crimes. Ainda assim foi preso novamente – e hoje, aos 61 anos de idade, já soma 38 de sistema carcerário. O caso de Roberto Aparecido Alves Cardoso, o Champinha, menor que participou com outros quatro adultos do estupro e brutal assassinato de Liana Friedenbach e de seu namorado, Felipe Caffé, produziu uma solução original. Quando o internamento máximo previsto pela legislação foi cumprido, criou-se um aparato específico para impedir que Roberto fosse solto: a Unidade Experimental de Saúde (UES), estrutura híbrida pela qual respondem tanto a Secretaria de Saúde quanto a de Administração Penitenciária paulistas. Luzes e trevas Por mais chocantes que sejam os crimes cometidos por essas pessoas e por mais perturbadora que seja a perspectiva de vê-las nas ruas, não se constrói uma nação sem normas claras e respeito aos direitos de todos. Sob risco de cometer aquilo que se procura coibir: injustiças. Quando não está cuidando de algum dos 300 volumes da biblioteca da Casa de Custódia de Taubaté, Francisco Costa Rocha dedica-se à pintura e escreve cartas. Depois da morte da mãe, recebe apenas visitas do advogado que o acompanha desde o primeiro dia na prisão, para quem desabafou, por escrito: "Será que agora que vejo as trevas e as luzes da alma humana, tendo me decidido pelo caminho da luz, iria novamente trilhar o outro caminho, por duas vezes conhecido, que conduz ao abismo? Não. Francamente, não. Pensar o contrário seria negar a evolução da espécie, a evolução humana". *Jornalista e bacharel em ciências sociais, Ivan Marsiglia foi editor da revista Playboy, redator-chefe da Trip e repórter de O Estado de S. Paulo. É autor de A poeira dos outros (Arquipélago Editorial)
Apelidada de "Guantánamo jurídico-psiquiátrica" por uma reportagem da revista piauí, que denunciou o fato de os exames de Champinha não atestarem transtorno de personalidade que justificasse sua permanência, a UES dificulta até mesmo a visita de jornalistas, que se veem jogados de uma secretaria para outra sem que obtenham autorização.
Sylvio Passos, o amigo criador do primeiro fã clube de Raul Seixas
Arquivo Pessoal Sylvio Passos
Sylvio Passos e Raul Seixas em 1984
Sylvio Passos não é só mais um fã de Raul Seixas. Ele é o guardião de toda a sua memória e o criador do primeiro fã clube oficial do cantor, o Raul Rock Club. Não bastasse a responsabilidade de preservar a memória do Maluco Beleza, ele teve a chance de ser amigo pessoal de seu maior ídolo. Tudo começou aos 17 anos, quando resolveu botar um anúncio no jornal para conseguir o telefone de Raul, que acabava de se mudar para São Paulo.
"Disseram que eu estava louco. Mas aquilo me chapou tanto que eu resolvi botar o anúncio. Que maluco, né? Mas funcionou! Consegui o telefone, liguei, e em pouquíssimos dias lá estava eu na casa do Raulzito para um almoço. Eu era muito novinho, não tinha nem barba na cara", recorda Sylvio
Hoje aos 52 anos, o paulistano da Vila Maria tem muito a contar sobre a convivência com o ídolo. O nervosismo em vê-lo pela primeira vez tomou conta, mas Raul deu um jeito de quebrar o clima de insegurança: "Eu estava estático na mesa, trêmulo e gaguejando. Era como se estivesse na frente de Janis Joplin e Jimi Hendrix, porra. Pra quebrar o gelo, ele meteu a mão numa travessa de macarrão e colocou no meu prato dizendo 'menino, come aí que você já é de casa'".
"Pra quebrar o gelo, ele meteu a mão numa travessa de macarrão e colocou no meu prato"
Sylvio era mais um daqueles garotos que ouvia rock com os colegas da escola e odiava tudo que fosse cantado em português. "Eu achava o Chico Buarque um chato, o Caetano Veloso um porre", diz. A música que mudou tudo foi Metamorfose Ambulante, do álbum Gita (1984). O encanto foi tanto que ele resolveu esquecer o preconceito e criar o fã clube de Raul, em 1981.
Arquivo Pessoal Sylvio Passos
Em Georgia, nos EUA - 1984
A admiração pelo músico nunca acabou, mas o encantamento deu lugar a uma grande amizade ao mesmo tempo em que o fã clube crescia. "Foi o único oficializado pelo próprio músico, surgiu em 1981. Tenho todo o acervo do Raul até hoje. Tem roupas, cartas que ele mandava para namoradas e fotos. É o famoso Baú do Raul", conta Sylvio. Para ele, existe um motivo pela simpatia de Seixas pelo projeto: "Como é que um menino de 17 anos diz estar mais preocupado em preservar a memória do que idolatrar?"
A convivência se tornou diária e Sylvio estava em todos os rolês preferidos de Raul, das baladas de rock aos restaurantes de comida japonesa. Dormia na casa do ídolo e começou a fazer um bico de roadie em seus shows. "A primeira vez que eu andei de avião na minha vida foi com ele". Entre a diversão e os ensinamentos, Sylvio também esteve presente em momentos que mostravam cada vez mais que o artista era um cidadão comum, que precisava correr ao hospital por problemas de saúde e pagar contas no banco.
"Ele detestava maconha, falava que baiano já era meio lerdo, se fumasse ficaria mais ainda"
Por falar em problemas de saúde, Sylvio desmente a figura doidona que as pessoas têm de Raul. "O que quase ninguém conseguiu captar é que ele era uma pessoa que criou um personagem para vomitar suas insatisfações. O maior problema na vida dele foi o álcool. A única droga que ele tinha uma afinidade era a cocaína. Detestava maconha, falava que baiano já era meio lerdo, se fumasse ficaria mais ainda [risos]. Também nunca tomou ácido, nem pico. Tinha pavor de agulha. A única injeção que ele tinha que tomar era a de insulina para diabetes e pancreatite."
E há quem diga que chegou o momento em que o criador e a criatura começaram a se confundir. Para o dono do fã clube, a figura de Raul e a ideologia pregada por trás de sua música e dos gritos de "Viva a sociedade alternativa" foram muito fortes para toda uma geração e para o próprio cantor. "Mexeu com a cabeça de muita gente. Conheço quem virou evangélico depois da morte do Raul por achar que estava adorando o demônio. Realmente acredito que teve um momento em que ele próprio se confundiu, provavelmente pelo abuso do álcool."
Arquivo Pessoal Sylvio Passos
Em 1989, uma das últimas de Sylvio fotos com Raul
No fundo do oceano existe um baú que guarda segredos
almejados por gênios, sábios, alquimistas e conquistadores
Eu conheci esse baú num estranho ritual reservado a poucos
Hoje eu posso enfim revelar que essa busca de séculos
Foi em vão
Esse é o trecho que abre o último disco gravado por Raul, A pedra do Gênesis, de 1988, exatamente um ano antes de sua morte. Para o fã, já demonstra uma insatisfação e o "processo deprê muito grande" pelo qual o cantor estava passando. "Apesar de tudo, ele era um maluco beleza, do bem. Tirava sarro de todo mundo. Mas já no final da vida eu comecei a sentir que ele não estava feliz, andava insatisfeito e irritado. Penso que ele estava morrendo, que a essência dele estava se acabando", diz Sylvio emocionado ao lembrar do final triste da carreira do ídolo.
Com a morte de Raul, em 1989 aos 44 anos, a mãe dele dividiu seus pertences e separou uma grande parte para Sylvio. Hoje, o maior acervo do cantor é do criador do Raul Rock Club, que sempre foi mantido sozinho pelo fã-amigo. "Fui o único louco que seguiu com isso. Já faz 34 anos", diz ele, que ainda hoje mantém contato com a família e se considera um agregado. Todo ano sagradamente no dia 21 de agosto, data de morte do cantor, Sylvio participa da passeata que acontece em São Paulo em homenagem ao Maluco Beleza. Neste ano, fará uma apresentação com sua banda de blues Putos Brothers Band.
"Ele ensinou a não aceitar imposições, a não se curvar, a ter um olhar unilateral para um mundo"
"O maior ensinamento que o Raul me deixou foi eu me conhecer. Fiz uma versão de Meu amigo Pedro, a Meu amigo Raul, falando exatamente isso, que ele me ajudou a reconhecer tudo o que tinha em mim que eu não enxergava. Ele ensinou muito para a legião de fãs que conquistou. Ensinou a não aceitar imposições, a não se curvar, a ter um olhar unilateral para um mundo. Metamorfose ambulante traduz muito isso", conta.
Metamorfose é a música que Sylvio usa de referência para tudo, mas não é a sua preferida. "É mais fácil falar as que eu não gosto! [risos]. Mas quando eu ouço qualquer música parece que estou conversando com ele. Eu entendo cada respiração, cada vírgula, cada coisa que ele está dizendo ali. É como se ele estivesse conversando comigo, mas sem essa punhetagem de divindade. Se ele era um mago? Depende. Se for aquele mago da Disney, não [risos]. Mas se for um mago que consegue transformar palavras confusas em poemas, esse eu posso dizer que sim."
Arquivo Pessoal Sylvio Passos
Na casa de Raul em São Paulo - 1981
As novas metas da ONU e a utopia: podemos salvar a humanidade?
Fê Pinheiro
A Terra acaba de entrar no cheque especial. Esse é o aviso do Global Footprint Network (GFN), think tank independente com bases nos EUA, na Bélgica e na Suíça que trabalha para promover a sustentabilidade. Em oito meses, no dia 13 de agosto de 2015, ultrapassamos o limite de uso dos recursos naturais renováveis para um ano inteiro. O dia da sobrecarga do planeta chega cada vez mais cedo: em 2000, foi no início de outubro.
Atualmente, a população mundial consome o equivalente a 1,6 planeta por ano. Secas, erosão do solo, perda de biodiversidade e acúmulo de dióxido de carbono na atmosfera são apenas algumas das consequências desse consumo. É preciso um plano para salvar o mundo. Que tenha não só metas concretas, mas novas utopias. “As utopias são para a comunidade o que os sonhos são para os indivíduos”, afirma Adauto Novaes, filósofo e curador do evento Mutações, citando o filósofo francês Francis Wolff.
O Mutações é um ciclo de debates e palestras tradicional entre intelectuais do mundo todo. O evento já levantou temas como violência, silêncio e preguiça e discutiu na sua 30ª edição, no mês passado, em São Paulo, as utopias da humanidade. Não é por acaso. Isso se faz cada vez mais urgente.
Quando se fala em utopia abarca-se tudo: as primeiras, as superadas, as anunciadas pela ficção científica (como a trans-humanista, um futuro em que homem e máquina se fundem), as políticas (como o comunismo de Karl Marx) e a falta da produção intelectual em torno de problemas e soluções contemporâneas, que aponte para as utopias de nossos tempos.
O primeiro registro da palavra é de 1516, do livro Utopia, do inglês Thomas Morus. Em sua etimologia, ela quer dizer “não lugar”, mas também pode ser traduzida por eutopia – lugar da felicidade. Ou, como escreveu Marx, a “expressão imaginativa de um mundo novo”. Embora as utopias geralmente projetem o futuro, seu objeto de estudo é o presente. Ao propô-las, refletimos o amanhã e questionamos nosso caminho até então. “Recorremos às utopias quando a realidade torna-se insuportável”, diz Adauto.
Pois, bem-vindos ao insuportável.
Qual é o destino da humanidade? Quanto tempo resta ao homem na Terra? É sensato o modo como vivemos? As respostas, em primeiro lugar, trazem retratos do hoje e, ainda, previsões desesperadoras para o amanhã. Guerras, desigualdades, fome, pobreza, intolerâncias, o fim dos recursos naturais, mudanças climáticas bruscas e suas consequências. A realidade mais parece uma distopia – um pesadelo em forma de utopia. “Precisamos acordar no sonho e não do sonho”, complementa Adauto.
Um acordo global para acabar com o uso de combustíveis fósseis deve ser assinado na Conferência do Clima das Nações Unidas em Paris (a COP 21), em dezembro. Em relação às temperaturas anteriores à Revolução Industrial, o objetivo é limitar seaumento a no maximo 2 graus celsius.
A COP 21 é só uma das ações da ONU para este ano. A organização também propõe um projeto ambicioso para tornar o planeta um lugar melhor (e possível) para todos nós: a primeira agenda universal para o desenvolvimento sustentável. Nela, estão 17 objetivos, subdivididos em 169 metas, chamados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Paz e inclusão
Fê Pinheiro
A proposta nasceu em 2012, no Rio de janeiro, na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, mais conhecida como Rio+20. Os ODS têm foco na erradicação da pobreza; na melhora da saúde e da educação; na igualdade de gêneros; na promoção da sustentabilidade econômica (crescimento inclusivo, empregos e infraestrutura) e na sustentabilidade ambiental (mudança do clima, oceanos e ecossistemas e consumo e produção sustentável). Tudo isso a ser construído em sociedades pacíficas e inclusivas. O objetivo 17 – Parcerias pelas metas –, se refere aos meios de implementação e financiamento de todos os outros. “As fontes são múltiplas: governos de todos os níveis – locais e internacionais –, o setor privado, a sociedade civil e a academia”, diz Haroldo Machado Filho, assessor sênior do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no Brasil.
Haroldo explica que os ODS estão baseados em três pilares fundamentais: o social, o ambiental e o econômico. “Desenvolvimento sustentável é a ideia de transformar as vidas das gerações presentes e futuras sem causar danos ao planeta”, diz. “Significa investir na economia global, mas principalmente garantir que esse crescimento econômico e individual ocorra de forma sustentável.” Para Haroldo, enfrentar a mudança do clima e promover o desenvolvimento sustentável são “dois lados da mesma moeda”. “O desenvolvimento sustentável não pode ser alcançado sem uma ação em relação à mudança climática e à forma como o homem consome”, afirma.
Recorremos às utopias quando a realidade torna-se insuportável. Precisamos acordar
no sonho e não do sonho.
Os 17 ODS são o passo seguinte de um outro projeto: os 8 Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), instituídos em 2000 pelas Nações Unidas, e que tiveram na erradicação da fome e da pobreza as suas maiores bandeiras. “Os ODM produziram o movimento antipobreza de maior sucesso da história”, é o que diz o relatório oficial de resultados. Segundo a ONU, o número de pessoas vivendo em extrema pobreza (menos de US$ 1,25 por dia) diminuiu em mais da metade, passando de 1,9 bilhão em 1990 para 836 milhões em 2015. Os ODM trouxeram também outros resultados: a taxa de crianças que morrem antes do quinto aniversário diminuiu em mais da metade, de 90 para 43 mortes por mil nascidos vivos. Os números relativos à mortalidade materna tiveram declínio de 45%. Mais de 6,2 milhões de mortes por malária foram evitadas. O número de pessoas que ganharam saneamento básico foi de 2,1 bilhões.
A nova agenda de desenvolvimento sustentável será oficialmente adotada pelos 193 países-membros da ONU no fim de setembro, durante uma Assembleia Geral em Nova York. Assim como os Objetivos do Milênio, os novos Objetivos não têm obrigação jurídica. “Devem ser compromissos morais e aspiracionais, cabendo aos governos e à sociedade civil torná-los possíveis”, diz Haroldo.
“Com a ajuda do meus amigos do Porta dos Fundos, queremos fazer um enorme barulho sobre essas metas, quase como se fosse o fim de semana de lançamento de um grande filme”, resume o cineasta britânico Richard Curtis, que dirigiu longas como Simplesmente amor, foi roteirista de Um lugar chamado Notting Hill e lidera o Project Everyone – iniciativa para divulgar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. A ideia é espalhar, em 7 dias, as novas metas para as 7 bilhões de pessoas do planeta. “O que eu espero é que, do jeito que puderem, vocês brasileiros divulguem os ODS da maneira mais divertida que puderem”, pede Richard.
As ações têm data entre 26 de setembro e 3 de outubro e incluem um show no Central Park, em Nova York, que vai virar programa de TV, e a “maior aula do mundo”, ministrada em escolas de cem países. No Brasil, os sócios do canal Porta do Fundos, Antônio Tabet, Gregorio Duvivier, Fábio Porchat, João Vicente de Castro e Ian SBF, são a maior aposta para divulgação da agenda. Em quase três anos, o canal atingiu 1,8 bilhão de visualizações e conquistou mais de 10 milhões de assinantes. O grupo vai produzir três vídeos, que serão lançados no início de outubro, sobre os objetivos 5 – Igualdade de gênero –, 10 – Redução de desigualdades –, e 16 – Paz e justiça. “Escolhemos essas três metas porque nos pareceram as mais inspiradoras e também por estarem muito longe de serem alcançadas. Mas é exatamente isso que nos interessou”, conta Gregorio. “O Porta também começou de forma ambiciosa. Éramos todos contratados da televisão e resolvemos chutar o balde para começar nosso canal. Foi um risco louco, e todo o mundo dizia que íamos fracassar. Temos especial simpatia pelos objetivos longínquos e pelos projetos que parecem impossíveis.” Ainda afirma: “Tudo parece impossível quando nunca foi feito. Utopia, muitas vezes, é só um lugar onde ninguém chegou ainda”.
Apocalipse
O objetivo número 12 – Assegurar padrões de produção e consumo sustentáveis – talvez seja o maior desafio. Somente com sua realização é possível seguir com os outros sem que a Terra entre em um colapso. O modelo econômico vigente, no qual consumimos de maneira predatória, tende ao caos. E não são poucos os que apostam em uma barbárie generalizada para o futuro.
É de um tipo de apocalipse que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e a filósofa Déborah Danowski falam no livro Há mundo por vir? – Ensaio sobre os medos e os fins (ed. Cultura e Barbárie). “As espécies estão se extinguindo, e a humanidade parece que continua andando para um abismo. O mundo vai, de fato, piorar para muita gente, para todo mundo”, afirmou o antropólogo em entrevista à jornalista Eliane Brum, na ocasião do lançamento da obra, ano passado. “Primeiro é preciso crescer para depois distribuir. Está crescendo, está dando renda para os pobres, mas esse dinheiro não está saindo do bolso dos ricos. Está saindo da natureza, da floresta destruída”, enfatizou.
Haroldo concorda: precisamos rever o modelo que abastece a vida no planeta. Mas diferente de Viveiros, é bastante otimista. “As indústrias têm um posicionamento muito progressista hoje. Sabem que precisam se modernizar e estão deixando de ser as vilãs e partindo para alternativas sustentáveis.” Ele diz também que é importante os governos aumentarem a resiliência das populações, com medidas de proteção e ajuda. “Podemos ser a última geração que verá a pobreza extrema no mundo se a agenda da ONU for cumprida.”
No entanto, é perceptível a falta de alguns tópicos no documento. Entre os 17 objetivos e as 169 metas propostas, nenhum toca em direitos LGBT. Fala-se em igualdade de gêneros, em diminuição das violências, injustiças de forma geral, e da redução das desigualdades, mas essa população não está representada em palavras nos textos. Isso se justifica pela limitação do órgão, que vive entre a ideologia e a diplomacia de suas funções. “Estamos falando de um documento que é global e precisa do consenso de todos os 193 países-membros”, responde Haroldo. “E essas questões são sensíveis para muitos países. Em alguns lugares da África, homossexualidade é crime.”
Plano de fuga
Para Pedro Duarte, doutor e mestre em filosofia pela PUC do Rio, há uma incompatibilidade entre as três ambições que pautam os novos objetivos das Nações Unidas: manter o desenvolvimento produtivista industrial, fazer que seja inclusivo e estimular que seja sustentável. “Essas não são metas possíveis juntas. O projeto ocidental moderno, de um produtivismo desenfreado, não me parece compatível com o desejo da ONU.” O objetivo 15 diz que é preciso “deter e reverter a degradação da Terra, e estancar a perda de biodiversidade”. Além do mais, ele diz, “a organização não pode determinar as mudanças. É preciso que os países as queiram”.
O modelo econômico que praticamos é também um modo de entender quem somos. “Não dá pra mudá-lo sem mudarmos a nós mesmos”, afirma Pedro. “O que me parece ser completamente utópico, mas ideal, seria a transformação do nosso processo civilizatório.” Ele reconhece que, ao propor os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, a ONU escancara as nossas doenças enquanto humanidade, e que esse já seria um primeiro passo para um plano de fuga. Contudo, lembra: “O planeta é finito, sobretudo para nós. É preciso sonhar mais e idealizar uma transformação profunda. Nossa salvação talvez dependa de idealizar o desconhecido, ou seja, desconstruir nosso modelo civilizatório”, afirma Pedro, num exercício genuíno de utopia.
Tudo parece impossível quando nunca foi feito
Por Gregorio Duvivier, do Porta dos Fundos
Devoto das causas impossíveis, o Porta dos Fundos puxou pra si a missão de divulgar os novos objetivos da ONU.
Escolhemos essas três metas (Igualdade de gênero, Paz e justiça e Redução das desigualdades) porque nos pareceram as mais inspiradoras – talvez por serem as que mais nos tocam no dia a dia. E também por estarem muito longe de serem alcançadas. A igualdade de gênero é um sonho especialmente distante pra nós brasileiros, que vivemos numa sociedade tão machista.
A redução de desigualdades sociais, nem se fala. E o objetivo da paz parece, pra nós cariocas, uma utopia tão distante quanto a vida eterna. Os objetivos da ONU são muito ambiciosos e parecem inatingíveis. Mas foi exatamente isso que nos interessou. O Porta também começou de forma ambiciosa. Éramos todos contratados da televisão e resolvemos chutar o balde e começar nosso canal. Foi um risco louco, e todo mundo dizia que iríamos fracassar. Temos especial simpatia pelos objetivos longínquos e pelos projetos que parecem impossíveis. Tudo parece impossível quando nunca foi feito. Utopia, muitas vezes, é só um lugar que ninguém chegou ainda.
Chamaram a gente para divulgar essas metas, então podem ficar tranquilos que não vão ser vídeos institucionais. Nem saberíamos fazer isso. Vamos lançar vídeos que a gente lançaria mesmo que a causa não fosse boa. E a ONU chamou a gente exatamente por isso, porque sabe que não vai ser institucional, chapa-branca. Já fizemos vídeos sobre a questão indígena, a Aids, o vegetarianismo, fugindo sempre ao máximo do didatismo, que é o pior inimigo do humor. A ONU sabe disso. Quem está capitaneando essa campanha é o Richard Curtis, um dos maiores roteiristas de comédia do mundo. Eles sabem que humor precisa ser livre. E gostam disso. Senão, não tinham chamado a gente.
A história de imigrantes em busca de uma vida melhor
Maurizio Longobardi
No ano de 2015, 300 mil pessoas tentaram cruzar o Mediterrâneo em direção à Europa em busca de uma vida nova, deixando para trás guerras, conflitos e perseguições. No mesmo período, foram contabilizadas oficialmente pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) 1.867 mortes que não puderam ser evitadas pelas operações de 114 milhões de euros da Frontex, agência europeia para as fronteiras externas da comunidade. Na Sicília, uma das principais rotas de imigração do mundo, chegaram mais de 20 mil somente em maio deste ano, parte dos mais de 60 milhões de pessoas no mundo em deslocamento forçado.
Números, números. Não. São pessoas que atravessam o oceano em barcos precários, abandonados em alto-mar por seus pilotos após um telefonema de aviso à guarda costeira italiana. São pessoas que, vivas e catalogadas, ganham um número nos cartões de identificação nos campos de refugiados, como o de Mineo, pequena cidade no sudeste da Sicília, com 4 mil imigrantes.
Maurizio Longobardi
David, 32 anos. Deixou filha e filho, pequenos, na Nigéria.
São pessoas como David e Osas, que moram em Mineo. David tem 32 anos, é alto e bonito, seus olhos brilham quando, sorridente, conta de sua carreira musical. David veio da Nigéria. É uma vida muito melhor a que imagina para si na Itália: “A great musician”, fala, sorrindo. Foram dois dias de travessia em um barco com outras 298 pessoas – gente vinda do Paquistão, da Somália, de Gana. No vilarejo em que vivia em seu país, David deixou para trás uma disputa familiar por uma propriedade de palmeirais (ainda que seu pai adotivo o tivesse declarado herdeiro). Para trás deixou também a filha de 4 anos e um menino de 2, que David mostra no celular.
Cinco reais por dia
Nesses deslocamentos contemporâneos, há pouco das imigrações de antigamente, de baús com objetos e fotos de família. David carregava consigo um cartão de memória, enfiado no cós da calça junto com o equivalente a US$ 50. E a menina? Não, nenhuma foto, nem mesmo de Loveth, mãe de seus filhos. Aqui, não se trata de uma relação de afeto. “Amor” soa inapropriado. No futuro imaginado de “great musician”, essa sua família nigeriana não surge espontaneamente. Por outro lado, David pode ser o “pai” adotado por Osas, que hoje tem 18 e chegou desacompanhado em Lampedusa há dois anos. Após ter presenciado uma desova de corpos feita por um grupo criminoso na Nigéria natal, passou a ser perseguido e ameaçado.
Maurizio Longobardi
Osas, 18 anos. Erro no cadastro deixou nigeriano sem existir.
De família cristã e sem proteção comunitária ou das crenças tradicionais, Osas fugiu para a Líbia, onde um muçulmano, em pleno período sagrado do Ramadã, o ajudou a embarcar para a Itália. Deus pode sempre ajudar, diz Osas. É d’Ele a incumbência de arquitetar seu futuro, se irá constituir família com uma africana ou com uma italiana, se irá prosperar como mecânico de automóveis, ofício que tem aprendido com o italiano Cosmo, funcionário de Mineo.
Apesar da esperança em relação ao futuro, a realidade nem sempre favorece: as roupas que Osas veste foram encontradas nas ruas de Catânia, capital regional; seu pedido de permanência na Itália foi negado e, devido a um erro do sistema informatizado, Osas chegou a deixar de existir oficialmente por mais de um mês. Não só ele desapareceu, mas também o pouco dinheiro que todos recebem como ajuda de custo: 1,25 euro por dia (cerca de R$ 5).
O sonho é trabalho
Como nas prisões, e outrora nos campos de concentração, uma economia própria acaba por se organizar. Não é diferente em Mineo. Os paquistaneses e bengalis são os responsáveis pelo escambo entre dinheiro, cigarros e outras necessidades. Em geral, todos os internos saem e arranjam bicos ou pequenos trabalhos enquanto aguardam a regularização de seus papéis, o que sempre demora muito, às vezes anos. Os documentos servem para circular livremente e trabalhar em uma realidade que se impõe e achata ambições: o sonho é trabalho.
Maurizio Longobardi
Massami. Vive em uma moradia coletiva em Siracusa.
Não é diferente com Massami e Bamba, duas nativas da Costa do Marfim, que se fizeram irmãs de coração quando juntas passaram seis dias no Mediterrâneo – o barco à deriva, sem comida nem água, muito choro. Elas hoje moram em uma casa, mas que também é estranhamente chamada de “campo”.
Em uma área afastada do centro de Siracusa, na Sicília, Massami e Bamba vivem com outras mulheres, algumas com bebês e crianças pequenas. Ainda que num território tão diminuto, as fronteiras acabam por se estabelecer, e elas não têm amizade com as outras internas da Nigéria, do Mali, da Somália. Apesar de terem chegado em outubro de 2014, devem começar a ter aulas de italiano somente a partir deste mês. E, para além da origem, a língua pode mesmo constituir uma barreira implacável, especialmente se o esforço não é mútuo.
Enquanto conversamos, Aleksandra, a funcionária italiana responsável pelo “campo”, passa para se despedir, seu turno acabou. Ela não diz “Arrivederci”, nem “Au revoir”, e ri ao começar a dizer “Auf Wiedersehen”. Não soa engraçado. Apesar de estar há dois anos no “campo”, ela não fala o mínimo de inglês ou francês, muito menos árabe ou qualquer dialeto africano. Ex-baby-sitter, não revela interesse ainda que seja de 200 mil a estimativa de recebimento de imigrantes somente em 2015, segundo os órgãos oficiais europeus. De uma forma distinta, talvez também para Aleksandra o que importe mesmo seja ter um trabalho – desde que não precise se envolver com essas mulheres, a maioria marcada por violência e abusos.
Maurizio Longobardi
Miriam, 20 anos. Chamada de ''musa'' foi estuprada já na Itália
Uma delas é Mariam, nigeriana de 20 anos, também chamada de “Musa”. Nas mãos, carrega um celular moderno e caro, possível “evidência” das “suspeitas” de Aleksandra de prostituição. Mas assim como “amor”, “prostituição” também soa completamente deslocado. Ainda mais se pensarmos que Mariam foi obrigada a se casar com um homem que dava dinheiro a seu pai, que fugiu e, ainda recém-chegada à Itália, foi estuprada por um conterrâneo, de quem engravidou e abortou. As relações entre feminino, afeto, corpo e sexo são outras.
Busca de sentido
Fico atenta para ouvir e não julgar. Não seria justo. Hoje, ela diz querer casar com um italiano e ter uma família grande. Não fala de trabalho. Sorri. Ao me despedir, eu a abraço e fico de lhe enviar a foto pelo Facebook. Não dá para ver suas tranças, mas Musa está bonita: a boca de lábios invejáveis e o brilho nos olhos, parecido com aquele de David. Eu imagino Mariam e David desembarcando como aqueles que vi no porto de Augusta semanas antes.
Ao me aproximar sinto um golpe, sobe uma vontade de chorar: uma massa de pessoas está sentada no convés da embarcação. São 600 à espera e, ainda assim, calma e silêncio. Do lado oficial, máscaras e luvas, figurinos de filmes de ficção científica, armas. O clima é de desconfiança e muda tensão. Somos todos suspeitos de trazer ou fazer algo de contaminante, de inesperado e indesejável – os imigrantes, mas também nós, forasteiros inoportunos. Não devo conversar com os imigrantes, não é seguro para eles, é o que o Polizia diz. De onde vêm? Bangladesh, Somália. Quantos dias no mar? Pergunto sobre as camisas de futebol que alguns vestem. Sorrisos surgem ao anunciarem Tottenham, Real Madrid.
Após os primeiros procedimentos, os 600 seguem em direção às tendas armadas ainda no porto. Nos pés, genéricos de Crocs e Havaianas que receberam ao chegar – coloridos, tão fora do tamanho. Os sapatos são o de menos. Todo o resto por se ajustar: expectativas, sonhos, a tal vida melhor. Melhor é sempre uma comparação e, então, após as conversas, desejei a todos que tivessem uma vida boa – sem saber o que cada um possa querer dizer com isso.
Wavegarden, a piscina com (boas) ondas artificiais
Divulgação/Wavegarden
Madrugada. Despertador. Barulho do mar. Medo. Prazer. Expectativa. Assim começa a peregrinação de um surfista, muito antes de a onda se formar. O ritual é parte dessa utopia. Equipamento. Amigos. Previsão. Incerteza. Estar diante de elementos alheios ao controle do homem é o que alimenta o surfista.
Numa região selvagem, distante do mar, com rios, lagos e florestas, está o parque nacional de Snowdonia, no País de Gales. Ao pé das montanhas, a mais de mil metros de altitude, jovens de wetsuits caminham descalços com pranchas debaixo do braço. Eles estão indo em direção a uma lagoa de 300 por 113 metros, a mais nova atração do parque, chamada Surf Snowdonia. Vão passar dois dias hospedados no parque, em casinhas que recebem até quatro pessoas – é preciso levar travesseiro e saco de dormir. Desde julho esse é o novo destino para surftrips na Europa.
A lagoa conta com o mecanismo desenvolvido pela empresa Wavegarden, especializada em ondas artificiais, e é capaz de formar 120 ondas por hora com até 2 metros cada uma. Uma placa de metal sob a lagoa, chamada wavefoil, desloca massas de água para gerar as ondas e controlar sua altura e velocidade.
A tecnologia foi desenvolvida no País Basco por um grupo liderado pelo engenheiro industrial espanhol Josema Odriozola. Levou dez anos de estudos e testes até a construção da primeira lagoa, em 2010, no vilarejo de Aizarnazábal, a 30 quilômetros de San Sebastián. Diferentemente de Snowdonia, a lagoa basca não é aberta ao público – apenas para convidados e eventos especiais.
“Quando fui registrar a tecnologia fiquei impressionado com a quantidade de patentes que já existiam”, conta Odriozola. “A infinita grandeza do oceano nunca poderá ser reproduzida, mas boas ondas, até um certo tamanho, é outra história.”
Embora as patentes existam, nenhuma ainda resultou num plano de negócio sustentável. Nos Emirados Árabes, por exemplo, o sistema do parque Wadi Adventure – construído pelo filho do sultão em Abu Dhabi – foi desativado no início de 2015 após três anos de operação por causa do alto custo de manutenção. No Japão, a Myiazaki Ocean Dome também fechou as portas por igual motivo. Outros projetos, como o desenvolvido pela Kelly Slater Wave Company, que anunciou em 2012 a criação de uma piscina de ondas em Queensland, Austrália, nem sequer saíram do papel.
Vejo as piscinas de ondas como um impulso para o esporte ganhar força em termos de massa. Vai atrair mais público.
“O custo e a qualidade das ondas estão ligados”, diz o engenheiro industrial. “O nosso objetivo é projetar e construir lagoas que encontrem um equilíbrio entre diversão e negócio rentável. Ondas grandes, além do fato de muitas pessoas não conseguirem surfar, significam mais energia e custo. Também são sinônimos de espaço maior, mais água em movimento e mais tempo de espera entre as ondas. Ou seja, são menos surfistas por hora e uma brecha para o negócio não durar”, explica.
O Wavegarden consome pouca energia em relação às patentes concorrentes. A construção custou cerca de 8 milhões de euros (aproximadamente R$ 31 milhões) e, no caso de Snowdonia, levou um ano para ficar pronta. Cada onda dura cerca de 18 segundos e é possível reunir até 70 pessoas ao mesmo tempo, dependendo do nível – quanto mais avançado, menos pessoas cabem. A hora de diversão custa de 40 a 45 libras (entre R$ 220 e R$ 245). Para quem aguarda sua vez, o espaço tem café e restaurante.
A oferta de ondas ininterruptas e 90% iguais entre si atraiu até atletas da elite do esporte, como os campeões mundiais Mick Fanning e Gabriel Medina e o atual número 1 do ranking, Adriano de Souza, o Mineirinho. Os três já surfaram em wave pools.
Divulgação/Wavegarden
Detalhes das ondas tecnológicas
“Existe um grande potencial para essas ondas em lugares onde o acesso ao mar não é fácil. É uma nova dimensão no esporte”, acredita Mineirinho, que já surfou tanto no Wavegarden quanto em Abu Dhabi. “A sensação é boa. Achei divertido e sem preocupações como a variação de marés. Gostei mais de Abu Dhabi porque a água era mais quente [risos], mas ainda está longe de ser uma onda dos sonhos. Com a minha mentalidade de surfista profissional não consigo imaginar isso indo muito além. O maior desejo é desafiar ondas perigosas e sair ileso. Isso nunca vai acontecer numa lagoa artificial.”
Em 18 de setembro, Surf Snowdonia receberá seu primeiro desafio: um campeonato que pode abrir novos precedentes para o esporte. “Não tem espera por ondas, não tem calmaria, nem desculpas para o fator sorte”, diz Odriozola. “A disputa é focada na performance dos surfistas.”
Um modelo padronizado de competição de surf em ondas artificiais pode vir a ser uma categoria de surf no futuro. Já é especulada até a criação de um estádio de surf para as Olimpíadas de Tóquio, em 2020 – com direito a ilustrações que viralizaram na internet. Mas o passo dado de fato nesse sentido foi rumo ao mar: o esporte estará nos Jogos Pan-americanos do Peru, em 2019, e acontecerá nas praias de Punta Hermosa. “Acho que no mar é mais interessante porque sem as intempéries do oceano a coisa perde um pouco do desafio”, defende Adriano de Souza. “Imagine uma regata em ambiente de vento controlado pelo homem. Não é o mesmo feeling.”
Surfista brasileiro Gabriel Medina surfando na onda artificial da primeira lagoa do Wavegarden, no País Basco
Odriozola, que teve a ideia por causa do excesso de crowd em sua cidade, San Sebastián, garante que o objetivo de sistemas como o Wavegarden não é melhorar nem recriar a experiência do surf no oceano em lagoa. “Mas se você vive muito longe do mar, em algum lugar onde os dias são muito curtos no inverno, com clima ruim, ondas mexidas e tempestades, onde o outside é superlotado ou sem ondas, uma lagoa de surf como a nossa pode ser uma grande experiência”, sustenta.
Nesta segunda década do século 21 é inevitável o aumento do número de praticantes, da exposição internacional do surf e de avanços em sua tecnologia. Hoje, você pode comprar sua passagem e hospedagem para um surfcamp em Snowdonia e passar alguns dias surfando num ambiente totalmente diferente do oceano. Sem horizonte, mas com montanhas. E esperando a sua hora de cair no mar. “Vejo as piscinas de ondas como um impulso forte para o esporte ganhar força em termos de massa”, diz Mineirinho. “Com certeza, vai atrair mais público.”
Será essa inovação uma promessa, um mal necessário, uma ilusão ou uma grande saída para a massificação do esporte? O dilema está longe da cabeça dos jovens de prancha e wetsuit que respiram o ar gelado de Snowdonia. O cheiro é de mato, o barulho é de corredeira, a água é doce. Eles caminham de pés descalços sobre o píer. A água se movimenta como num golpe e, ao oscilar para cima e para a frente, formando um triângulo, passa lambendo a plataforma de concreto. Hora de fazer o drop e surfar a onda que bate na altura dos ombros. Não há por que se preocupar com vento, maré ou corrente.
Em Snowdonia não há surpresa: amanhã vai ter onda.
Bianca Figueiredo: cem dias de caçada à bordo do navio da Sea Shepherd
Evgeny Makarov
Bianca libertando um king crab da rede
Nos últimos dias de fevereiro, a bordo do Sam Simon no oceano Índico, a bióloga paulista Bianca Figueiredo precisou tomar uma decisão: voltar para a Austrália, onde tudo – cerimônia, vestido, convites, noivo – estava pronto para o seu casamento, ou continuar no navio, na caçada ao pesqueiro ilegal Thunder ao longo da costa da África.
Fazia muito calor, quase 40 ºC, e o Sam Simon, uma das duas embarcações da organização ambiental Sea Shepherd que haviam partido em dezembro no encalço de barcos que pescavam merluza negra ilegalmente em águas internacionais, rumava às Ilhas Maurício para reabastecer e entregar à Interpol provas contra o Thunder – redes proibidas capturadas nas águas congelantes da Antártida. Bob Barker, o outro navio do grupo, perseguia o pesqueiro dia e noite havia mais de dois meses.
Foi então que o capitão do Sam Simon, o indiano Siddharth Chakravarty, 32 anos, decidiu que terminariam a campanha ao lado dos colegas do Bob Barker. E isso, Bianca entendeu, poderia levar ainda bastante tempo.
O Thunder, desde 2013 na lista de procurados da polícia, tinha combustível para ficar pelo menos mais três meses no mar.
A decisão não era fácil. Mas lá, no meio do oceano, com outros voluntários do mundo todo, a missão havia se tornado crucial para ela. Pediu a Chakravarty autorização para usar o telefone por satélite e ligou para o pai, no Brasil. Na conversa, falou sobre seu casamento, que estava marcado para o dia 2 de maio. O pai assegurou que ela estava tomando a decisão certa.
“Tive que romper meu relacionamento, e foi muito difícil”, Bianca contou por Skype no mês passado, agora a bordo do Bob Barker, em Bremen, na Alemanha, enquanto se preparava para uma campanha contra a caça das baleias-piloto nas Ilhas Faroé. “Naquele momento, pensei: minha vida pessoal não é tão importante quanto o que estou fazendo aqui.”
Jornada inesperada
Evgeny Makarov
Bianca zarpou de Wellington, na Nova Zelândia, no dia 8 de dezembro de 2014, esperando voltar para casa em seis semanas, previsão inicial da operação Icefish – que, ela não podia imaginar, se tornaria a mais longa da história da Sea Shepherd, uma ONG fundada em 1977 que patrulha os mares por conta própria, sem ligação com governos.
A própria escolha de focar nas merluzas negras foi quase um acaso. A luta histórica da Sea Shepherd na Antártida é contra a caça às baleias, ainda legal em alguns países. Porém, uma decisão da Corte Internacional de Justiça de maio de 2014 cancelou a temporada deste ano no Japão. Abriu-se assim espaço para que o grupo prestasse atenção a alguns pesqueiros suspeitos que navegavam na região. “Eram seis navios ilegais, numa vastidão que é a Antártida”, conta Bianca. “Nossa ideia era descer e ver o que a gente achava.”
Práticas de pesca ilegal, não declarada ou não regulamentada, são responsáveis por retirar dos oceanos algo entre 11 milhões e 26 milhões de toneladas de peixes por ano, quantidade que tem valor estimado entre US$ 10 bilhões e US$ 23 bilhões, de acordo com um relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. O consumo de merluza negra, também chamado bacalhau de profundidade, é recente: só ficou popular depois da década de 70. Cerca de 55 barcos ilegais pescavam 32 mil toneladas de merluza negra no auge desse tipo de pesca, em 1997.
Caiu na rede
O Thunder e outros quatro barcos procurados pela Interpol utilizam uma variação bastante predatória da gillnet, tipo de malha em que os animais ficam presos devido ao seu próprio movimento: as redes, cada uma delas com cerca de 25 quilômetros, ficam a uma profundidade de 2 mil metros, com cabos-guias em cada extremidade. “Essas redes são feitas de um nylon fino, e os peixes vão se enroscando”, explica Bianca. A técnica é proibida pela Convenção para Conservação dos Recursos Vivos Marinhos Antárticos desde 2004.
O combinado entre os navios da Sea Shepherd era de que, caso os pesqueiros fossem encontrados, o Bob Barker faria a perseguição enquanto o Sam Simon trabalharia para recolher equipamentos ilegais. No dia 17 de dezembro, quando o Bob Barker encontrou o Thunder e começou a perseguição, o Sam Simon recebeu a posição das boias pelo GPS do Baker. A posição era exata. As redes estavam lá quando o Sam Simon chegou, dez dias depois, para começar a retirada. Não bastasse o próprio trabalho ser difícil e inédito para a organização, a operação foi realizada em meio ao oceano Antártico, com neve quase o tempo todo e icebergs. As redes eram mais pesadas do que o esperado e danificaram duas vezes o equipamento instalado para retirá-las, que estava apto para aguentar 4,5 toneladas.
A tripulação acreditava que em 24 horas puxaria tudo. “A gente fez uma dinâmica muito louca de trabalhar 4 horas e dormir 4 horas, alternadamente”, ela conta. Mas a tarefa se revelou mais complexa do que o previsto. Só a primeira rede levou cinco dias para sair do mar. O trabalho todo foi de quatro semanas. Além do peso das redes, da tensão na corda e das condições climáticas, havia muitos caranguejos vivos na malha e o grupo não queria que os animais fossem esmagados. Bianca era uma das responsáveis por libertar os king crabs, caranguejos de 4 quilos, e devolvê-los ao mar.
Os peixes não tiveram tanta sorte: das 1.080 merluzas negras que o grupo tirou da água, apenas uma estava viva. Grande parte estava em estado avançado de putrefação. Os que estavam em condições eram analisados por Bianca e por uma colega veterinária. Muitos eram fêmeas. “Ver o saco de ovas, cheio, isso foi o que mais me chocou”, conta a bióloga brasileira.
O medo, Bianca diz, era vencido pelo cansaço. Das 4 horas de folga, boa parte ia para alimentação e higiene. Dormir mesmo, menos de duas a cada turno. Entre palavras de encorajamento e o ritmo forçado, os voluntários da Sea Shepherd tiraram 72 quilômetros de rede do mar, com quase 50 toneladas de merluzas negras, além de outras espécies de peixes e crustáceos. Também foi preciso distribuir toda a rede uniformemente pelo navio, para evitar que o Sam Simon virasse.
Simpsons pró-baleia
Evgeny Makarov
Bianca Figueiredo em retrato para a Trip, a bordo do Bob Barker, em Bremen, na Alemanha
Natural de Campinas, Bianca tem 31 anos e estudou biologia na Pontifícia Universidade Católica de sua cidade natal. Fez estágio no Projeto Boto, na Amazônia, e no Centro de Reabilitação de Animais Selvagens, em Jundiaí. “Eu curtia muito, mas sempre achava que eu poderia sair da zona de conforto e fazer mais, sabe?”, ela lembra.
Em 2006, quando estava terminando a faculdade, Bianca se mudou para Ilhabela. Foi na ilha paulista, em 2009, que teve os primeiros contatos com a Sea Shepherd Brasil, através de amigos que estavam envolvidos com o grupo desde o começo da década. Em 2012, saindo de Ilhabela depois do fim de um relacionamento, aceitou a proposta de uma amiga de se mudar para a Austrália, pensando em procurar um mestrado. Lá, visitou universidades, curtiu bares, mergulhou, fez amigos, visitou a Nova Zelândia. E, entre tudo isso, também procurou a Sea Shepherd local. Havia uma na sua cidade, Byron Bay.
Como voluntária em terra, Bianca arrecadava dinheiro e montava estandes da organização. Em 2013, a campanha de defesa das baleias foi intensa, com múltiplas colisões entre os navios da Sea Shepherd e baleeiros japoneses. As embarcações voltaram precisando de reparos e Bianca mandou um e-mail para o responsável pelo recrutamento dizendo que poderia ficar um mês ajudando. Aceita, partiu para Melbourne, a mais de 1.500 quilômetros, levando apenas uma mochila.
Bianca foi trabalhar no Sam Simon, a embarcação mais nova do grupo. O barco foi comprado do governo do Japão às escondidas em 2012, com dinheiro doado por Sam Simon, um dos criadores dos Simpsons, e só revelado quando já estava reformado e pronto para enfrentar os baleeiros — do próprio Japão. Logo Bianca recebeu convites para estender sua permanência no grupo. Daí para o início da caçada ao Thunder seria apenas um passo.
Tensão
Depois da longa operação de retirada das redes, a tripulação do Sam Simon soube que outros três navios na lista dos ilegais estavam por perto. De volta ao mar, encontraram dois, os pesqueiros Kunlun e Yongding. O Yongding não demorou a atacar o Sam Simon. Colocou-se na rota do navio e acelerou.
O capitão avisou que colidiriam. Faltavam instantes, segundos. Bianca se segurou em uma mesa. A poucos metros, no entanto, o pesqueiro desviou. E fugiu. O Sam Simon ainda perseguiu o Kunlun por algum tempo, antes de decidir que a prioridade era ajudar o Bob Barker na captura do mais temido deles, o Thunder. (Em tempo: o Kunlun foi capturado em Phuket, na Tailândia, em março; e o Yongding, em Cabo Verde, em maio.)
O Sam Simon mudou de rota, saindo da Antártida, e foi ao encontro do Bob Barker. Era fevereiro. Com o casamento oficialmente cancelado, Bianca subiu ao convés. O mar era o mais importante. Depois de passar pelas Ilhas Maurício, a embarcação desceu pela costa leste da África, contornou o Cabo da Boa Esperança e reencontrou, os outros dois navios na costa oeste do continente, já no Atlântico. Aquilo parecia não ter fim.
Na manhã do dia 6 de abril, às 6h39, após 110 dias de perseguição, o Thunder avisou no rádio que estava afundando. A primeira reação entre os voluntários da Sea Shepherd foi de descrença. Fazia calor, a água estava calma. Não é claro o motivo do naufrágio: especula-se até que possa ter sido intencional.
Botes salva-vidas com a tripulação do Thunder foram colocados no mar: 30 indonésios e DEZ oficiais, que eram chilenos, espanhóis e um português. O Sam Simon foi encarregado do resgate, enquanto tripulantes do Bob Barker tentavam recuperar provas. O Thunder virou por horas e, quando finalmente ficou na vertical, afundou em instantes. Foi uma experiência chocante, Bianca conta, e confusa, com sentimentos misturados. Primeiro, de que aquele navio nunca mais causaria destruição. Depois, que estava afundando cheio de óleo.
O retorno
Com os 20 membros da tripulação do Sam Simon se revezando para vigiar os 40 do Thunder, o navio partiu para o porto mais próximo, na ilha de São Tomé e Princípe, onde chegou à 1h30, depois de mais 10 horas. Bianca era a única que falava português e teve que conversar com os oficiais da ilha.
Lá, a tripulação do Thunder desembarcou. Os indonésios foram repatriados, alguns dos oficiais foram presos. “Bateu um sentimento de dever cumprido”, Bianca diz. Quando o capitão reuniu a tripulação para falar sobre a jornada, ela sentia o coração batendo na garganta. “Nós éramos 59 pessoas entre 7 bilhões. Essa sensação é incrível, e ao mesmo tempo um sentimento de humildade muito grande”, finaliza.
Depois de São Tomé e Príncipe, os navios foram para a Europa, em uma travessia que levou mais três semanas. Todo mundo ficou mais quieto, havia um sentimento de vazio. “Parecia que a gente havia perdido um pouco do propósito”, conta. Parte dos altos e baixos da vida de ativista. E para o futuro? Bianca quer fazer mestrado e quem sabe um dia usar sua experiência de guerrilha no Brasil. Mas por ora, está pronta para férias. E no aguardo de uma missão para voltar ao gelo da Antártida.
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Sexting, nudes, apps de encontro e a nossa vida sexual
N. e C. se conheceram on-line e, a princípio, nem ao menos sabiam se a pessoa do outro lado era homem ou mulher. Não havia ainda forma de transmitir imagens nem voz pela rede, apenas texto. A frieza do meio, porém, não impediu que N. e C. desenvolvessem uma relação que acabou se tornando para eles muito mais importante do que outras da vida real.
A americana Ella Cheever Thayer conta essa história no best-seller Wired Love, publicado pela primeira vez em 1880. Sim: 1880. Nattie, a protagonista, e seu amante secreto, C., se apaixonam trabalhando como operadores do que havia de mais moderno na comunicação, o telégrafo. Com vários desencontros e uma surpresa sobre a identidade de C., o livro é quase uma versão pré-internet de You've Got Mail [Mens@gem para você], comédia romântica de 1998 estrelada por Meg Ryan e Tom Hanks.
Outra personagem, Miss Archer, pergunta em determinado momento, durante uma conversa: "Quem sabe se algum gênio vai inventar algo para o uso especial de amantes? Algo, por exemplo, para carregar em seus bolsos, e, quando estiverem distantes um do outro e ansiarem pelo som daquela voz amada, terão apenas que pegar seu aparato elétrico, colocá-lo nos ouvidos, e ser felizes. Ah! Bem-aventurados os amantes do futuro!". Os amantes do futuro, passados 135 anos, têm um aparato ainda mais moderno do que esse – embora não exista exatamente consenso sobre serem bem-aventurados ou não.
Analisado à exaustão desde que foi lançado, em 2012, o aplicativo de encontros Tinder foi apontado recentemente em uma reportagem da Vanity Fair como a causa do fim do romance ao oferecer aos jovens um sem-número de possíveis parceiros sexuais: ele é comparado ao ato de pedir comida on-line. (O app é inspirado no Grindr, voltado para a comunidade gay, que aperfeiçoou a cultura de encontros casuais muito antes.) Dois anos atrás, o New York Times lançou mão de argumento parecido usando o site OkCupid como exemplo.
Quem faz sexting transa melhor
Por outro lado, pesquisas mostram que o uso de tecnologia ajuda nos relacionamentos. Nos Estados Unidos, um terço dos casamentos, entre 2005 e 2012, começou com encontros on-line — e casais que se conheceram na internet são mais felizes, segundo estudo de 2013 da Universidade de Chicago. Já os casais que trocam mensagens eróticas, o sexting, segundo uma pesquisa da Universidade Drexel, na Filadélfia, publicada este ano, transam melhor.
Mas afinal: a tecnologia muda alguma coisa na nossa relação com o sexo? Para Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade da USP, há uma transformação que foi ocorrendo desde o surgimento da internet, com as salas de bate-papo e vídeos compartilhados na rede. "Tudo isso começou a favorecer que, sem sair da própria casa, as pessoas pudessem ganhar um espaço sexual bastante maior", ela afirma. "As pessoas mudaram a forma como vivenciam não só a sexualidade, mas a intimidade e a privacidade. A sexualidade passou a ser muitas vezes compartilhada."
A psiquiatra acredita que a privacidade do sexo é a maior questão entre as mudanças que a tecnologia trouxe. "É uma ilusão quem imagina que vai conseguir ter privacidade tendo se permitido filmar, fotografar ou se declarado de forma indiscreta utilizando esses meios", afirma. "O sexo na intimidade não pode acontecer com o uso dessas ferramentas todas." O que não é um problema em si, diz Carmita: desde que seja feito de comum acordo entre as pessoas.
Intimidades frias
Fato é que o sexo parece nunca ter sido tão importante quanto agora. A socióloga israelense Eva Illouz afirma que, hoje, as relações sentimentais são definidas pelo interesse sexual: o sexo precede a ideia de amor, uma relação é entendida como boa ou não baseada na qualidade do sexo (nem sempre foi assim). Esse deslocamento no eixo amor-sexo ocorreu antes da internet, ao longo do século 20, quando, como Illouz conta no livro Why Love Hurts [Por que o amor machuca], de 2012, os relacionamentos amorosos e a revolução sexual começaram a ser cooptados pela sociedade de consumo.
Como diz Illouz, já havia nascido uma "experiência sexual separada e autônoma da vida emocional": separada da reprodução, do casamento, dos laços duradouros. Com ela, nasceram espaços sociais designados especificamente para criar encontros casuais: desde lugares físicos como bares e baladas até tecnologias de comunicação. "Quando não existia o recurso dos aplicativos, as pessoas iam para locais onde buscavam exatamente a mesma coisa, presencialmente, ou iam buscar através de telefones e cartas", afirma Abdo.
Para a socióloga Eva Illouz, uma relação sentimental, hoje, é entendida como boa ou não baseada na qualidade do sexo
Claro que, depois, a transformação do sexo em mercadoria encontrou terreno fértil nas mídias digitais. "Nenhuma tecnologia que eu conheça radicalizou de um jeito tão extremo a noção do eu como um ‘escolhedor’ e a ideia de que o encontro romântico deve ser o resultado da melhor escolha possível", Illouz escreve em outro livro, Cold Intimacies [Intimidades frias], de 2007, em que analisa sites de encontros da internet pré-smartphone. "O encontro virtual é literalmente organizado dentro da estrutura de mercado."
Nesses sites de encontros, com perfis detalhados, ainda existia a ideia de apresentar as pessoas como uma mistura de seus gostos e opiniões, descritos em questionários, e sua aparência. Os aplicativos mais modernos como o Tinder radicalizaram a ideia de uma "estrutura de mercado": focam nos aspectos físicos e substituem itens de interesse como características e gostos pessoais pela localização e proximidade entre os usuários.
Correios transgressores
A internet não é a primeira inovação na comunicação que mudou dinâmicas sexuais. As caixas postais, por exemplo, permitiram no século 19 que mulheres trocassem correspondência sem que a família lesse suas cartas, facilitando o nascente sexting epistolar. O telégrafo já possibilitava interações quase contemporâneas, como mostra o romance Wired Love, citado no início deste texto. Colocando a voz no centro do palco, o telefone foi a grande mídia de contato sexual do século passado, desde o flerte com telefonistas até o telessexo — e continua sendo importante ainda hoje. (Na revista americana Telephony, em 1905, pergunta-se: "As portas podem estar fechadas e um pretendente rejeitado mantido longe, mas como cuidar do telefone?".)
Nem a linguagem usada em aplicativos como o Tinder é completamente original. Um escritor chamado George Ellington (um pseudônimo, não se sabe quem ele foi) conta sobre um livro que ficava em uma papelaria de Nova York na segunda metade do século 19 e era usado por estranhos para trocar endereços de correspondência. Algumas mensagens que Ellington transcreve soam um tanto familiares. Blanche G., por exemplo, "uma garota muito bonita, 20 anos", diz que quer se corresponder apenas por "diversão e para matar uma curiosidade sobre quantos cavalheiros serão tolos o suficiente para responder a isso". Gustavus B. afirma que "é dançarino, patinador, nadador" mas avisa que "não é bonito nem gracioso". Diversão é a palavra mais recorrente.
Quantidade é quantidade
O que mudou, e muito, comparando as tecnologias de antes com as de agora, é a velocidade e a oferta. Segundo o psiquiatra Jairo Bouer, jovens que encontram muitas pessoas pelos aplicativos têm dificuldade de "abrir mão desse 'cardápio' de ofertas para focar em uma pessoa só". "E a questão é: será que a pessoa que eu escolhi também está fazendo o mesmo?", diz.
No mundo real, o mercado de possíveis parceiros é apenas pressuposto, virtual, enquanto no mundo virtual ele é real — os usuários podem realmente visualizar parceiros potenciais. Paga-se um preço: para Illouz, muito do encantamento que associamos com a experiência do amor é relacionado com "uma economia de escassez". "O espírito presidindo sobre a internet é de uma economia de abundância, em que o eu precisa escolher e maximizar as opções e é forçado a usar técnicas de custo-benefício e eficiência", escreve.
Essa oferta sem precedentes aumenta a quantidade de sexo? Segundo Bouer, os jovens começam a ter relações sexuais mais cedo e variam mais de parceiros ao longo da vida, "mas é difícil saber se isso é por causa da internet". "Não dá para atribuir uma relação direta. É uma geração que já era mais livre", diz. De acordo com dados da Pesquisa de Conhecimentos, Atitudes e Práticas na População Brasileira, do Ministério da Saúde, o número de jovens entre 15 e 24 anos que dizem ter tido mais de dez parceiros sexuais na vida aumentou de 16,2% em 2004 para 21,9% em 2008. Na faixa etária logo acima, entre 25 e 34, passou de 19,8% para 28,5%. Os dados específicos da pesquisa mais recente, feita em 2011, ainda não foram divulgados, mas, a julgar pela estatística geral, de pessoas entre 15 e 64 anos, devem ter crescido mais ainda: 44% disseram ter tido mais de dez parceiros sexuais, contra 19% em 2004.
Mas o aumento, ou diminuição, não é homogêneo. Nos Estados Unidos, por exemplo, apesar do uso massivo das apps de sexo casual por uma parte dos jovens, uma pesquisa da San Diego State University mostrou que a geração Y, dos nascidos depois da década de 80, tem em média menos parceiros que as duas gerações anteriores. São oito, contra dez da geração X (nascidos depois de 1965) e 11 dos baby bommers (depois de 1945). Para Carmita Abdo, "se faz menos sexo presencial, mas muito mais vendo filmes, ou acessando sites, coisas que são mais solitárias". "O que a gente observa às vezes é a dificuldade de passar dessa situação de sexo masturbatório para o presencial", ela conta. "Trata-se de uma iniciação muito boa, desde que seja uma etapa."
Faça amor
A invasão do pornô no sexo real foi o que levou a inglesa Cindy Gallop a criar o projeto Make Love Not Porn (Faça amor não pornografia), pedindo mais sexo e menos pornô na internet. Não que Cindy não goste de filmes explícitos — ela gosta, mas acredita que esses conteúdos espalham comportamentos que nada têm a ver com o sexo, e gostaria de ensinar a diferença.
"Nós queremos mudar para melhor a forma como o mundo transa criando mais franqueza e honestidade em volta do sexo", Cindy diz. "Quando a pornografia pesada da internet se encontra com a relutância da sociedade em falar sobre sexo, essa colisão resulta em o pornô se tornando a própria educação sexual, não de um jeito bom."
A própria tecnologia deveria ser utilizada para falar sobre sexo (e tecnologia). "A internet podia estar servindo para multiplicar conhecimento, para resolver dúvidas e para sanar questões de preconceitos e tabus", diz Carmita. "Mas a gente não está oferecendo educação sexual. Tem um paradoxo entre o quanto uma pessoa bem jovem pode acessar esses aplicativos versus a falta de informação e de orientação que se dá nessa área."
Ninguém no Snapchat ou no Whatsapp quer falar sobre sexting. Eles não querem abraçar o impacto da tecnologia na nossa sexualidade
Ex-publicitária, Gallop quer criar uma plataforma de educação sexual com conteúdo colaborativo curado pelo Make Love Not Porn. "Hoje, ninguém que entre no campo da educação sexual ganha dinheiro. Eu quero mudar isso", diz. Cindy também lançou, há dois anos, um site de vídeos, makelovenotporn.tv, para "celebrar o sexo do mundo real".
"A próxima grande coisa na tecnologia é a disrupção do sexo", afirma. "Basicamente, para fazer isso, decidi pegar todas as dinâmicas que existem agora nas mídias sociais e aplicá-las ao sexo." Para Cindy, as principais mídias sociais ou restringem conteúdo sexual (como o Facebook e o Instagram) ou, aqueles em que sem querer isso se tornou popular, o ignoram. "Ninguém no Snapchat ou no WhatsApp quer falar sobre sexting, eles se recusam a aceitar isso", diz. "Não querem abraçar o impacto da tecnologia na nossa sexualidade." Ela, por outro lado, quer criar o que chama de "sexo social" — fazer o sexo tão socialmente aceito e compartilhável quanto todo o resto que compartilhamos hoje no Facebook, Tumblr, Twitter, Instagram e outras redes.
Uma coisa é certa: a tecnologia, de ontem e de hoje, é parte indissociável das relações humanas e continuaremos, na ficção e na vida, imaginando novas formas de juntar qualquer novidade tecnológica ao sexo – há até quem queira conectar os próprios corpos humanos a máquinas, transformando a pele em gadget. Por outro lado, da mesma forma como agora vemos reações contra a velocidade e o consumismo da vida moderna em outros campos da experiência humana – o movimento do slow food, por exemplo –, é possível que algo parecido seja pensado para a sexualidade e as relações amorosas.
Como será o sexo dos amantes do futuro? Como sempre, tudo exatamente igual; tudo absolutamente diferente.
Surfistas do Instagram
Roxy/Divulgação Stephanie Gilmore, primeira mulher a assinar um contrato multimilionário no surf Desde que Lisa Andersen (quatro vezes campeã mundial) surgiu nas competições dos anos 90 e ganhou o respeito dos marmanjos e as capas de revistas antes só estampadas por eles, o surf feminino nunca mais foi o mesmo. Linda, loira e bronzeada, ela provou que garotas também podiam ter o surf nas veias, como os homens, mas sem precisar agir como eles. As mulheres ganharam uma fatia nos holofotes que antes só iluminavam as bermudas, e o mercado entendeu que a imagem da surf girl vendia, e muito. De lá pra cá, poucas Lisas surgiram, mas as marcas patrocinadoras, como Roxy, Billabong, RVCA, Volcom, entre outras, aumentaram exponencialmente o número de surfistas em suas campanhas. A briga por espaço cresce a cada ano, e com o boom das redes sociais os próprios perfis das meninas tornaram-se grandes vitrines, que exploram cada vez mais a sensualidade como chamariz para as marcas que as apoiam. "Hoje em dia as marcas que patrocinam o surf feminino querem, mais do que uma menina que surfa muito, uma modelo para vender biquíni, e isso atrapalha atletas como eu, que querem focar no esporte", critica Silvana Lima, a brasileira mais bem colocada no ranking mundial. "Você nunca vai ver Carissa Moore, Courtney Colongue ou Tyler Whright, que são lindas, se prestarem a esse papel. Elas são atletas de verdade e estão mais preocupadas em acertar a batida ou um aéreo do que em sair bem na foto de fio dental do Instagram", completa. Reprodução O bombado perfil do Instagram de Anastasia Ashley: 1 milhão de seguidores A terceira colocada no ranking mundial de longboard, Chloé Calmon, concorda com Silvana. Ela diz que existem algumas atletas que optam por explorar a sensualidade em suas redes sociais, mas que jamais escolheria esse caminho: "Isso não sustenta uma carreira. É uma atitude efêmera e temporária. Acho que bons resultados internacionais, uma boa postura profissional e contato com a natureza dão muito mais resultados", diz ela antes de enfatizar que nunca se sentiu pressionada por patrocinadores a aparecer em poses sexy em suas campanhas publicitárias ou em suas plataformas particulares. Sem medo do sensual As críticas foram duras, mas Steph, a primeira mulher a assinar um contrato multimilionário no esporte, com a Quiksilver, parece não temer explorar sua feminilidade, e o faz sem cruzar a linha da vulgaridade. Em entrevista à revista Hardcore em 2014 ela defende o fato de mostrar mais do que manobras nas telas: "O Tour é composto de meninas jovens, bonitas, competitivas, saudáveis, positivas, inspiradoras, seguras de si. E fazemos tudo isso de biquíni, em locações paradisíacas. É algo sensual. É um estilo de vida sexy. Mas acho que como um todo, o surf feminino já provou na água que tem seu valor, que a performance está lá. Por isso mesmo, não temos que esconder ou tentar diminuir o apelo da nossa beleza, da nossa feminilidade. Somos felizes. Não temos medo de ser sensuais, de sermos femininas." Modelos que surfam A americana Alana Blanchard, por exemplo, não perde uma oportunidade de postar imagens sexy em seu Instagram e é lembrada por nove entre dez surfistas homens como a garota que mais abusa desse artifício no universo do surf. Reprodução Alana Blanchard dando um tempo em águas claríssimas Mas Alana que se cuide, o pódio anda disputado. Tente dar uma busca no nome da surfista Anastasia Ashley. Ao contrário do que aconteceria com Lisa Andersen, o leitor vai encontrar entre as primeiras ocorrências chamadas como "Surfista Anastasia Ashley tentando provar que tem a melhor bunda do esporte". Desde que resolveu aquecer para um campeonato praticando twerking (uma dança sensual) na areia, ela não parou de ilustrar campanhas, ensaios e cada vez mais fotos sexy na internet. Até a surfista de stand-up paddle Alana Pacelli, que ao lado da irmã Nicole – também atleta – protagoniza o programa Família Pacelli no canal Off, e que já fez ensaio sensual para o canal, reconhece que mostrar o lado sexy pode ser um artifício para aparecer. Mas ela acredita que há um limite: "Acho que toda mulher tem um lado naturalmente sensual, e claro que se a atleta além de surfar é bonita, a marca ganha um pacote que agrega às imagens de campanha. Mas acho que aparecer no Instagram fazendo selfie de calcinha já é demais", diz. "A Alana Blanchard e a Anastasia não são surfistas bonitas, são modelos que surfam, e o apelo sensual não pode vir antes da performance", completa. Com os homens, a história é diferente. São raros os closes no abdome ou selfies exaltando bíceps torneados. Já pensou num post da barriga tanquinho do Kelly Slater com uma gotinha de água escorrendo e com o pôr do sol ao fundo? A ideia parece estranha? São mais frequentes imagens de manobras ou do surfista deixando o mar como um super-homem aventureiro que realizou um feito inacreditável depois de dropar ondas enormes. Ou de maluquices aquáticas como as do havaiano Jamie O’Brien que desce ondas enormes em boias, stand-ups coletivos e até com trajes pegando fogo, disponibiliza os vídeos na internet e é muito bem pago pelos patrocinadores por isso. Reprodução A brasileira Alana Pacelli, protagonista do programa Família Pacelli, com a irmã Nicole Por isso, Alana Pacelli acredita que o espaço das mulheres em canais que exploram esse tipo de esporte poderia ser diferente. "Na hora de escolher quem vai ter um programa, os produtores ainda optam por mostrar a mulherada bonita porque é isso que os homens querem ver. No Off não existe um programa com a Silvana Lima, que é sensacional, mas tem um programa com garotas do sul que surfam há pouquíssimo tempo. E, se a mídia não mostra o atleta, o patrocinador não investe nele." Produtor do programa Família Pacelli, Pedro Montes diz que não há nenhum tipo de orientação do canal na direção de explorar a sensualidade nas filmagens com garotas. "Ainda há um machismo incorporado no público do esporte, mas nunca ninguém me pediu para filmar as meninas de forma sensual, com esse foco. Nego ainda prefere ver a Alana Blanchard dando uma rasgada normal ao ver a Silvana quebrando as ondas. Mas o surf feminino só cresce e isso ainda vai mudar", diz. E, aí, a pose na selfie não vai mais importar. Curte quem quiser.
Mas a história mostra que não é bem assim. Não são apenas atletas do baixo escalão competitivo (embora sejam, sim, maioria) as que exploram corpos bem desenhados em anúncios e mídias sociais. Stephanie Gilmore, seis vezes campeã mundial, causou em 2013 um rebuliço no microcosmo do surf ao aparecer acordando de calcinha, em cenas sensuais que não mostravam nem mesmo seu rosto em um vídeo da Roxy que anunciava a etapa do circuito mundial de Biarritz, na França.
Há, porém, quem não apenas use, mas abuse do fio dental, das selfies com muito bico e poses para lá de quentes em suas mídias sociais e sejam mais lembradas pela pouca roupa do que pelo que fazem nas ondas.